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António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - António (Moisés) de Valença (c.1472 – d.1548)

Terá nascido em Ureña, termo de Valhadolid, Castela, pelo ano de 1472. E sendo filho de judeus, certamente que foi circuncidado e ter-lhe-ão posto o nome Moisés. Andaria pelos 20 anos quando os judeus foram expulsos de Castela, refugiando-se muitos deles em Portugal. Moisés e a sua família terão entrado por Miranda do Douro e ali permaneceriam por algum tempo.
Aquando do batismo forçado, na páscoa de 1497, os Valença terão sido batizados, tomando nomes cristãos. Assim, os pais ficaram a chamar-se João Rodrigues e Leonor Rodrigues e as duas irmãs que lhe conhecemos tomaram os nomes de Mécia Lopes e Francisca Rodrigues. (1) O padrinho de António foi o alcaide-mor da cidade, Álvaro Pires de Távora.
Em Miranda do Douro, António de Valença casou com Francisca de Valença, nascida em Zamora, igualmente refugiada de Espanha, filha de Diogo de Valença e Ana de Valença.
Fazendo uma comparação algo grosseira, diremos que a Casa dos Távoras funcionava para Trás-os-Montes como a Corte do Rei em Lisboa. E nessa “corte” dos Távoras, António de Valença era presença constante e ocupava lugar de destaque, nomeado que foi médico da família, (2) enquanto a sua mulher convivia e desempenhava o papel de “dama de honor” das senhoras Távora e isso “era motivo de muita inveja” entre outras “damas” de nobres e fidalgas casas trasmontanas.
António de Valença era também rendeiro, o que significa elevado poder económico e financeiro. E tomaria de renda (ou aforamento) a quinta da Vilariça, no termo de Penas Roias.
O poder financeiro e prestígio social dos Valença permitiram-lhe arranjar bons empregos e bons casamentos para os filhos, referindo-se, nomeadamente, a filha, Maria de Valença (3) que casou com Francisco Vaz Pinto, homem da nobreza, irmão de D. Diogo de Murça, reitor da universidade de Coimbra.
Se o prestígio social e poder económico colocavam António de Valença entre os mais conceituados Trasmontanos da época, o seu saber, do ponto de vista religioso, e a sua liderança entre a gente da nação judaica era ainda mais destacado. Por isso mesmo, todos o tratavam por “Mestre” António de Valença. Sabia de cor os livros da Torah e conhecia o hebraico, caldeu e aramaico. Ele próprio se afirmava “repetidor da escola de seu tio o Valensi, (4) grande letrado do tempo dos judeus”.
Mestre António era então o maior doutrinador judaico em Trás-os-Montes. Ensinava os preceitos e cerimónias da lei de Moisés; conhecia e explicava cada uma das festas e jejuns; calculava e informava a data de cada uma dessas festas e jejuns. E especialmente sabia interpretar as profecias de Daniel. E baseando-se na contagem das “semanas” do profeta, ele pregava que o Messias prometido viria até ao ano de 1572, altura em que acabaria a “triplicidade da água” – uma teoria cabalística ligada à ideia messiânica.
Por essa altura fervilhava o messianismo judaico em Trás-os-Montes e duas “sinagogas” ganharam celebridade pelos “ajuntamentos” que nelas se faziam: uma na oficina do sapateiro Diogo de Leão da Costanilha, (5) em Miranda do Douro e outra na casa de Francisco Vaz, em Mogadouro. Nesta, o oficiante “encartado” era o Mestre Valença, que explicava o conteúdo dos livros da Torah (“em pergaminho, de letras douradas”) que guardavam secretamente na mesma sinagoga, a qual fora entregue ao dono da casa por Duarte Álvares, de Chacim. Sobre o funcionamento desta “sinagoga” temos muitos e variados testemunhos, alguns incríveis, como este de Cristóvão de Castro:
- Disse que Francisco Vaz, sapateiro, morador no Mogadouro, e sua mulher são judeus e eram arrabis e tinham sinagoga em sua casa. E isto sabe porque o viu muitas vezes, porque ia lá com os outros judeus. Na qual sinagoga tinham uma tourinha com cornos de prata dourados e era do tamanho de um gato, pouco mais ou menos, a qual punham em cima de uma mesa… (6)
Mas a pregação de Mestre Valença não se limitava à sinagoga de Francisco Vaz. Não, ele foi acusado de pregar o judaísmo durante as consultas que dava, como médico, em casa dos cristãos-novos, como acontecia em Sambade na casa de Luís de Carvajal, que frequentava regularmente e com o qual partilhava cortejos na Casa dos Távoras. O mesmo acontecia em Mirandela na casa de Belchior Vaz. Vejam como o próprio Mestre contou um episódio:
- Estando ele mestre António às oitavas da Páscoa das Flores do ano passado de 1544 na vila de Mirandela, na igreja da dita vila (…) lhe falou um Belchior Vaz, filho de Guterre Vaz, do Mogadouro, genro de Dello Guarde, de Mirandela, cristãos-novos, o qual saindo da igreja chamou a ele dito autor e lhe rogou que fosse a sua casa porque tinha uma criança doente. E indo vê-la, disse a ele autor que lhe dissesse se era aquela semana em que caía a Páscoa dos judeus. E ele autor lhe perguntou para que é que queria saber e o dito Belchior Vaz lhe respondeu que era para fazer alguma das cerimónias que costumam fazer os judeus na dita páscoa para ganhar a sua alma… (7)
Tempos depois, Belchior e o Mestre estavam presos na inquisição de Évora. E tendo o Valença denunciado o amigo, que continuava negando as acusações, decidiram os inquisidores coloca-los frente a frente. Imagine-se a reação de incredulidade de Belchior Vaz! Melhor que nós fala o processo. Vejam:
- E o dito réu, chegando onde ele testemunha estava, lhe falou como amigo ao dito mestre António. E ele Mestre António a ele réu. Mas depois que o senhor inquisidor disse a ele réu que o dito Mestre António era dado contra ele por parte da justiça, ele réu se espantou muito dizendo. – Vós, Mestre António! Vós, Mestre António, sois testemunha contra mim?
Maior espanto e dramatismo encerra o episódio descrito no processo de Ana Fernandes, a Doce, (8) quando a confrontaram igualmente com o denunciante, Mestre António de Valença. Pena que a extensão do texto não nos permita aqui reproduzi-lo.
O que não podemos deixar de falar é sobre um jejum que o Mestre ensinou a Ana Doce e de que, até hoje, não encontrámos referência em nenhum outro processo – o jejum do Tu B´Shevat  – que é móvel e cai na segunda metade do mês de janeiro ou pelo mês de fevereiro. É o jejum de agradecimento a Deus e celebração pelo renascer da natureza. Significativamente aparece representado por um ramo de amendoeira em flor, a árvore que primeiro floresce na região do Mediterrâneo e marca, por excelência o renascer da vida. Os judeus que nos perdoem mas propomos que se chame o jejum das amendoeiras em flor.
Acompanhemos agora Mestre Valença em uma das frequentes deslocações que fazia a Miranda do Douro, hospedando-se, geralmente, na casa de Isabel Álvares, uma das pessoas que ele ajudou a condenar. Vejam um pedaço da sentença:
- A ré tem provado contra si por parte da justiça que folgava de praticar as coisas da lei de Moisés, ouvindo dizer dos jejuns do Kipur e Rainha Ester, estando a tudo muito afeita e as procurava que perguntassem aos judeus que sabiam mais do que ela. E de tudo se mostrava muito devota, como pessoa que era apóstata – e isto diz Mestre António de Valença. (9)
Resta dizer que, no seguimento da “excursão” de Francisco Gil por terras trasmontanas, em 1543, Mestre António de Valença foi preso pela inquisição, ficando primeiramente metido das cadeias do Porto, às ordens do bispo/inquisidor D. Baltasar Limpo e sendo depois encaminhado para o tribunal de Évora. Na cadeia ele colaborou grandemente com a inquisição, denunciando mais de uma centena de compatriotas e fazendo para os inquisidores uma compilação das festas e cerimónias judaicas – o que, para aqueles, seria de extrema importância. Por isso mesmo ele ganhou o perdão e a liberdade, enquanto a sua mulher terminou queimada nas fogueiras da inquisição. (10)

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-Francisca Rodrigues  casou com Diogo Pereira e Mécia com Francisco Lopes, que foi juiz em Mogadouro.
2-Para além do “físico” Valença, na “corte” dos Távoras, em Mogadouro, destacavam-se oficiais da estirpe judaica como o ferrador Henrique Dias, a criada Ana Dias, o alfaiate Diogo Gomes, o sapateiro Bernardo da Rua…
3-Maria de Valença faleceu no dia em que prenderam os pais, deixando 9 filhos: 6 rapazes e 3 raparigas.
4-Referia-se certamente a Samuel ben Abraham Valensi (1435-1487), um grande talmudista espanhol, morador em Zamora.
5-Diogo da Costanilha pregava a vinda do Messias baseando-se nas Trovas do Bandarra. ANDRADE e GUIMARÃES – Judeus em Trás-os-Montes, A Rua da Costanilha, ed. Âncora, Lisboa, 2015.
6-ANTT, inq. Évora, pº 4434, de Cristóvão de Castro. Este, diria depois que no processo estavam escritas coisas que ele não dissera e, chorando, respondia ao malfadado “caçador de judeus” Francisco Gil: - Que posso eu fazer senão ratificar minhas confissões?!
7-IDEM, pº 5165, de Belchior Vaz.
8-IDEM, pº 4637, de Afonso Garcia. ANDRADE e GUIMARÃES – Miranda do Douro 1544: Ana Doce traída pelo mestre Valença, in: jornal Terra Quente, de 1.3.2009.
9-IDEM, pº 9020, de Isabel Álvares.
10-IDEM, pº 8232, de Mestre António de Valença; pº 7794, de Francisca de Valença.
TAVARES, Maria José Ferro – "Mobilidade e Alteridade” : Quadros do quotidiano dos cristãos-novos sefarditas, in: In the Iberian Peninsula and Beyond: A history of Jews and Muslims ( 15th -17th centuries) vol.1, pp 26 e 27,  edited by José Alberto Tavim, Maria Filomena Barros and Lúcia Mucznik,  2015
IDEM – Para o Estudo dos Judeus em Trás-os-Montes sec XVI, in: Cultura História e Filosofia, vol VJ, pp.371-417, Lisboa, 1984.
 

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Luís da Serra (Freixo de Numão, 1583 – 1642)

Terá nascido por 1583, na vila de freixo de Numão, terra de seu pai, João da Serra, lavrador e de seus avós paternos. A mãe, Branca Lopes, seria originária de Foz Côa. Tinha uma dúzia de tios paternos (quase todos ausentes em Castela) e da parte da mãe apenas lhe conhecemos um tio, Gabriel Lopes, que casou e morou em Foz Côa e uma tia, Clara Lopes, cujo neto, Gabriel Ferreira, casou na família Isidro, de Torre de Moncorvo, com Isabel Cardosa. (1)

Contava uns 12 anos quando o levaram para Castela, fixando morada na povoação de Torrijos. Andaria pelos 30 anos quando regressou a Portugal para casar em Lamego, com Leonor Cardosa. Na mesma cidade fixou o casal residência e ali lhe nasceram 3 filhos: João, Francisco e Diogo da Serra Cardoso.

Luís governava a vida comprando e vendendo tecidos: um pequeno mercador ambulante, a avaliar pelos bens que lhe foram inventariados quando o prenderam na inquisição de Coimbra, em 20 de Abril de 1618 (2) e pelo teor das denúncias registadas no processo, bem como da sua defesa e contraditas. Verifica-se que ele frequentava feiras tão diversa e distantes como a de Bragança, Lixa, Vila Viçosa, Foz Côa… que ia a Amarante a comprar panos de linho, enquanto os panos de lã os ia buscar ao Alentejo. A venda era preferencialmente feita em Castela. Aliás, há testemunhos referidos ao tempo de solteiro e morando em Torrijos dizendo que ele e os irmãos “andavam vendendo lenço de lugar em lugar”.

