António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Beatriz Pereira (n. Mogadouro, 1665)

Nasceu na vila de Mogadouro pelo ano de 1665. O pai chamou-se Belchior Fernandes e era “caseiro” na quinta do Vimieiro, termo da Torre de Dona Chama, Mirandela, de onde foi para Mogadouro casar com Beatriz Lopes. Esta era filha natural de uma Catarina Martins e de Francisco Lopes Pereira, o Papagaio, de alcunha, mercador, casado com Maria Dias. Embora fosse filha natural, o pai nunca a desamparou e sempre a reconheceu e tratou como filha e a casou e lhe deixou em herança as casas e propriedades que tinha em Mogadouro, nomeadamente uma Quinta que ainda hoje é conhecida pelo nome de Quinta da Papagaia e então se nomeava Quinta do Souto. (1) Para sua casa, a trabalhar com ele, entrou até o “genro” Belchior. E quando Francisco Lopes Pereira, por 1654, foi para Madrid, Belchior acompanhou-o. E em Madrid, no hospital real, este acabaria mesmo por falecer.
Criada em Mogadouro, (2) contando cerca de 20 anos, Beatriz Pereira foi para Castela onde casou com André Vareda, que ela tinha na conta de cristão-velho. Em volta deste homem há, no entanto, uma verdadeira nebulosa. Uns dizem que é natural de Roma, outros de Pádua e Gaspar Lopes da Costa, irmão de Beatriz afirma que ele era natural da vila de Mogadouro.
Facto é que, a vida de Beatriz e Vareda foi um constante peregrinar de terra em terra. E se por 1685 ela estava ainda solteira e “órfã de pai e mãe” a viver no Mogadouro, já em 1690 aparece casada, ocasionalmente “assistindo” em Lisboa onde lhe nasceu o filho José da Costa. Três anos depois morava em Castela, na cidade de Cádis onde nasceu o filho João de Vareda. Por 1698 viajava pela cidade do Porto, “pousando” em casa de sua cunhada Beatriz Lopes da Costa a quem foi pedir 4 000 cruzados, que esta recusou emprestar-lhe. No ano seguinte estava ocasionalmente em Lisboa, hospedada em “uma estalagem junto às Portas do Mar”. Teria então casa montada em Badajoz onde, pelo ano de 1700, Brites Pereira deu à luz a filha Luísa Maria Rosa. Quatro anos mais tarde a terra de morada era Viana do Castelo onde nasceu o filho António Lopes da Costa. Passou de novo pela cidade do Porto “pousando” então em casa de seu irmão Gaspar Lopes da Costa.
A partir dessa altura, fixariam residência em Lisboa, na freguesia de Santo Estêvão, e pelo ano de 1713 / 1714, sofreria dois grandes desgostos. Um deles foi a morte de seu marido e o outro derivou da prisão do filho João da Costa ou Vareda (3) pelo tribunal do santo ofício.
Os anos seguintes foram para ela de alguma dificuldade económica e grande perturbação religiosa, vendo-se Beatriz seguir a pé, descalça, em procissões e romarias cristãs ou metida nas igrejas a rezar, o que muito escandalizava os seus correligionários. E acontecendo adoecer-lhe uma filha, Beatriz não se atrevia a ir ter com sua “tia” Beatriz Pereira Angel, filha do Papagaio e de sua mulher, (4) a qual era rica e morava em Lisboa. E indo pedir apoio a D. Paula Manuela, esta respondeu:
- Como queria ela que a dita sua tia Beatriz Pereira a socorresse quando cada dia lhe iam dizer várias pessoas que a encontravam fazendo romarias, descalça, à Madre de Deus, ora estando encomendando-se ao Menino Deus?
Argumentou primeiro que fazia aquelas coisas de cristã “para remir a miséria e vexação em que se achava”. Depois emendou e disse “que ela fazia as romarias para ser bem reputada da sua vizinhança”. Facto é que a tia a socorreu “pois dali por diante, ainda que a dita tia Brites Pereira Angel a não queria ver, lhe mandava assistir na doença da dita sua filha Luísa Maria Rosa, com médico, botica e meia galinha cada dia e lhe prometeu que lhe fazia os gastos do enterro se a mesma falecesse”.
Não sabemos se foram as dificuldades económicas que, por 1717, a levaram a mudar-se para Chelas, a viver em uma quinta, duas léguas distante de Lisboa, servindo ela e a filha em casa de D. Maria Bernarda de Vilhena.
Em 15 de Maio de 1719, embarcou com a mesma filha (Luísa Maria) para o Brasil, aportando na cidade da Baía em Julho e seguindo a morar na roça e casa do filho José da Costa. A viagem foi no navio Santo António de Pádua, dirigido pelo capitão António Antunes de Araújo.
Ali viveu por 7 anos e meio, até ser presa pelo santo ofício, dando entrada na cadeia de Lisboa em 22.11.1726. Começou por negar as culpas de judaísmo que lhe imputavam mas acabou por confessar que fora doutrinada quando tinha uns 20 anos, em Mogadouro, antes de ir para Castela, por Francisco Lopes, (5) mercador, casado com Leonor Dias. Depois, em Cádis, uma Isabel Vargas, originária de Vila Real continuaria a sua doutrinação judaica.