Por quase dois anos Luís se defendeu dizendo que era cristão e os seus inimigos lhe levantaram acusações falsas. Acabou por alterar a sua posição e, na audiência de 26.2.1620, confessou que fora judeu e que os seus pais o doutrinaram a ele e aos irmãos e que todos os atos que fazia de cristão eram “por cumprimento do mundo”. Agora, porém, fora alumiado pelo Espírito Santo e queria confessar seus pecados e deles pedir misericórdia e perdão.

Saiu condenado em cárcere e hábito penitencial perpétuo, no auto da fé celebrado em Coimbra em 29 de março de 1620, posto o que foi mandado cumprir sua penitência em Lamego, sendo-lhe o sambenito tirado em 17 de Outubro seguinte, pelo comissário local do santo ofício, António de Sotto Maior. 

Pouco sabemos da vida de Luís nos anos que seguiram, para além de que sua mulher foi também presa pela inquisição de Coimbra em Março de 1623 (3) e que em Maio do ano seguinte lhe foi passado termo de soltura.

Por 1629, Leonor era falecida e Luís da Serra casou de novo, em Quintela de Lampaças, termo de Bragança, com Violante Rodrigues. Entraria bem na comunidade, pois o nomearam mordomo da confraria da Senhora do Rosário e, por sua ação e requerimento, conseguiriam os cristãos-novos da terra autorização episcopal para pegarem nas varas do pálio, privilégio de que geralmente fruíam os homens mais grados da terra e de garantida cristandade.

Por outro lado, ele e o seu sogro, António Rodrigues Marto, (4) gozariam de certo prestígio (ou reverência) e exerceriam uma certa liderança no interior da comunidade marrana da terra, na medida em que ambos tinham “estagiado” nas masmorras da inquisição, prova concreta de sua inclinação judaica. A ponto de a casa do Marto, Negas de alcunha, ser o local onde se reuniam em sinagoga e Luís da Serra desempenhava o papel de “chamador”.

Verdadeiro escândalo, que abalou Quintela e Trás-os-Montes foi a celebração de uma “missa judaica” na sinagoga do Marto no dia 1 e primeiro domingo de Outubro de 1634. Vejamos como Beatriz Lopes, uma das participantes na cerimónia, a descreveu:

- Estando todas as 23 pessoas (5) em casa de António Rodrigues Negas, em uma câmara sobradada e nela estava uma mesa coberta com uma toalha e em cima 4 tigelas e em cada uma sua torcida acesa, e não dá fé que em cima da mesa estivesse imagem alguma, somente estava um livro; e tanto que as ditas pessoas estiveram juntas, saiu de outra câmara o dito António Rodrigues Negas vestido com uma sobrepeliz e trazia uma vestimenta branca e vermelha, do feitio daquelas com que se diz missa e trazia um barrete na cabeça (…) e se pôs a ler no livro que nela estava, e enquanto leu estava com a cabeça descoberta; e estando assim um pouco se virou e falou com todas as ditas pessoas dizendo que faziam aquele ajuntamento por guarda da lei de Moisés (…) e todas aquelas pessoas disseram que estavam em jejum naquele dia por guarda da lei de Moisés e que era o dia grande (…) o dito ajuntamento durou até de manhã…

Não vamos falar das devassas, inquéritos e visitações inquisitoriais que se seguiram, nem das fugas (mais de 40) e prisões (umas 20) feitas pela inquisição – uma autêntica razia, uma completa limpeza étnica e da heresia judaica. (6) Diremos tão só que o oficiante e dono da “sinagoga” faleceu antes de chegar o mandado de prisão e que Luís da Serra foi um dos que pagaram com a vida a participação na “missa”. Acompanhemos o seu processo.

A ordem de prisão, de Luís e mais 18 moradores de Quintela, foi dada em Lisboa pelo conselho Geral, em 1.12.1637, essencialmente baseada na participação da “missa judaica”. Mais de metade não foram presos porque tinham fugido. E muitos se espantavam porque Luís não fugia, ele que corria o maior perigo pois que já antes fora penitenciado em auto da fé. Pelo contrário, ele  afirmava publicamente:

- (…) Que não havia de fugir, que já se dava por preso, mas que os filhos o vingariam (…) havia de deixar por bênção e maldição a seus filhos que matassem à espingarda a quem o prendesse, onde quer que estivesse.

Fanfarrão, quezilento, homem de expedientes e fértil imaginação, Luís “não fazia outro ofício mais que jogar” – no dizer de uma testemunha. E, no jogo, ou qualquer outra ocasião tinha o hábito de jurar, usando uma estranha fórmula: - “Papudo seja eu se…” com isto querendo ofender os “papistas” - seguidores do papa.

As suas contraditas mostram-nos um homem em luta contra o mundo todo. Eram seus inimigos todos os cristãos-velhos, conforme declarou aos inquisidores:

- Disse que se acumularam e foram de assuada a ele, com armas, chuços, manguais, pedras, arremeteram sobre grandes dúvidas que tiveram para o matar e assim como mulheres, filhos, machos e fêmeas, meninos e meninas (…)” todos mata, mata a estes cães judeus perros…”

E eram também seus inimigos os de sua nação, conforme declarou, na mesma audiência:

- Disse que todos os cristãos-novos de Quintela, homens e mulheres, moços e moças, todos de mão armada se ajuntaram contra ele réu e seus filhos dizendo “morra este soberbo inimigo pois somos tantos, não queira ter domínio sobre nós; a todos nós quer avassalar, como senhor da terra”. E lhes respondeu o réu “que sete lugares daqueles não lhe faziam papo e todos pisaria debaixo dos pés”.

Especialmente visados eram os padres, de Quintela e das aldeias em redor. Vejam o que ele disse para os inquisidores:

- O abade de Macedo do Mato, o abade de Carrazedo, o abade de Vinhas e o de Sendas e o encomendado de Vale da Porca e seus curas, todos são suspeitos por dúvidas que teve com todos, em Bragança, onde lhes chamou nomes afrontosos como filhos da puta, comedores desavergonhados.

Por detrás desta máscara haveria um outro Luís da Serra que, de manhã chegava à porta ou à janela e ficava “rezando para o nascente do sol” orações como estas que ditou para o processo:

Alto Deus de Abraham

E rei forte de Israel

Tu que ouviste a Ismael

Ouve a minha oração

Tu que nas grandes alturas

Te aposentas, Senhor,

Ouve a mim pecador

Que te chamo das baixuras.

 

Terminamos transcrevendo a informação enviada pelo abade de Quintela para o tribunal da inquisição:

 

- Certifico eu Paulo Peixoto dos Santos abade de Quintela de Lampaças que nesta igreja  de nossa Senhora da Assunção  de Quintela fica armado   um retrato  de Luís da Serra  que neste lugar  foi morador  o qual foi queimado  por herege  na cidade de Lisboa  no auto que se fez a 6 de Abril de 1642.

 

 

 

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:

1-ANDRADE e GUMARÃES, Os Isidro, a Epopeia de uma Família de Cristãos-novos de Torre de Moncorvo, ed. Lema d´Origem, Porto, 2012.

2-ANTT, inq. Coimbra, pº 5360, de Luís da Serra.

3-IDEM, pº 9333, de Leonor Cardosa.

4-IDEM, pº 2261, de António Rodrigues Marto.

5-IDEM, pº 2007, de Beatriz Lopes. Os números divergem. A própria Beatriz, dá em seguida, o nome de 26 participantes.

6- ANDRADE e GUIMARÃES – Nas Rotas dos Judeus em Trás-os-Montes, ed. Âncora, Lisboa, 2013.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Fernando (Abraham) Dias Fernandes (n. Pastrana, 1665 – Londres d.1742)

Nasceu em Pastrana, Castela, por 1665. Seu pai, Diogo Dias Fernandes, originário de Muxagata, concelho de de Foz Côa, era mercador e certamente andava cá e lá, de um e outro lado da fronteira. Por duas vezes ficou viúvo e o terceiro casamento foi com Joana Correia Solis, natural de Castela que lhe deu 4 filhos machos, entre eles o Fernando.

Era miúdo, menor de 8 anos, quando veio de Pastrana para Muxagata, para casa de seu tio segundo, Luís Francisco, que o meteu a estudar na escola da terra, (1) antes de o iniciar no mundo dos negócios e da cobrança de rendas. E a primeira saída, em tais funções, seria para a região de Chaves, assentando em Rio Torto, onde a família ganharia espaço.

Por 1683, foi casar na vila de Freixo de Numão, com Maria Gabriela Pinheiro, sua prima. Ali estabeleceram morada e lá lhe nasceram dois filhos e uma filha. Seria um dos principais da terra, já que o nomearam mordomo da confraria da Senhora da Carvalha. E sendo mordomo, promoveu uma grande festa com missa cantada, sermão… comédias e danças… “e dando um vestido à dita Senhora, de primavera”. Dirá mais tarde que a festa foi organizada em ação de graças a Nossa Senhora por lhe ter curado a sua mulher de uma grave doença, estando despedida dos médicos. E isso mesmo foi atestado pelo pároco e homens da nobreza da terra.

Em 1691 a família mudou-se para o Porto, seguindo o tio Luís Francisco, atrás nomeado que, na Invicta, conseguiu tomar de arrendamento o consulado da alfândega. E pela mão do tio, que não tinha filhos, e em sua substituição, Fernando desempenhou funções de feitor da mesma alfândega. A sua casa de morada era junto à capela de Nª Sª do Terreiro, freguesia de S. Nicolau, capela que então foi reedificada, sendo ele foi o primeiro a contribuir.

Mas não se pense que ele era um mero burocrata, a fazer despachos, “varejar” navios e taxar mercadorias. Antes se revelou um empresário dinâmico, um mercador de largo trato, atuando em mercados estrangeiros. No Brasil mandava comprar açúcar, tabaco e couros que vendia no reino e exportava para Espanha, Holanda, Inglaterra... dali recebendo tecidos e ferragens. Vejam, em prova, o seu próprio testemunho:

- Do Brasil lhe vieram na frota passada, em diferentes navios, 20 caixas de açúcar, as quais lhe mandou de Pernambuco António Rodrigues Campelo; do Rio de Janeiro, José Gomes da Silva; da Baía, Luís Mendes de Morais, e o seu comissário João Francisco, todas procedidas de efeitos que ele declarante havia mandado para as mesmas partes. (…) E que ele declarante é devedor a Luís da Costa, homem de negócio, em Londres, da quantia de 900 e tantos mil réis, procedidos de fazendas que mandou a ele declarante, da qual dívida lhe havia passado uma letra… (2)

Neste comércio internacional, o transporte marítimo apresentava excecional rentabilidade. E Fernando Dias tornou-se armador, proprietário de, pelo menos, um navio, chamado S. Miguel, o Anjo, que em fevereiro de cada ano zarpava para o Brasil, regressando na frota de setembro. E falecendo o piloto do navio, José Rodrigues Arão, foi o seu filho Diogo Dias Fernandes que assumiu aquele posto, contando apenas uns 18 anos! Aquele barco acabaria por afundar-se no rio Tejo e teria Fernando encomendado a construção de outro, quando foi preso.

As viagens transatlânticas eram deveras perigosas e frequentes as perdas de mercadorias e de navios. Por isso a atividade seguradora apresentava-se a Fernando Dias como um vasto campo a explorar. Obviamente que esta atividade envolvia riscos e quando os percalços aconteciam, Dias Fernandes tudo fazia para fugir à indemnização devida. Temos notícia de um pleito com um segurado cujo navio e mercadoria se perdeu na viagem pelo rio Douro, entre o Porto e Foz Tua. (3)

Em 1700, 9 anos depois de chegar ao Porto, o círculo empresarial da cidade apresentava-se já pequeno para os projetos de Fernando, apoiado pelo tio Luís Francisco. Com efeito, de parceria com Pedro Furtado, eles tomaram o arrendamento do consulado da alfândega de Lisboa. Luís Francisco conseguiu ainda o contrato do tabaco na capital do reino, o qual andava por mãos do contratador Diogo Nunes Pereira. Assim, e como lugar-tenente do tio, em Janeiro de 1701, Fernando Dias e a família abandonaram o Porto e foram estabelecer-se em Lisboa. A sua primeira casa de morada foi junto à Sé, transferindo-se depois para o Rossio, para a denominada “casa dos degolados”.