O processo de Beatriz tem algum interesse para o estudo do urbanismo da vila de Mogadouro. Veja-se, nomeadamente a informação que nos dá sobre as casas de sua morada sitas “abaixo da cadeia, que tinham quintal e dois poços, e pela parte donde ficava a cadeia partiam com casas de um irmão dela, Gaspar Lopes da Costa e da outra parte com umas casas caídas que haviam sido de duas pessoas da nação, e que o quintal partia com outro de Maria Machada”.
Igualmente interessante para o estudo da comunidade marrana da Baía que se juntava em grupos familiares alargados para a celebração do Kipur. Neste caso, no ano de 1719, por exemplo, em casa de José da Costa e Ana de Miranda, sua mulher, juntaram-se: Beatriz Pereira, Gaspar Fernandes, Luísa Maria, João Gomes Carvalho, António Lopes, Carlos Pereira, Gaspar da Costa e Miguel Nunes, que todos os 10 ali permaneceram todo o dia, conforme testemunho de Ana de Miranda, transcrito no processo da sogra, Beatriz Pereira.
Sobre o inventário de seus bens, para além da casa e da Quinta da Papagaia atrás referida, vejam a rúbrica seguinte, deveras interessante para se fazer um retrato da sociedade esclavagista da época:
- Tem uma escrava chamada Teresa Pereira, que terá 13 anos, a qual mandou vir de Angola com outra mais que mandou vir da Costa da Mina e faleceu, para com elas pagar uma dívida de cem mil réis a uma filha de D. Lourença de Soto Maior chamada D. Maria Bernarda de Vilhena, assistente nesta cidade (…) em razão de lhos haver emprestado sobre sua palavra, e lhe dizer, quando ela declarante foi para a baía, que dos cem mil réis, lhe mandasse duas escravas pequenas, e declara que a escrava que faleceu estava já por conta da dita credora e portanto é a mesma que perde, e a outra escrava a mandou ensinar a fazer rendas e estava com ânimo de a remeter.

Notas e Bibliografia:
1-ANTT, inq. Lisboa, pº 8766, de Gaspar Lopes da Costa; inq. Coimbra, pº 6790, de Francisco Lopes Pereira. ANDRADE e GUIMARÃES – Nós Trasmontano… jornal Nordeste nº 1082, de 8.8.2017 e n º 1090, de 3.10.2017.
2-Ao falar da sua genealogia, o filho João Vareda disse que sua mãe era “castelhana, não sabe onde nasceu, mas criou-se em Madrid” – informação da Drª Carla Vieira, a quem agradecemos.
3-IDEM, pº 7264, de João Vareda. Por 1712, em Lisboa, fazia “contas mui grossas e importantes” para um “judeu de sinal chamado D. Joseph Cortiços” que se encontrava em lisboa reclamando o pagamento de dívidas da fazenda Real “e lhe ficou muito obrigado o dito Cortiços, pela clareza e brevidade com que lhas fez (…) e vendo-se ele declarante nesta Corte pobre e desempregado e destituído de meios com que se pudesse sustentar, se resolveu passar para Holanda; e chegando a Roterdão, esteve ali 5 dias e passados eles, foi para Londres onde se encontrou com o dito judeu Cortiços que nos primeiros tempos da sua assistência o socorreu com alguma coisa e depois o desamparou…” Depois de processado, João voltou para Inglaterra onde vivia, casado com uma sobrinha de Luís Álvares de Oliveira.
4-IDEM, pº 8338, de Beatriz Pereira Angel; ANDRADE e GUIMARÃES – Nós Trasmontanos… jornal Nordeste nº 1084, de 22.8.2017.
5-Francisco Lopes terá o sobrenome Oliveira e será filho de Baltasar Lopes de Oliveira, irmão de Belchior Lopes, morador em Carção e “procurador” da firma dos Mogadouro em terras do Nordeste Trasmontano. ANDRADE e GUIMARÃES – Carção Capital do Marranismo, Bragança, 2008.
 

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Lopes Pereira, “rendeiro dos milhões” (Mogadouro, 1617 – Madrid, 1683)

Francisco Lopes Pereira nasceu por 1617, em Mogadouro. Gaspar Lopes, seu pai, era mercador, natural de Chacim. E terá sido em Chacim, que Francisco foi iniciado no judaísmo, pela avó Joana Lopes e seus tios paternos João e Cristóvão, quando chegou aos 12 anos.