Do tempo de sua morada à Sé, recordamos um episódio acontecido no Terreiro do Paço em que, queixando-se ele a Gaspar Mendes Henriques da falta de carvão em casa, este respondeu que fosse à loja e que para o conhecerem e lhe darem o carvão “bastava saberem que ele era genro do Medina” e entretanto lhe mandaria vir mais carvão de Abrantes. E esta nota é interessante, pois que ainda hoje é daquelas partes que se faz o abastecimento de carvão a muitas regiões deste país, nomeadamente a Trás-os-Montes.

Estamos então em Lisboa, em Março de 1703, quando a inquisição prendeu Fernando Dias Fernandes. Entre as muitas práticas de judaísmo de que foi acusado, uma se destacava: a de frequentar as “sinagogas” de Diogo Henriques Julião e de Manuel de Aguilar e ele próprio dar “sinagoga” em sua casa, no Porto. (4) Interessante que na sinagoga de Diogo Julião entravam homens e mulheres, enquanto as outras duas eram apenas frequentadas por homens.

Impossível resumir aqui o seu processo. Diremos tão só que a sua defesa é muito perspicaz, com muitos pedidos de esclarecimento e reperguntas aos denunciantes. Muitos interessantes são também as contraditas apresentadas, que permitem vislumbrar quadros muito vivos e reais do ambiente social em que o contratador Fernando Dias se movimentava. A título de exemplo, veja-se a contradita apresentada contra um presumível denunciante:

- Teve ele réu uma pendência com Rodrigo Álvares da Fonseca, irmão do dito Fernão da Fonseca, por causa de umas peças de baeta que se haviam de tirar do navio Nª Sª da Graça, que naufragou na costa de Vila do Conde (…) e um tio do réu, por nome Luís Francisco (…) contratador do consulado, fez tomadia de umas pipas de vinho ao dito Rodrigo Álvares da Fonseca, que importaram em cento e tantos mil réis (…) e também mandou dar varejo em um navio, por nome Madre de Deus, que era do dito Rodrigo Álvares da Fonseca e irmão e cunhado Domingos da Fonseca, que mandavam para Pernambuco, e lhe fez tomadia em diferentes fazendas sonegadas aos direitos, que importou em mais de 4 contos de réis…

Resta dizer que Fernando Dias Fernandes acabou condenado em hábito penitencial perpétuo no auto da fé celebrado ao Paço da Inquisição em 12 de setembro de 1706. Posto em liberdade, fugiu com a família para Inglaterra onde se fez circuncidar tomando o nome judeu de Abraham Dias Fernandes. De Inglaterra continuou comerciando com Portugal e para facilitar contactos e evitar sequestros de mercadorias, usava o nome de Miguel Viana. Em 1743 ainda era vivo, pois que nesse ano fez seu testamento, em língua portuguesa, sendo posteriormente traduzido para inglês. (5)

 

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:

1-Na escola, em Muxagata, Fernando teve por companheiro o Dr. António Botelho da Mesquita, homem da principal família de Freixo de Numão e o futuro padre Simão Nunes. Sinal de importância e eficácia daquela escola para chamar alunos de outro município?

2-ANTT, inq. Lisboa, pº 2014, de Fernando Dias Fernandes.

3-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… André Garcia de Miranda, in: jornal Nordeste nº 1078, de 11.7.2017.

4-Pº 2014, tif 69, denúncia de Francisco da Costa, familiar do santo ofício: - (…) Diogo Henriques Julião, que tinha grande negócio, que vivia na Rua Nova e hoje está na Holanda, aonde logo se circuncidou (…) que em sua casa se fazia sinagoga, porque em certos dias da semana se ajuntavam na mesma casa a maior parte dos homens da nação juntamente mulheres e saíam de noite (…) E que estes ajuntamentos se faziam hoje em casa de Manuel de Aguilar, estanqueiro do tabaco, que viera do reino de Castela e assiste nesta cidade há 8 anos, que é morador ao princípio da Rua da Reboleira (…) porque todo o homem da nação desta cidade e os que a ela veem, todos vão passar a sua casa, e também presume que em casa de Fernando Dias Fernandes fazem também sinagoga, porque também concorrem na mesma casa, e porque são particulares amigos e parceiros no negócio, que o trazem muito grande e Fernando Dias Fernandes é homem baixo, refeito de corpo, a cara cheia, cabelo castanho escuro…

5- Esta informação foi-nos transmitida pela Drª Carla Vieira, da cátedra de estudos sefarditas, a quem, penhoradamente, agradecemos.

 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - André Garcia de Miranda (n. Bragança, 1673)

André Garcia de Miranda era filho de Gaspar Garcia e Leonor Nunes de Miranda. Como o sobrenome indica, a família era originária de Miranda do Douro, cidade onde viveram os seus avós: Pedro de Miranda e Ventura Nunes. E foram as cerimónias e ritos judaicos em volta da morte e amortalhamento de Pedro Miranda, por 1635, que originaram a maior parte das denúncias feitas perante o licenciado Diogo de Sousa, inquisidor de Coimbra, na visitação que fez à cidade de Miranda em fevereiro de 1638 e levaram mais tarde à prisão de Ventura Nunes.(1)

Não sabemos se Leonor Nunes nasceu antes ou depois da morte de seu pai. Sabemos é que por 1652 ela já vivia em Bragança e estava casada com Gaspar. Em 1664, ela e o marido foram apresentar-se na inquisição de Coimbra, sendo mandados regressar a casa.(2)

Em Bragança, por 1673, nasceu André Garcia de Miranda, que cedo começaria a correr mundo, a mercadejar, internando-se por Castela, assistindo nas cidades de Madrid, Valhadolid, Rio Seco, Medina del Campo… Em Portugal, disse que conhecia “a maior parte das cidades e vilas”.

No ano de 1694 ainda morava naquela cidade trasmontana, sendo eleito mordomo da confraria de Nossa Senhora da Rosa, sita na igreja de Santa Maria, conforme registo no competente livro, folha 141:

— Aos 6 de Setembro de 1694, nesta igreja de Santa Maria, aonde está a dita confraria de Nossa Senhora da Rosa, aí em mesa, se fez eleição dos oficiais que haviam de servir a dita confraria e foram eleitos para juiz Manuel George; para mordomos André Garcia e António Rodrigues Chisme; para escrivão o padre Francisco Pires e para procurador António de Afonseca, tecelão de veludo…(3)

Aos 30 anos, quando a inquisição o prendeu, André continuava solteiro e a trabalhar por conta do pai, “um velho que se ocupava de rendas e mandava fazendas para fora do reino”, então residente em Lisboa, na Fancaria de Cima. Uma das culpas que lançaram, e a principal, referia-se à celebração do Kipur (a maior festa do calendário judaico) no ano de 1699, em casa de Alexandre Pimentel onde se juntou um grupo de cristãos-novos Brigantinos moradores na capital e aparentados entre si, a saber:

— Eliseu Pimentel, irmão deste, administrador das cartas de jogar e solimão (…); e dois filhos de Alexandre Pimentel (João e António); e Manuel da Costa Miranda, parente dos ditos Pimentel, morador na Correaria; e Alexandre da Costa Miranda, irmão do dito Manuel, que embarca fazendas para fora; e outro irmão dos mesmos, chamado Domingos da Costa Miranda, contratador; e António de Morais, parente dos mesmos, homem preto, más cores, homem doente; e André Garcia de Miranda, parente dos mesmos; e João da Costa Vila Real, torcedor de sedas a Mata Porcos, natural de Bragança; e com um sobrinho do mesmo…(4)

Resta dizer que Domingos da Costa Miranda era casado com Filipa Garcia, irmã de André e que o casal tinha já uns 7 filhos. Ambos seriam presos de seguida.(5)

André tinha outra irmã, chamada Isabel Nunes, então com 45 anos, a qual era já viúva e mãe de 3 filhos. Ela e os dois mais velhos, seriam também processados pelo santo ofício logo em seguida.(6)

Fiquemos agora com o nosso biografado, que “se ocupava de rendas e de mandar fazendas para fora do reino”, por conta do pai “que se acha já velho e não pode escrever”. Significa isto que o devemos incluir na classe dos rendeiros, uma classe prestigiada e necessariamente endinheirada. Para além de rendeiro, André seria um importador/exportador e a sua rota comercial ligá-lo-ia essencialmente ao Brasil, de onde importava açúcar e tabaco, entre outras mercadorias. Uma parte era vendida no reino, a retalhistas, e outra parte era encaminhada para Castela. Ali, o seu correspondente chamava-se João Garcia de Guinea, que, por seu turno, lhe remetia fazendas, referindo-se estamenhas, sedas, tafetás...

Ignoramos quem fosse este João Garcia de Guinea, colocando, no entanto, a hipótese de serem parentes, dado que na generalidade as redes comerciais eram de natureza familiar. Na rede de distribuição de tabaco na região de Zamora – Salamanca dominava Gabriel Sola, originário da Guarda, e também para ele o nosso biografado despachava “partidas de tabaco em folha”, o que causava rivalidades com outros fornecedores/distribuidores como era o caso de um João Dias Pereira, de Lebução, termo de Chaves.

No mundo dos negócios aconteciam percalços, muito em particular tratando-se de mercadorias e transportes marítimos e fluviais. Por isso as taxas cobradas pelos seguradores eram particularmente elevadas, acima de 15% sobre o valor segurado.

Em determinada altura André Garcia e o cunhado Domingos da Costa Miranda procederam à importação de dois barcos de açúcar do Brasil. E a empresa proprietária barcos, assim como a seguradora pertenciam aos Dias Fernandes, cristãos-novos originários de Muxagata/Freixo de Numão. A mercadoria foi desalfandegada na cidade do Porto e uma parte foi metida em barcos, seguindo pelo rio Douro até ao porto de Foz Tua, de onde seria transportada em bestas ou carros de bois, para Bragança. Aconteceu que um dos barcos se perdeu em um ponto do rio e… segurados e seguradores andaram em demandas na justiça, já que estes se negavam a pagar os prejuízos, lançando a suspeita de perda fraudulenta dos açúcares. O caso foi resolvido na justiça. Mas ficaram ódios, como consta da confissão de Fernando Dias Fernandes:

— Vindo a esta cidade, dali a alguns meses o dito Alexandre da Costa Miranda, com outro seu parente a fazer o mesmo negócio de açúcares e carregá-los também pelo Douro  acima  de que ele testemunha lhe fez a apólice não quiseram que lhes segurasse  o réu  e seu tio Luís Fernandes  dizendo que não queriam nada com essa canalha.(7)  

Este episódio, bem interessante para o estudo das comunicações em Trás-os-Montes, foi apresentado por ele aos inquisidores e é uma das contraditas do processo. Este é um processo normal, em que o réu começa por negar tudo, mas, face às evidências da acusação, acaba por confessar e admitir que andou errado na fé. O que tem de especial o processo de André Garcia é o seu comportamento na cela, as rezas e jejuns que fazia e que foram contadas pelos vigias.

Não vamos descrever os pormenores da separação da carne e dos ossos, o esmiolar do pão para meter migalhas no fundo da malga do caldo, a fim de mostrar que comera, quando, na verdade, nada metera à boca, nem sequer uma gota de água. A carne, bem desfeita, e o caldo vertia-os em seguida no vaso dos dejetos. E a palangana, depois de lavada, a punha “emborcada sobre um ramo de alecrim”.

Depois, lavava as mãos por 3 vezes e... Melhor do que nós falam as próprias testemunhas, em linguagem bem típica e saborosa. Vejam:

— E logo veio aos pés da cama, e de cima dela tirou um roupão de baeta encarnado e o vestiu e se pôs em cima de uma esteira de palma, que tinha à ilharga da cama, e em pé se pôs em oração, olhando para a parede (…) e na grade onde tinha um fumo pendurado (…) fazendo com as mãos repetidas ações, pondo-as abertas no ar e fechando-as (…) e no fim da oração fez duas cortesia com o pé para trás, de mão beijada…

Gostaríamos de terminar com uma oração que ele recitou perante os inquisidores. É uma oração em castelhano, muito longa, pelo que a não podemos aqui reproduzir. Transcrevemos apenas uns trechos:

— Diós soberano y eterno, princípio de los princípios, sin princípio ab eterno, de quien todo el depende, infinito y inmenso, majestad de las majestades, glória y honra de tu mismo (…) Quisiera Señor tener echo un altar en mi pecho y ser sacrário mi alma (…) Fuisteis quien me sacaste del no ser al ser que tengo…

 

Notas e Bibliografia:

1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 1943, de Madalena Garcia; IDEM, pº 8228 e 8228-1, de Ventura Nunes. No seguimento deste processo, Ventura Nunes foi condenada em degredo para o Sardoal, depois comutado para Torre de Moncorvo, de onde fugiu para Castela.

2 - IDEM, inq. de Lisboa, pº 4110, de Gaspar Garcia; pº 7526, de Leonor Nunes Miranda.

3 - Repare-se que, à exceção do juiz e do padre, cuja “nação” ignoramos, todos os outros são cristãos-novos, com “ficha” na inquisição.

4 - ANTT, inq. Lisboa, pº2781, de André Garcia de Miranda.

5 - IDEM, pº 11846, de Filipa Garcia; pº 1811. De Domingos da Costa Miranda.

6 - IDEM, pº 3040, de Isabel Nunes; pº 9995, de Luís Álvares Nunes, estudante de filosofia; pº22, de Brites Nunes.

7 - IDEM, pº 2014, de Fernando Dias Fernandes, tif 439.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Manoel Cortiços de Villasante (1603 – 1650)

Esplendian Nunes é o primeiro que nos aparece com o sobrenome Cortiços possivelmente  por ter vivido  naquela vila medieval , hoje concelho de Macedo Cavaleiros, sendo filho   de Duarte Nunes,   que se dizia cavaleiro e “vivia de sua fazenda”,  natural de Cortiços, e de Leonor Nunes.  Segundo informação colhida no processo de Duarte Nunes Nogueira, o casal foi morador na Galiza. (1) Esplendián era casado com Beatriz Nunes de Castr, que lhe deu vários filhos, nomeadamente um Duarte Nunes Cortiços e um Gaspar Nunes Cortiços que, em data que desconhecemos, terão abalado para a Flandres, o primeiro deles fazendo carreira no exército de Flipe II de Espanha. (2)
Um terceiro filho chamou-se António Lopes Cortiços que, em finais do século de 500, casou com Luísa de Almeida, irmã de Manuel de Almeida Castro. O casal seguiu para Castela, fixando-se em Valhadolid onde Luísa tinha uma tia materna casada com o fidalgo D. Fernando Villasante. Isso permitiu a António Cortiços, por um lado, aproximar-se da Corte e consolidar uma empresa de importação de especiarias e pedras preciosas da Índia, açúcares do Brasil e telas da Flandres e, por outro, ascender à Ordem de Calatrava. (3)
Para ganhar mais consideração e respeito passou a usar o sobrenome Villasante, título que comprara a uma nobre família castelhana, já referida, por uma pensão mensal de 50 ducados, mais um fato de verão e outro de inverno. A condição essencial era que o reconhecessem como membro da família, e dessem público testemunho disso. Este facto seria fundamental para ele ascender à classe da nobreza, como se verá.
Vivendo na dependência da Corte, António Cortiços, com ela se mudou também para Madrid, instalando-se na “Calle  de Preciados”. Prova da sua ascensão no mundo empresarial foi a tomada das rendas da exportação das lãs e dos negócios dos portos secos, então já com a ajuda dos filhos, todos trabalhando em rede. De seus filhos, citamos:
1-Sebastião Lopes Cortiços, nascido em 20.11.1617, que casou com uma sobrinha, filha de seu irmão Manuel e, anos depois, ficou a dirigir as empresas da família.
2-Luísa Cortiços, que casou com seu primo Sebastião Lopes Ferro, futuro marquês de Castro Forte.
3-Manuel Cortiços, o grande construtor da chamada “Casa Cortiços”, uma das maiores casas empresariais naquele tempo. É sobre ele que vamos falar.
Andaria nos 25 anos quando o pai faleceu e Manuel tomou a direção das empresas da família. Era ainda solteiro mas o casamento estaria já apalavrado com sua prima Luísa Ferro, irmã de Sebastião Lopes Ferro.
Por 1634, Manuel Cortiços era tido como “assentista e factor d´el-rey”, significando isto que ele entrara na atividade bancária. Em breve ascenderia à posição de “banqueiro do rei”.
E como banqueiro de confiança, o rei delegou nele a nomeação de 16 capitães comandantes de outras tantas companhias de cavalaria empenhadas na guerra da Catalunha. Obviamente que os fornecimentos de géneros e ordenados, não apenas àquelas tropas, mas também aos destacamentos da Flandres eram assegurados pela Casa Cortiços, daí resultando bons lucros, naturalmente. (4)
Além de banqueiro, Manuel Cortiços Villasante revelou-se um cortesão exemplar, e foi, por Sua Alteza o rei Filipe IV, chamado à gestão do erário público, nomeando-o para o seu Conselho, com o cargo de “secretário da Contaduria Mayor de Cuentas y de las Cortes e Ayuntamientos de Castilla y León, escribano mayor y perpetuo de ellos, secretario de la comision y administración de millones y “factor” general de los servicios del reino”. (5)
A própria inquisição de Espanha fez questão de o contemplar com a nomeação de “Familiar do Santo Ofício”. E, no entanto, havia já denúncias de judaísmo contra ele!
Manuel Cortiços morreu de súbito, em 3 de setembro de 1650. Por sua alma foram dadas muitas esmolas a pessoas da nação hebreia, para que fizessem jejuns judaicos. E isso chegou ao conhecimento da inquisição, que lançou uma vaga de prisões entre familiares e amigos dos Cortiços, grandes mercadores e assentistas. Um verdadeiro terramoto social que abalou a burguesia cristã-nova portuguesa de Madrid. Curioso: sendo decretada a prisão da viúva, D. Luísa Cortiços, acusada por 32 testemunhas, ela acabou por não ser presa! E Sebastião Lopes Cortiços, seu irmão, igualmente acusado, também não foi preso!

Este último,  sucedeu ao irmão na direção da casa e, no que diz respeito a cargos honoríficos, Sebastião ultrapassou o  seu irmão Manuel  Cortiços. E, sem renunciar aos cargos que detinha nas Finanças do Estado, tomou para so o assento da exportação de lãs de Espanha para a Itália.
Segundo Federica Ruspio, os Cortiços Villasante detiveram aquele contrato de exportação da lã no anos 1621-1629 e 1631-1636. Cederam-no a Simão da Fonseca Pina que o administrou de 1637 a 1650. Obtiveram-no de novo entre 1682 e 1692. No decurso da sua carreira destingiram-se como compradores entre 1638 – 1652, e eram dos principais no que dizia respeito à lã de Segóvia. No que toca a Sebastião Cortiços, entre 1662 e 1665, ele foi responsável por 80% da lã exportada pelo porto  de Cartagena .
A mesma autora fala circunstanciadamente sobre a presença oficial de Sebastião Cortiços na cidade de Veneza, onde foi recebido  com toda a pompa e circunstância  pelas autoridades  da República, no ano de 1670, sendo homenageado com a representação de uma peça teatral da autoria do célebre Marco Boschini intitulada “La Regata único cimento  marítimo a l’ uso  venezian, rapresentà il presente ano sul Gran Canal de Venezia in honor  de l´ilustrissima ecelenza del sig.  cavalier don Sebastião  Cortizos de ordem de Calatrava  del  consegio dá azienda  de S. M.  Católica. (6)

De facto, sob a sua gerência e com Agostinho da Fonseca, seu parente e correspondente da Casa Cortiços naquela cidade, foram investidos por conta da empresa cerca de 190 000 ducados em imóveis na cidade lagunar e em Terraferma. Explica-se, assim a homenagem a este grande empresário, investidor estrangeiro.

À morte de Sebastião Lopes Cortiços, sucedeu-lhe, na direção da Casa, o seu sobrinho Manuel José Cortiços, filho do fundador Manuel Cortiços Villasante. Tal como o pai e o tio, também o Manuel José foi elevado à categoria de cavaleiro da Ordem de Calatrava, em 1668, e distinguido com o título de visconde de Valfuentes. Em 1674, ascenderia a marquês de Vila Flores.
Manuel José afirmava-se então como o assentista mais abastado e poderoso da corte de Carlos II. Contudo no ano de 1678, Manuel José foi constrangido a abandonar Madrid e “refugiar-se” em Nápoles  para escapar às disputas com coroa e os credores.
Da situação familiar de Manuel José, diremos que casou duas vezes. Primeiro com Mécia Ferro de Castro, sua prima e sobrinha, filha de Sebastião Ferro de Castro, seu tio, e de Luísa Cortiços, sua irmã. Deste matrimónio houve dois filhos: Sebastião Manuel Cortiços e Luísa Ferro Cortiços. 
Depois do falecimento de sua mulher, Manuel José voltou a casar, desta vez  com uma senhora da família dos condes de Vergheyth, de Bruxelas, da qual teve Giovanna.
No início dos anos 80, Manuel José foi estabelecer-se em Veneza, próximo da residência de Agostinho da Fonseca, falecido em 1681. (7) Ali morreu o seu único herdeiro masculino Sebastião Manuel Cortiços, em 1689,  e ele próprio  em 1691 .
Da família Cortiços Villasante restou Luísa Teresa Cortiços, que, em 1693, casou com Francesco de Galuzi mudando na ocasião a sua residência para Nápoles, e Giovanna Cortiços, que em 1705 , na  cidade lagunar  casou com Bartolomeu Santa Sofia. (8) 

NOTAS e BIBLIOGRAFIA
1- A.N.T.T. Inquisição de Lisboa  processo 10875 de Duarte Nunes Nogueira, solteiro , 50 anos  natural de Bragança,  morador  na vila de S. Paulo de Luanda, Angola, ouvidor  geral daquele reino, primo de Espledián. ANDRADE e GUIMARÃES, Nós transmontanos sefarditas e marranos, Duarte Nunes Nogueira  - Jornal Nordeste - 7 Fevereiro 2017.  

2- Andrade e Guimarães –Nós transmontanos sefarditas e marranos, Manuel de Almeida Castro  - Jornal Nordeste - 27 Dezembro 2016.  

3-ANDRADE e GUIMARÃES - Nas Rotas dos Marranos de Trás-os-Montes, pp. 41-77, Âncora editora, 2014.

4-AYÁN, Carmen Sanz – Consolidación y Destrucción de Patrimonios Financieros en la Edad Moderna. Los Cortiços (1630-1715), p. 2; SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid, 1600-1670, pp. 67-76.
BAROJA, Julio Caro – Los Judíos en la España moderna y Contemporânea, vol 2, p. 115: - …aprestó en varias ocasiones a los tércios de Flandres, adelantando 600 000 escudos en un momento.

5-BAROJA… ob. cit. P.115.

6- RUSPIO, Federica - Da Madrid  a Venezia : L’ ascesa  del mercante  nuovo cristiano  Agostino  Fonseca . Mélanges de L´Ecole  francaise de Rome  - Italie  et Mediterranée  modernes  et  comtemporaines (en ligne).

7- ANDRADE e GUIMARÃES, Agostinho da Fonseca, in: – Nós transmontanos sefarditas e marranos  - Jornal Nordeste, nº 1076, Bragança, 27.6.2017.

8- RUSPIO, Federica, ob. Cit.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Agostinho da Fonseca (Chaves, 1614 – Veneza, d. 1681)

Agostinho da Fonseca terá nascido em Chaves, por 1614. Era filho de Mariana de Almeida, originária de Castro Roupal, termo de Bragança e do Dr. João Soares, natural de Chaves, médico de profissão. Dos irmãos de Agostinho conhecemos António Fonseca, nascido por 1620 e Luísa da Fonseca.

Falecendo o Dr. Soares, Mariana dirigiu-se com os filhos para Madrid, terra onde seu pai, António Lopes de Castro, também vivera e acabou por falecer em 1595. Em Madrid vivia já uma boa parte de seus familiares, nomeadamente os Cortiços Villasante, todos trabalhando em uma rede de negócios que dava pelo nome de “Casa Cortiços”, superiormente gerida por Manuel Cortiços, sobrinho de Mariana, filho de sua irmã Luísa de Almeida. (1)

Dentro da própria família casou também Agostinho da Fonseca, com sua prima direita, Mariana Ferro Villasante, filha de sua tia Mência de Almeida, assim se estreitando ainda mais os laços entre ele e a Casa Cortiços onde, obviamente, ficou também a trabalhar.

A irmã, Luísa da Fonseca, foi para Sevilha viver, em casa de sua tia Guiomar da Fonseca. Viria a casar com Agostinho Soares que, igualmente, trabalhava em Madrid, na área financeira da Casa Cortiços. O irmão António da Fonseca casou com Francisca da Paz e foi viver para a cidade de Antuérpia, trabalhando na delegação da empresa dos Cortiços Villasante na região da Flandres.

Um dos projetos então traçados visava a abertura de uma delegação da “Casa Cortiços” na cidade-estado de Veneza, que então se afirmava como uma grande potência comercial, entre o ocidente e o médio oriente. Coube a Agostinho Fonseca dar corpo a este projeto, para ali se transferindo em 1634.

Mas não se pense que Agostinho era um mero agente ou funcionário da Casa Cortiços. Não, à boa maneira da gente de nação, ele era um empresário e empenhava-se em construir a sua própria carreira e fazer a sua própria casa. Era um homem desejoso de subir na vida, ganhar prestígio e poder.

Mas não era fácil conseguir uma posição de relevo numa sociedade estratificada como a de Veneza onde todo o poder político estava nas mãos de uma classe, a dos “patrícios” que tinham o nome inscrito no “Livro de Ouro” e onde apenas podiam ser inscritos os filhos varões dos mesmos “patrícios”.

Nesta Veneza republicana e profundamente aristocrática, o lugar dos judeus era o “gueto”, palavra e realidade que terá nascido mesmo ali. Numa zona de penumbra, ou de fronteira entre o “gueto” e a “cidade”, aparecia a “nação portuguesa” formada por endinheirados mercadores cristãos-novos fugidos da inquisição, uns com ideia de se fazer judeus e entrar no “gueto”, outros sonhando entrar para a classe dos “patrícios”.

E este foi nitidamente o plano de promoção social traçado por Agostinho Fonseca para si e seus descendentes. Dinheiro e sucesso empresarial, manifestamente não lhe faltavam, sendo o próprio “Conselho” do governo da cidade a reconhecer o extraordinário papel de Agostinho em socorro dos lanifícios Venezianos que então atravessavam uma grande crise. Como agente da “Casa Cortiços”, apresentava-se como o maior importador de lãs de Espanha. Por outro lado, aliando-se a empresários têxteis Venezianos, Agostinho conseguiu o privilégio da produção e venda de panos ditos “Holandas” em Veneza.

Porém, um grande mercador, também podia ser olhado como um contrabandista e sustentáculo da rede de informadores do inimigo estado espanhol. Aliás, os ordenados aos embaixadores de Espanha em Veneza eram exatamente pagos por Fonseca. Facilmente se poderia também estabelecer ligação de Agostinho aos judaizantes, especialmente quando, no seguimento da morte de Manuel Cortiços, a viúva, D. Luísa Ferro foi presa pela inquisição espanhola, acusada de ter dado esmolas aos pobres da nação por morte de seu marido. Esta prática ritual que era prova do seu marranismo, permitiu a ligação da casa Cortiços com a comunidade sefardita  do estrangeiro.  Uma nota em particular referia um seu parente hebreu residente em Veneza, Juan ou Agostinho da Fonseca, que havia dado milhares de ducados ao pobres do gueto de Veneza e à comunidade sefardita de Livorno .

Em sua defesa saiu Giovanni de Conti, pároco da igreja de San Geremia, atestando a boa conduta cristã  do senhor  marquês Agostinho da Fonseca, que residia na sua paróquia, em uma residência contigua à zona do gueto, na área San Giobbe que dava de frente com uma das entradas para o chamado  “Ghetto Novo”. Afirmava aquele padre que sempre o havia visto frequentar a missa e comungar, efetuado ainda numerosas doações à igreja e à confraria do santíssimo sacramento, onde exerceu  as funções de mordomo em 1646. O mesmo cargo exerceu também seu cunhado, Agostinho Soares, em 1660, depois de sua transferência de Madrid.

Como entraria então para a classe dos patrícios um mercador vindo de Espanha, vivendo na fronteira do “gueto”? Fácil! Os aristocratas do “Grande Conselho” a quem competia decidir, não resistiam a um título de nobreza. E foi isso que fez Agostinho. Conseguiu que o rei de Espanha lhe concedesse o título de marquês e em Itália comprou, por 20 000 ducados, um “senhorio” em Turino. E nessa qualidade de marquês de Turino, foi admitido na classe dos “patrícios”. Rápida e grande foi a sua ascensão social e a construção do seu “senhorio” (espécie de morgadio) em Veneza, efetuando-se a sua entrada para o patriciado no ano de 1665.

Isso não significou qualquer corte com a Casa Cortiços que continuou a servir, investindo qualquer coisa como 190 000 ducados nos anos de 1667 a 1669 na compra de imóveis na cidade lagunar e na chamada “terraferma”.

Rápida e grande foi também a queda do mesmo “senhorio”. E esta realidade aparece muito vincada no seu testamento. Por um lado surgiram divergências e disputas financeiras com a família Cortiços. Por outro lado, os dois filhos varões que sobreviviam, foram por ele excluídos da herança. O mais velho, Sebastião, nascido em 1651, foi afastado por ser extravagante e não querer casar, ato obrigatório para inscrição do seu nome e descendência varonil no “Livro de Ouro” e o segundo, Giovanni Daniel, por ser muito pequeno, pois contava apenas 10 anos à data do falecimento do pai.

Na falta de filhos, pensou Agostinho em sua filha Isabel que desejava casasse com um filho de seu irmão António Fonseca, chamado Giovanni António, nascido em 1660 e que, embora morasse na Flandres, conseguiu também o título de “patrício” de Veneza. Mas tal não se concretizou e este foi o único descendente da casa Fonseca a ocupar cargos no governo veneziano de que foi camareiro e tesoureiro em Udine. Com a sua morte, em 1744, a “Casa Fonseca” extinguiu-se.

Quanto a Isabel, sabemos que casou com Annibale Zolio, homem da nobreza, em 17 Junho de 1697. Deste matrimónio houve dois descendentes: Girolamo e Agostinho.

No escalonamento dos herdeiros, Agostinho Fonseca considerou ainda outras hipóteses, sempre com o objetivo de transmissão do direito de “patrício” e acesso ao “grande conselho”, vinculando o direito de progenitura na descendência varonil. Neste caso seria Giovanni Soares, filho de seu cunhado, Agostinho Soares, marquês de Convincento, e só em último caso indicava como possível sucessor um filho do novo gestor da “Casa Cortiços”, o poderoso Manuel José Cortiços, marquês de Villa Flores.

Agostinho Fonseca terá falecido em 1681, pois o seu testamento foi publicado em 15 de setembro daquele ano, conforme informação de Federica Ruspio. Depois do falecimento Agostinho da Fonseca ficou como sua executora sua mulher Mariana Ferro a qual perdeu na Justiça de Veneza a causa contra Sebastião Manuel Cortiços e sua irmã Luísa Teresa, causa essa que dizia respeito aos investimentos atrás referidos, feitos em Veneza por Agostinho da Fonseca, na qualidade de procurador de Manuel José Cortiços, pai de Sebastião e Luísa.

NOTA e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inquisição de Coimbra, pº 5496, de Manuel de Almeida Castro.

ANDRADE e GUIMARÂES – Nas Rotas dos marranos de Trás-os-Montes, 2ª parte Os Almeida Castro, uma família de cristãos-novos de Izeda, ed. Âncora, Lisboa, 2014.

Federica Ruspio - Da Madrid  a Venezia : L’ ascesa  del mercante  nuovo cristiano  Agostino  Fonseca . Mélanges de L´Ecole  francaise de Rome  - Italie  et Mediterranée  modernes  et  comtemporaines (en ligne).

Markus Schreiber – Marranen  in Madrid  1600-1670 – Stuttgard-  Franz Steiner , Verlag  1994.

NÓS: TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS Isabel Lopes (c. 1503 – depois de 1585)

Isabel Lopes nasceu em Moncorvo por 1503. Foram seus pais André Lopes e Catarina Dias. Casou em Vila Flor, com Vasco Fernandes, tabelião. Pelo menos 7 filhos e 3 filhas do casal chegaram à idade adulta e todos casaram e residiram na região de Moncorvo – Vila Flor. Vários deles foram processados pela inquisição.
Em 1571 Vasco e Isabel casaram uma das filhas (Violante Álvares) com Gaspar da Rosa, um homem da nobreza de V. Flor e cristão-velho. Nisto se empenhou o pai da noiva, já que a mãe e toda a família materna era contrária a este casamento. No contrato se estipulou que Vasco Fernandes cedia ao genro o seu ofício de tabelião e que, à morte do cabeça de casal, a sua casa e os seus bens passariam para o mesmo genro. Este, por seu turno, assumia o compromisso de sustentar os sogros, no caso de eles caírem em situação de necessidade.
Efetivamente, 3 anos depois, Vasco Fernandes faleceu e a sua casa e bens passaram para Gaspar da Rosa. A viúva é que não foi viver para casa de quem tinha obrigação de a sustentar, antes preferiu ficar a viver com a filha Maria Álvares, casada com Gaspar Vaz.
No mesmo ano do referido casamento, dois jovens canonistas ascendiam ao posto de inquisidores: um para o tribunal de Évora, chamado Jerónimo de Sousa e outro para o tribunal de Coimbra, Diogo de Sousa, de seu nome.
Enquanto o segundo se afirmava em Coimbra, iniciando uma brilhante carreira que o levaria a bispo de Miranda e ao conselho geral da inquisição, o segundo abandonou a inquisição de Évora e veio para Trás-os-Montes desempenhar o ofício de abade de Vila Flor. Estranho? Muito estranho, mesmo! E mais se estranhará se dissermos que ele trazia uma provisão do “inquisidor apostólico da cidade de Coimbra”, Diogo de Sousa, dando-lhe poderes para “tomar denunciações tocantes ao santo ofício”.
Resta dizer que os dois jovens canonistas eram homens de absoluta confiança do inquisidor mor, cardeal D. Henrique. E naquele tempo a inquisição afirmava o seu poder acima dos bispos que ficaram impedidos de absolver e julgar os pecados contra a fé. Acresce que o arcebispo de Braga era Frei Bartolomeu dos Mártires, o mais vigoroso adversário do cardeal nesta matéria. Será que a nomeação daqueles “testas de ferro” foi feita para “entalar” o arcebispo de Braga?
Chegado a Vila Flor, o “inquisidor - abade” procurou alojamento, naturalmente em casa de grande nobreza, dignidade e conforto. Imagine-se: o tabelião Gaspar da Rosa cedeu-lhe a sua própria moradia que herdara do sogro, a qual desocupou para ele!
Temos então o inquisidor “disfarçado” de abade a morar na casa que fora de Vasco Fernandes e Isabel Lopes. Imagine-se o turbilhão de raiva e desconsolo que iria na alma daquela mulher de 74 anos! E também na de seus familiares, nomeadamente o seu sobrinho e procurador, Dr. André Nunes.
Imaginamos uma relação estreita entre Gaspar da Rosa e Jerónimo de Sousa. E este não perderia a oportunidade de “sacar” daquele informações tocantes ao santo ofício.
No dia 17 de Outubro de 1576 o abade foi chamado a casa de Gaspar da Rosa para confessar sua mulher que estava doente. Doente ou pressionada pelo marido, facto é que Violante Álvares disse que antes de casar ela seguia a religião judaica, ensinada por sua mãe e por sua irmã Maria Álvares.
O confessor fez as perguntas que entendeu e por ser tarde, foi para casa e escreveu por sua mão o que Violante confessara, sobre a mãe, a irmã e outras mais pessoas.
Era o início de uma onda de processos. Na rede lançada pelo inquisidor-abade iriam ser apanhadas muitas pessoas, para além de Isabel Lopes, a nossa biografada.
Mas para as coisas serem direitas importava pelo menos uma segunda testemunha, a qual estava mesmo ali à mão: Gaspar da Rosa, o qual foi ouvido “nas casas onde pousa o senhor licenciado Jerónimo de Sousa”, servindo de escrivão o cura João Martins.
Claro que, por mais segredo e discrição que Jerónimo de Sousa impusesse, as coisas acabaram por transpirar e as pressões sobre Violante e outras testemunhas para se desdizerem acumulavam-se. Tal como Gaspar da Rosa procurava testemunhas que confirmassem as suas denúncias.
No meio deste turbilhão de intrigas e diz-que-não-diz, o próprio inquisidor Jerónimo de Sousa se sentia pressionado e escrevia para Coimbra, em 6.1.577, dizendo:
- Ficou tanto olho em mim depois que falei com aquela mulher que não dou volta que me não notem e por isso busquei tempo para não ser sentido; de outra maneira todos se passarão de alevanto (…) avise VM ao oficial que cá vier que se não venha a minha casa porque trazem nisso tento e haverá reboliço, que nunca me saem de casa todos os dias, que por isso fui tirar a filha de sua casa e de noite, porque a trazem atrelada, que nunca a deixam. (1)
Crescendo os boatos e os medos, em Março seguinte, mãe e filha abandonaram Vila Flor e foram viver para a raia da Galiza, levadas por Gaspar Vaz, genro de Isabel Lopes e marido de Maria Álvares. (2)
Entretanto o arcebispo Bartolomeu dos Mártires empreendeu uma visitação a Vila Flor, como costumava fazer cada dois anos. E era ocasião de “apertá-lo” – terá pensado Jerónimo de Sousa. E assim, perante o arcebispo apareceram Gaspar da Rosa e Violante Álvares a repetir as denúncias de judaísmo contra Isabel e as mais pessoas, fazendo questão de vincar que “já neste caso testemunhara diante do abade desta igreja Jerónimo de Sousa, por provisão que disse ter dos inquisidores de Coimbra”.
Fantástico: afinal o abade de Vila Flor não era subordinado do arcebispo de Braga e não lhe havia jurado obediência?!
Por Vila Flor a visita do bondoso arcebispo terá posto alguma calmaria, de modo que Isabel Lopes regressou à terra, ficando-se a filha e o genro pela raia da Galiza. E o inquisidor Diogo de Sousa terá ficado perplexo quando Manuel Fernandes, (3) um filho de Isabel se apresentou em Coimbra dizendo que sua irmã fizera um juramento falso contra a mãe e disso fora já confessar-se a dois padres. Explicou que a irmã e o cunhado fizeram tais denúncias para obrigar sua mãe a entregar-lhe tudo: uma horta, uma vinha, uma courela na Vilariça… para além da casa onde morava o abade. E apresentou como testemunhas de suas afirmações 3 das pessoas de maior nobreza da terra: Domingos Sil, Gaspar de Seixas e Nicolau de Lobão.
Delicada parecia a posição de Gaspar da Rosa e também a de Jerónimo de Sousa, que então escrevia a Diogo de Sousa pedindo a prisão das mulheres. Veja-se o tom patético da carta:
- Há muitos dias que negócio algum me enleou tanto como este de Maria Álvares e sua mãe (…) V. M. pese tudo muito e veja o que lhe parece porque eu ao presente sou suspeito que pouso em umas casas suas, de que ele se tirou para mas dar.
Facto é que Diogo de Sousa decidiu chamar a Coimbra Gaspar da Rosa e Violante Álvares para ele próprio proceder ao interrogatório, o que aconteceu em 29.10.1577. E mandou Onofre de Figueiredo a Torre de Moncorvo buscar Isabel Lopes que entretanto fora mandada prender pelo vigário geral de Moncorvo.
Por mais de 5 anos sofreu Isabel as agruras das celas da inquisição de Coimbra, acabando condenada em cárcere e hábito no auto da fé de 23.1.1583. Dela se queriam livrar os inquisidores, que escreveram:
- É muito velha, mais de 80 anos e muito doente e há muitos anos que está entrevada e faz muita despesa a esta casa e quase sempre foi alimentada à custa dela e dá muito trabalho tê-la no cárcere sem fruto algum, nem esperança dele.
Pediam os inquisidores uma fiança de mil cruzados e o pagamento de 70 mil réis para a deixarem sair. Quem tinha obrigação de pagar era a filha e o genro que tudo herdaram dela e do marido – diziam os outros filhos. E depois de uma primeira petição feita pela filha, Jerónima Fernandes (4) para lhe entregarem a mãe, os irmãos lá conseguiram juntar 40 mil réis que o filho Baltasar Álvares, morador em Torre de Moncorvo, na Rua Nova foi levar a Coimbra e entregar-se da mãe, no dia 16 de Agosto de 1585. A demasia, acrescentavam, devia ser paga por Gaspar da Rosa.
NOTAS
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 536, de Isabel Lopes, a qual passou 8 anos na cadeia, saindo aos 82 anos.
2-IDEM, pº 8765-C, de Maria Álvares, que não foi presa por estar ausente.
3-IDEM, pº 9129-C, de Manuel Fernandes, que viria a ser preso em 1579.
4-IDEM, pº 8775-C, de Jerónima Fernandes, moradora em Torre de Moncorvo, casada com João Rodrigues, o patriarca da família dos Isidros, a qual seria presa em 1583.

 

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Em volta do Congresso Internacional de Cultura judaica

Nesta semana realiza-se em Bragança um Congresso Internacional de Cultura Judaica. Trata-se de um acontecimento de transcendente importância. Sobreleva ainda a qualidade dos intervenientes anunciados, tando os nacionais como os estrangeiros.
Antes de mais, devemos dar os parabéns aos organizadores, particularmente à Câmara Municipal de Bragança. E também à Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, da Universidade de Lisboa, responsável pela coordenação técnica científica do congresso.
Mais ainda pelo trabalho que a mesma Cátedra vem desenvolvendo desde os anos 90 do século passado no domínio da investigação e divulgação da problemática marrana e sefardita. Não podiam, pois, os signatários alhear-se de um tal acontecimento, uma vez que, desde há 18 anos se vêm dedicando à publicação de trabalhos sobre a matéria.
Com efeito, em 15.4.1999, no jornal “Terra Quente” abriram uma página com o título: “Caminhos Trasmontanos de Judeus e Marranos”. Ao longo mais de 14 anos, a página manteve-se aberta publicando-se mais de três centenas de textos.
Em simultâneo, em variadas revistas, foram publicando textos de maior fôlego sobre a matéria, bem como uma dezena de livros, referentes a uma grande parte dos municípios do Nordeste trasmontano.
A página do “Terra Quente” fechou-se por alterações provocadas na propriedade e orientação do jornal. Em Junho de 2016, nova página se abriu, agora no semanário “Nordeste” que se publica em Bragança, desta vez com o título: “Nós, Trasmontanos, Sefarditas e marranos”.
Fundamentalmente o trabalho foi e é baseado na leitura, transcrição e estudo de processos da inquisição portuguesa. Mais de um milhar até agora!
É um trabalho para nós aliciante e que consideramos fundamental não só para o estudo da cultura judaica e marrana, mas também da história local e regional. Nenhuma espécie de acontecimentos marcou mais profundamente o evoluir da sociedade trasmontana do que as constantes vagas de prisões, seguidas ou antecedidas de fugas massivas de “gente da nação” com a paralisação dos negócios, a ruína das empresas e a saída de capitais.
Verdadeiros “tsunamis” arrasaram povoações, como aconteceu em Mogadouro onde, num único dia, se passaram mandados de prisão sobre umas 120 pessoas, metade das quais foram arrastadas para as masmorras da inquisição e a outra metade conseguiu fugir.
Ou em Quintela de Lampaças, onde no dia 13.12.1637 foram mandadas prender 19 de entre os 23 apontados como “judeus”, e enviada ao santo ofício uma lista de outros 41 que se anteciparam na fuga.
Em Mirandela, uma lista de decretados a prisão em Maio de 1662, incluía 78 cristãos-novos, entre eles o pai do dr. Francisco da Fonseca Henriques, médico do rei D. João V.
Em Sambade, Carção, Vinhais, Vila Flor… as “entradas” da inquisição fizeram soltar tempestades de medos e ódios que penetraram profundamente no tecido social e o destruíram. Foi como se todas as forças do inferno se abatessem sobre as comunidades de “gente da nação”.
Se perguntarmos qual o dia mais importante na história de Bragança, a generalidade das pessoas não hesitará em dizer que foi o dia 20 de fevereiro de 1464, quando foi elevada à categoria de cidade. Por nós consideramos que foi 4 de maio de 1741, o dia em que o povo de Bragança de mobilizou em uma fantástica manifestação, à frente da qual seguiram centenas de “freiras” dos dois conventos, em protesto contra o monopólio do sabão entregue à tríade familiar mais poderosa da terra, constituída pelo alcaide do castelo, o comissário local da inquisição e o comandante militar.
O monopólio do sabão prejudicava essencialmente “a gente da nação”, fabricantes de sedas. A multidão de povo, pelos hebreus mobilizada, subiu ao castelo e atirou pelas muralhas o sabão do monopólio que ali se encontrava para venda. Onde é que se viu tamanha ousadia em tais tempos? Quem aponta uma tão intensa jornada de mobilização cívica, em tempos do antigo regime? Que episódio da luta de classes poderá comparar-se-lhe? Claro que de seguida, foi um arraso: centenas de homens e mulheres “metidos na inquisição”.
Parecidos “tsunamis” assolaram Vinhais, Miranda do Douro, Vila Flor, Chacim, Torre de Moncorvo… e tantas outras terras Trasmontanas. O atraso e o despovoamento de Trás-os-Montes terá começado exatamente aí, com a decapitação do elemento mais instruído e mais empreendedor da sociedade.
Sim: os processos da inquisição mostram-nos que os lagares de azeite e os moinhos de pão se encontravam predominantemente em mãos da “gente da nação”. Constatámos isso em Mirandela, Torre de Moncorvo e Quintela de Lampaças, nomeadamente.
O mesmo acontecia com a indústria “hoteleira”. Em Bragança, Miranda do Douro, Torre de Moncorvo, Vila Flor… vimos a inquisição prender estalajadeiros e constatámos que as estalagens eram os grandes centros difusores de notícias, locais de contactos empresariais e bolsas de negócios.
As grandes “unidades industriais” foram instaladas por eles. Em Freixo de Numão, por exemplo, assistimos à prisão do proprietário de uma destilaria de aguardente montada no sítio do Vale da Cabra, Alijó, que valia um conto e 200 mil réis, de onde saíam anualmente mais de 50 pipas de aguardente para a exportação.
O sumagre era então um dos produtos que mais pesava na balança comercial portuguesa. Pela barra do Porto anos havia em que saíam para o Norte da Europa mais barcos carregados daquele produto do que de vinho. E a grande região produtora era o Alto Douro. Também essa indústria corria por mãos de hebreus, como o provam as atafonas que encontramos nos inventários de prisioneiros, de Carção a Vila Flor, de Lebução e Vinhais a Foz Côa a Freixo de Espada à Cinta…
Que dizer da produção de linho cânhamo? Em Mirandela, nem a Casa dos Távoras superava o hebreu Dr. Manuel Pereira da Fonseca que, em 1693, produzia 360 pedras de linho. Em Torre de Moncorvo eram “judeus” que faziam andar a real fábrica de cordoaria.
Da indústria das sedas, nem precisamos falar. A Rua Direita de Bragança era verdadeiro complexo industrial sericícola, com cerca de duas dezenas de oficinas, todas pertencentes a hebreus. Chacim, Vila Flor, Lebução, Vinhais, Torre de Moncorvo, Freixo de Espada à Cinta… seguiam progressivas no fabrico de sedas.
Mais nobre ainda e engrandecedora será a galeria de economistas como Francisco Vaz Eminente, cujo nome ficou ligado ao imposto alfandegário aprovado por Filipe IV; advogados como André Nunes ou António Manuel Pissarro; pensadores, como Baltasar Oróbio de Castro; banqueiros como Manuel Cortiços, Rafael Henriques ou António Rodrigues Mogadouro; diplomatas como Manuel Fernandes Vila Real; médicos como o Dr. Mirandela, Jacob de Castro Sarmento ou Efraim Bueno, o Fastio, de alcunha, que mereceu ser retratado por Rembrandt.
Porém, a coisa mais importante que em Trás-os-Montes a gente marrana deixou de herança encontrar-se-á no mundo da genética, das tradições, da etnologia e da gastronomia.
Se a história de Trás-os-Montes precisa ser reescrita, contando-se as grandezas e misérias do elemento hebreu da sociedade, ela mesma deverá, por outro lado, ser tida em conta na promoção do progresso e do futuro, nomeadamente nas áreas do turismo e da cultura. Foi esse o objetivo que nos levou a abrir as ditas páginas dos jornais “Terra Quente” e “Nordeste” – o de traçar uma Rota dos Judeus em Trás-os-Montes.
Um dos primeiros livros que publicámos foi em 2008, com o título de “Carção Capital do Marranismo”. Nele ficou evidenciada a noção de “marranismo” (diferente de judaísmo) e descrita a Rota local que, graças ao esforço da gente de Carção (permitam que cite o nome do Prof. Paulo Lopes) foi engrandecida com a inauguração do “Museu Marrano”, a primeira obra do género em Trás-os-Montes!
Obviamente que os turistas se não deslocam de Inglaterra ou França para visitar uma aldeia e um pequeno museu. Nem tão pouco de Lisboa ou Porto. Mas sempre pensámos que atrás de Carção, outros museus e centros de documentação iriam abrir-se, numa Rota dos Judeus em Trás-os-Montes. Sim, Trás-os-Montes possui um fantástico património judaico e marrano para mostrar ao mundo.
Passou há 2 anos o 3º centenário do nascimento de Jacob Rodrigues Pereira, o grande mestre da alfabetização dos surdos-mudos, possivelmente o Trasmontano e Sefardita mais conhecido no mundo. Talvez mais conhecido lá fora do que em Trás-os-Montes, terra de suas origens. E nós nem sequer um lápide conseguimos descerrar, comemorando a efeméride!
Hoje a sua descendência em França representa mais de 400 membros, segundo informação do nosso amigo e estudioso, Dr. António Cravo, “distribuídos pelo mundo dos negócios, em bancos, companhias de seguros e empresas imobiliárias”. Será que algum dia, a algum deles chegou algum apelo da terra Trasmontana? A nós cumpre a responsabilidade de pedir perdão pelos malefícios da inquisição e fazer o convite aos descendentes dos perseguidos para que venham conhecer a nossa casa comum.
E os descendentes de milhares de homens e mulheres que deixaram Trás-os-Montes por causa da inquisição e foram dar vida a chãos estranhos?
Diz-se que muitos deles levaram a chave de casa, com ideias de um dia voltar. Pois, daqui lançamos o apelo a que voltem. A Casa Trasmontana espera por eles.
Muito do nosso trabalho de investigação foi feito por solicitação de um conhecido arquiteto canadiano cujo pai morreu sob os céus de Varsóvia quando o seu avião foi abatido pelos nazis na segunda grande guerra. Tal investigação teve (e continua a ter) por objetivo a descoberta e conhecimento de seus ascendentes, em terras Americanas e Europeias, no âmbito de um “Genome Project”. Não imaginam a sua emoção quando, em visita de estudo e romagem, chegou a Miranda do Douro, à Rua da Costanilha. No próprio dia nos enviou um e-mail dizendo o seguinte:
- Cerca de 366 anos depois, às 7 horas e 33 minutos do dia 7 de Junho de 2011, cheguei ao lugar de onde partiu o meu primeiro ascendente de nome Henriques, que chegou à Jamaica.
Nos últimos anos algumas iniciativas são de assinalar no domínio da investigação das nossas raízes judaicas e cultura marrana, assinalando-se a realização de Jornadas em Vimioso, Alfândega da Fé, Torre de Moncorvo… e agora um Congresso Internacional em Bragança, acompanhado da abertura de dois espaços museológicos e de interpretação da cultura judaica. Esperamos que seja um grande passo na construção de uma grande Rota dos Judeus em Trás-os-Montes.

NÓS: TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Lopes, Dr. (Bragança 1585 – Bordéus 1659)

Na galeria dos mais ilustres sefarditas, o Dr. Francisco Lopes merece ocupar um lugar de destaque. Porventura, ninguém como ele conseguiu estabelecer “alianças familiares” com os grandes empórios financeiros e comerciais do seu tempo.

Qual patriarca ou eminência parda, foi cedendo o palco para os seus 10 filhos, 5 rapazes e 5 raparigas, que casou em famílias sefarditas das mais prestigiadas, como se verá. Por agora fiquemos com o testemunho de D. Luís da Cunha, embaixador de Portugal em Londres, referindo-se a um dos casamentos no seio da família:

- Eu me achei em Amesterdão nas bodas de um dos filhos do barão de Suasso, e sua mãe, a quem eu por derrisão chamava a rainha Ester, me perguntou em quanto eu avaliava os cabedais dos convidados que ali estavam, que seriam até 40; e dizendo que o ignorava, me respondeu: - “Bem pode Vª Exª contar sobre 40 milhões de florins, que nenhum mal fariam a Portugal, se lá estivessem”. – “Nem à inquisição, se ela os agarrasse” – lhe respondi eu. (1)

Situemo-nos agora em Bragança no último quartel do século XVI na casa do médico Dr. Francisco Lopes e sua mulher Catarina Álvares. Ali lhe nasceram 2 filhos e uma filha, sendo o primogénito o nosso biografado, Francisco Lopes como o pai e também médico.

Na década de 1590, a comunidade hebreia de Bragança foi varrida por um tremendo vendaval soprado pela inquisição que ali fez largas centenas de prisioneiros. E certamente para não serem presos, Francisco e Catarina pegaram nas crianças e fugiram para a cidade italiana de Livorno. Com eles fugiriam também os Mendes Sotto, seus parentes.

Em Livorno lhes nasceu outra filha, batizada com o nome de Francisca, que viria a casar com Francisco Mendes Sotto, seu tio, fixando-se o casal na cidade de Ruão. (2) Três filhos (as) do casal viriam a casar com filhos (as) do Dr. Francisco Lopes.

Da filha de Francisco e Catarina nascida em Bragança não sabemos o nome. Mas sabemos que casou com seu parente António Mendes Sotto. (3) Em 1632, aquando da “traição de Ruão”, António Sotto era já viúvo e de sua mulher tivera uma filha chamada Isabel Mendes Sotto, que seria a mulher do nosso biografado.

De Livorno, o casal rumou a França, estabelecendo-se em Bordéus, com o velho Dr. Francisco Lopes a receber a carta de “bourgeois” em 27.7.1613. Dois anos depois (22.10.1615), seria padrinho de seu neto Pedro Dias França e, na mesma cidade, viria a falecer em 1630.

O pequeno Pedro era filho de António Dias França, um dos filhos do médico de Bragança e nesta cidade nascido por 1590 e sua mulher Marta Rodrigues. Formado em medicina, Pedro Dias França foi o herdeiro da biblioteca de seu tio e sogro, o Dr. Francisco Lopes.

Nascido em Bragança por 1585, Francisco Lopes não ficaria muito tempo com a família em Livorno. Logo seguiria para a cidade francesa de Montpellier, em cuja universidade foi estudar medicina. Concluiu o curso em dezembro de 1602 e, em 1604, casou com sua sobrinha Isabel Mendes Sotto, como atrás se disse. Ainda em Livorno, em 1606, nasceu o filho mais velho, Pedro Lopes., que seria professor na universidade de Bordéus.

Enquanto o Dr. Francisco Lopes e a família, (incluindo os pais) deixaram Livorno e foram instalar-se em Bordéus, Francisco Mendes Sotto e a família dirigiram-se para a cidade de Ruão, também na França. Em Bordéus o nosso médico foi admitido na respetiva universidade e dois acontecimentos vieram engrandecer o seu estatuto social. Em 1632, teve a honra de ser escolhido para tratar o poderoso ministro de França, cardeal Richelieu, que sofria de uma doença no aparelho urinário. Em outra ocasião, tendo surgido uma forte epidemia na cidade, coube ao Dr. Francisco Lopes dirigir as operações de tratamento público. E de um e outro acontecimento saiu muito prestigiado, pelo que foi nomeado “médico do Rei na universidade de Bordéus”. Faleceu em 1659, sendo enterrado na igreja católica de Saint-Projet. Na verdade, ele sempre viveu como católico. E Jerónimo, um dos seus filhos, foi frade dominicano, cura da igreja de Santo André, matriz da paróquia de Saint-Projet e professor de teologia na mesma universidade.

Dissemos atrás que o Dr. Francisco Lopes foi mestre na política de casamentos de seus filhos e respetivas alianças económicas. Não caberá aqui falar de todos eles menos ainda alongar-nos sobre o assunto.

António Lopes Suasso foi um de seus filhos. Nascido em 1614, o pai destinou-lhe também uma carreira eclesiástica, que ele abandonou. De parceria com seu tio António Dias França meteu-se no negócio das lãs que acabou por dominar. Com o centro em Bordéus e Ruão organizaram uma rede de negócios que lhe permitia comprar em Segóvia lãs de Espanha e conduzi-las para Antuérpia e Amesterdão. O negócio cresceu imenso e ele tornou-se o assentista do governo espanhol na região da Flandres, assim como o correspondente privilegiado dos bancos espanhóis na Europa do Norte. Ao comércio da lã juntou o dos diamantes e pedras preciosas e el passou a intitular-se mercador-banqueiro. Em 1653 mudou-se para Amesterdão e aderiu abertamente ao judaísmo e tomando o nome de Isaac Israel Suasso. No ano seguinte fez “o melhor casamento do mundo” – no dizer de Jacques Blamont, consorciando-se com Violante (Rachel) Pinto, filha do banqueiro Gil (Abraham) Lopes Pinto, grande mercador de açúcar, pau-brasil e diamantes. Violante era já viúva de Isaac Pereira, um rico mercador originário de Vila Flor e proprietário da primeira refinaria de açúcar instalada em terras de Holanda. Violante levou em dote a “colossal” fortuna de 130 000 florins. António Lopes Suasso era então “o judeu mais rico de Amesterdão”. Apesar de judeu, foi nomeado “Fator de Sua Majestade o Rei de Espanha em Amesterdão” e elevado por Carlos II à nobreza de Castela com a atribuição do título de Barão de Avernas le Gras.

Três dos casamentos dos filhos de Francisco Lopes foram celebrados com filhos de Francisco Mendes Sotto. Um deles nasceu em 1620 em Bordéus e foi batizado com o nome de João Lopes. Em 1643 morava em Amesterdão e usava o nome de Jacob de França, aliás, Jacob de Berahel e ainda Francisco de Liz. Era casado com Raquel de Sotto e em 1666 foi síndico da comunidade. Seu filho Abraham Berahel, aliás, Francisco Lopes de Liz, nascido em 1648, cedo rumou para Inglaterra tornando-se um dos banqueiros mais ricos da praça de Londres. Casou com sua prima Rachel Suasso Pinto.

Duas filhas do Dr. Francisco Lopes casaram fora do agregado parental. Uma delas, Francisca Lopes, casou com Rafael Henriques, alias Jacob Israel Henriques, originário de Miranda do Douro, filho de Ana Rodrigues e Francisco Henriques, o manco. Rafael era um prestigiado banqueiro de Bordéus, sobrinho de António Rodrigues Mogadouro. (4)

A outra filha, Catarina Lopes casou com o Dr. Duarte Henriques, originário de Aveiro, de uma prestigiada família de médicos e grandes mercadores. Ainda solteiro, vivendo em Bordéus em casa de seu pai Henrique Fernandes de Cáceres, (5) Duarte foi denunciado à inquisição de Coimbra. Disse o denunciante que eles tinham uma sinagoga em casa e nela “se juntavam  os cristãos-novos portugueses que naquela cidade viviam (…) aos sábados e festas da lei de Moisés se ajuntavam a rezar juntos orações judaicas em língua portuguesa”.

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:

1-CUNHA, D. Luís da – Testamento Político, Iniciativas Editoriais, p 57, Lisboa, 1978.

2-ROTH, Cecil – Les Marranes à Rouen, un chapitre ignore de l´histoire des jufs de France, in: Revue des Études Juives, pp. 113-155.

3-António Mendes Sotto fugiu de Bragança para Madrid onde se estabeleceu como mercador. Dali transitou para Ruão, ao final da década de 1620. Terminou os seus dias em Amesterdão.

4-ANDRADE e GUIMARÃES – A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, ed. Nova Vega, Lisboa, 20--

5-Vivendo em Portugal, Henrique Fernandes foi prebendeiro da universidade de Coimbra e entre as suas atividades refira-se a de armador de barcos de pesca do bacalhau, de parceria com os Biscainhos. Três de seus filhos foram prisioneiros da inquisição e um deles, casado com Ana Maria Mendes de Brito, faleceu nos cárceres.

BLAMONT, Jacques – Le Lion et le Moucheron, Histoire des Marranes de Toulouse,

ALMEIDA, A. A. Marques de – Dicionário dos Sefarditas Portugueses, Mercadores e Gente de Trato, Campo da Comunicação, Lisboa, 2009.

NÓS: TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Rodrigues Trindade (n. c.1535)

Se bem que pertencendo à etnia hebreia, Francisco Rodrigues Trindade não seria judeu nem marrano. Antes deverá ser apresentado como um homem assumidamente cristão e denunciante de seus patrícios. Decidimos incluí-lo nesta séria de biografias, ao lado de sua irmã Catarina Rodrigues Trindade, esta sim presa por suas práticas de judaísmo, falecida nos cárceres da inquisição de Lisboa, aos 72 anos, como exemplo de percursos distintos e opostos, dentro do mesmo grupo familiar.

Entre os membros da primeira geração de cristãos-novos da vila de Miranda do Douro, contava-se uma Isabel Gonçalves, a qual casou com João da Trindade que alguns afirmam ser cristão-novo, mas todos dizem que viveu e morreu como cristão, sem qualquer indício em contrário. Um de seus filhos chamou-se António Rodrigues Trindade, que casou e viveu em Torre de Moncorvo com Ana Fernandes. (1) Ela foi queimada nas fogueiras da inquisição de Lisboa, lugar que compartilhou com os filhos. Ele faleceu e foi enterrado como bom e insuspeito cristão, pelo ano de 1601. Em casa a sua comida era mesmo cozinhada em panela apartada da mulher e dos filhos. Seria este seu comportamento cristão verdadeiramente autêntico? Ou seria ditado pela sua profissão de recebedor das sisas?

A filha Catarina, nascida por 1532 casou igualmente em Torre de Moncorvo com Fernão Álvares e tiveram larga e importante descendência, do ponto de vista social, com largo historial nos processos do santo ofício, nomeadamente a sua filha Maria Álvares e o neto António Pereira. (2)

Contaria Francisco uns 15 anos quando começou a servir o deão da sé de Miranda e comissário local da inquisição, Dr. Gil do Prado. E com ele foi de Miranda para Almeirim acompanhando o bispo da diocese, D. Toríbio Lopes, que estava doente e faleceu em 1553. Nessa fase da vida e durante a doença do bispo, o deão e o seu criado terão andado por Lisboa e nessa altura o nosso jovem conheceria o inquisidor Ambrósio Campelo.

Falecido Toríbio Lopes, o deão e o criado regressariam a Miranda. Chegados a Coimbra, Francisco pediu ao seu amo que lhe desse algum dinheiro e que o deixasse ali a estudar latim. Terminava assim uma ligação de 4 anos. Terminaria? Ou será que o Trindade foi instruído pelo Deão, fazendo trabalho de espia e denunciante?

Pela mesma altura faleceu a mãe de Francisco e o pai casou em segundas núpcias em Torre de Moncorvo com uma estalajadeira chamada Isabel Lopes,  (3) cristã-nova e judaizante.

Pouco se demoraria por Coimbra o nosso estudante de latim pois logo apareceu em Torre de Moncorvo a “passar férias”. Aí, morando na estalagem, a madrasta ter-se-á aberto com ele, fazendo-lhe muitas confidências sobre o Messias que em Roma estava prisioneiro mas logo haveria de soltar-se dos grilhões e dirigir a instauração do reino de Israel, o qual haveria de dominar sobre a terra. (4)

Demorou-se por Torre de Moncorvo uns 45 ou 50 dias e, em vez de retomar os estudos em Coimbra, rumou a Lisboa e foi empregar-se na casa de um Dr. Monção, prior da igreja da Madalena. E no dia 3 de janeiro de 1555, dirigiu-se à casa da inquisição, para denunciar de práticas de judaísmo contra a sua madrasta e outras pessoas. Vejam o registo do seu depoimento:

- No dia 3 de janeiro compareceu Francisco Rodrigues Trindade que denunciou Isabel Lopes, sua madrasta, da Torre de Moncorvo, por ter dito que Jesus Cristo não era filho de Deus e outras heresias, Gabriel Rodrigues, genro dela, por ter dito que tudo quanto o papa fazia era burla, a mulher deste Leonor Lopes e finalmente Diogo Mendes, tabelião de Miranda, todos cristãos-novos. (5)

Este registo dos cadernos do promotor é o resumo das declarações de Francisco Trindade continuadas por mais de uma sessão na casa do despacho, perante os inquisidores Pedro Álvares Paredes e Ambrósio Campelo, que ordenaram a prisão dos denunciados.

Obviamente que tais prisões provocaram em Torre de Moncorvo um forte impacto. E um parente de Isabel Lopes, Pero Henriques, solteiro, grande mercador e homem viajado por todo o reino e terras de Castela, meteu-se a caminho de Lisboa com o objetivo de tentar a libertação dos prisioneiros. Para isso teria de saber quem os acusara e os respetivos crimes. Depois, trataria de impedir que o(s) denunciante(s) ratificasse(m) as denúncias ou, no caso de o não conseguir, tratar de desacreditar o(s) seu(s) depoimento(s).

Na casa do Dr. Monção, Francisco não encontrou só emprego mas também o casamento com uma criada do mesmo, chamada Maria Barros. E como esta era pobre e as pagas do prior minguadas, Francisco ia fazendo uns serviços eventuais de escriturário e copista em cartórios de escrivães da alfândega de Lisboa assoberbados de trabalho.

Foi então que o caminho de Francisco se cruzou com Pedro Henriques o mercador da Torre de Moncorvo atrás citado. Apresentou-se este muito amigo, disposto a ajudá-lo a sair daquela vida de pobreza. Mostrou-lhe Francisco uma carta recebida de um tio muito rico que vivia em Cabo Verde em que o mandava ir para junto de si. Acrescentou que bem gostava de ir mas não tinha dinheiro para a viagem. Pero Henriques prontificou-se a pagar a viagem e logo foram comprar mantimentos e bilhete para embarcar.

Parecia tudo pronto, com o viajante instalado no barco prestes a zarpar, quando no cais apareceu o juiz ordinário, chamado pela mulher de Francisco Trindade, a impedir que este seguisse viagem. Tudo indica que o plano foi preparado entre Francisco e a mulher que, de seguida, se apresentaram na inquisição dizendo que Pedro Henriques o andava perseguindo e o queria forçosamente embarcar para Cabo Verde para não poder ratificar as denúncias que fizera contra a sua madrasta e os outros.

E com base nos depoimentos de Francisco e da mulher, Pedro Henriques daria entrada nos cárceres da inquisição de Lisboa. (6) De Francisco Rodrigues Trindade não mais ouvimos falar. Nem sequer é citado por sua irmã Catarina Rodrigues quando, na sessão de 19 de novembro de 1602 fala da sua genealogia. Sobre esta diremos que a alcunharam de “coisa rica” e morava na Rua do Espírito Santo quando foi presa em 26 de agosto de 1602, sendo já viúva e mãe de 6 filhos. Veio a falecer nas masmorras da inquisição em 9 de janeiro de 1604, ao fim de “muitos tempos que lhe dera paralisia e nunca mais se levantara nem se virava se não a viravam e muito mal podia comer por sua mão”.

Não se enganavam os inquisidores ao condená-la como judia. Com efeito, ela “não se soube benzer nem persignar”. Mas não se escusou a ditar para o processo uma oração judaica que ela rezava:

Oh! Alto Deus mais poderoso

A ti chamo, pecador.

Sempre manso e animoso

Adonay, meu criador.

 

 

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:

1-ANTT, inq. Coimbra, pº 2398, de Ana Fernandes.

2-IDEM, pº 2359, de Catarina Rodrigues Trindade; pº 1096, de Maria Álvares; pº 8786, de António Pereira.

3- IDEM, inq. Lisboa  p.º 3123, de Isabel Lopes.

4-IDEM, inq. Lisboa, pº 3123, de Isabel Lopes. Veja-se um excerto das denúncias de Francisco Trindade: - Outra vez falando-lhe a dita sua madrasta, estando ambos sós, lhe disse que estava uma casa em Roma cerrada e que todos os papas que vinham lhe mandavam lançar uma fechadura e que dentro dela estava um homem cujo nome lhe não lembra (…) que era o messias e que tinha um grilhão nos pés e que estava um menino com uma serra serrando-lho. E que pronto os ferros fossem acabados de serrar, haviam os cristãos-novos de ser livres, e que se haviam de ir para a terra de onde primeiro vieram que era Jerusalém, e que lá haviam de ser grandes senhores e que lhe haviam de levar de cá para cavalos aos cristãos-velhos (…) E é mais lembrado que a dita sua madrasta lhe disse, estando ambos sós, que um papa mandara abrir aquela casa de Roma onde estava o messias e que mandara meter dentro um cristão e logo morrera, e que mandara meter um mouro e logo morrera; e que depois mandara meter um judeu, para ver o que lá ia e que este vivera.

5-BAIÃO, António – A Inquisição em Portugal e no Brasil (séc. XVI), in: Archivo Histórico Portuguez, vol. VII, p. 4.

6-ANTT, inq. Lisboa, pº 6771, de Pero Henriques.