E nessa idade o pai e os tios paternos o iniciaram também na vida de mercador. Com eles terá viajado por terras de Portugal e de Espanha negociando tecidos. Aliás, a primeira culpa que lhe foi assacada respeita a esses tempos. Trata-se de uma denúncia feita em 1648 por Diogo Lopes, o capitão de alcunha, nos seguintes termos:
- Haverá 20 anos, achou-se ele confitente em Segóvia, em casa de Pedro Carrião, com Cristóvão Fernandes, cristão-novo, mercador, casado não sabe o nome da mulher e morador no Mogadouro e com Gaspar Lopes, cristão-novo, mercador, natural de Chacim e morador em Mogadouro e com Francisco Lopes Pereira, cristão-novo, natural do Mogadouro, hoje casado com Maria Dias, e estando todos juntos, se declararam que criam e viviam na lei de Moisés e que faziam os jejuns… (1)
Cristóvão Fernandes era um dos tios de Francisco e Gaspar Lopes o pai, mercadores ambulantes que “vendiam mercadorias em Segóvia, Medina, Madrid e Toledo: não passavam mais de 8 a 15 dias em cada sítio e logo iam a Braga, Coimbra, Guimarães, Aveiro e Lisboa”. (2) Assim andaria “servindo” seu pai e seus tios, por dois anos, tempo suficiente para o jovem Francisco fazer o seu pé-de-meia e meter-se a negociar por sua conta e risco. Inclusivamente para contratar dois criados que o ajudariam no negócio, levando lenços para Espanha e de lá trazendo sedas.
Nem sequer o levantamento de 1640 e a guerra da restauração fizeram parar o seu negócio transfronteiriço. Veja-se, a propósito uma declaração por ele feita em Abril de 1651:
- Disse que este setembro fará um ano, se achou ele confitente na cidade de Salamanca onde foi com licença de Sua Majestade, na pousada que se chama “El Mesón de los Toros” com Manuel Fernandes Carlos (…) e com Henrique Lourenço (…) e estando todos juntos fizeram o dito jejum do dia grande.
Em 1647 faleceu em Mogadouro um jovem cristão-novo chamado João Borges e o trato do defunto, mortalha, cerimónias e ritos funerários, tudo foi feito à maneira judaica, com esmolas e jejuns e profissões de fé na lei mosaica.
A notícia do acontecimento chegou ao santo ofício de Coimbra que mandou investigar o caso. (3) Seguiu-se a entrada da inquisição e um verdadeiro “tsunami” arrasou a comunidade marrana de Mogadouro com cerca de centena e meia de prisões, em vagas sucessivas.
Francisco Lopes Pereira foi um dos 84 decretados a prisão na vaga de 22 de fevereiro de 1651, a maior de todas. Poucos dias depois de ser preso, logo começou a confessar e pedir perdão de suas culpas, saindo condenado em hábito a arbítrio no auto da fé de 14.4.1652.
Quando foi preso, Francisco era já casado com Maria Dias, de Chacim e tinha dois filhos: Gaspar e Manuel, de 6 e 4 anos, respetivamente. (4)
Regressado a Mogadouro, tentaria retomar os seus negócios quando um estranho acontecimento abalou a vila. Foi o assassinato de um seu primo carnal, chamado António Lopes e outro companheiro seu enquanto dormiam, em um sítio ermo, à beira de um caminho, próximo da aldeia de Remondes. Os matadores foram Francisco Lopes Peña e Diogo Henriques Pereira, cunhados entre si, ajudados por um Francisco Luís. O pretexto dos matadores foi o facto de António Lopes andar metido de amores com Maria Lopes, irmã de Francisco Peña, mulher de Francisco Lopes Compra, ausente em Castela.
Francisco Lopes Pereira tomou a peito a vingança da morte do primo. Foi a Lisboa e conseguiu que a Justiça real levasse o processo-crime por diante, acabando os matadores por ser condenados à morte por enforcamento. Porém, como haviam fugido para Espanha e não foi possível executá-los, fizeram-se três “estátuas” dos matadores, as quais ficaram penduradas na forca da vila de Mogadouro.
Obviamente que estes acontecimentos acrescentaram medos, ao medo da inquisição. E tal como outros muitos, Francisco foi com a mulher e os filhos a viver para Espanha, precedido, aliás, por vários parentes. Viveu em Madrid cerca de meio ano, tempo suficiente para conhecer a cadeia civil por “muitos dias”. Na base desta prisão estaria um litígio comercial com os irmãos Carvalho, fugidos também de Mogadouro.
Por essa altura Francisco tinha uma parceria comercial com Manuel da Costa, a qual começara já em Mogadouro. E os dois parceiros, breve deixaram Madrid e se foram para Granada, tendo Manuel da Costa precedido em meio ano a chegada, porventura devido a percalços surgidos com a prisão do sócio.
Em Granada tinha Francisco o seu irmão Diogo que trazia arrendado o monopólio da distribuição do tabaco, não apenas na cidade mas em toda a região. Significa isto que em volta dele gravitavam não apenas familiares seus, mas uma pequena multidão de correligionários idos de Mogadouro, Chacim, Vila Flor e outras terras Trasmontanas, empregados uns na Fábrica do tabaco e outros nos postos de venda espalhados pela cidade e pelo reino.
Diogo Lopes e Clara Lopes sua mulher não tinham filhos e para sua casa foi morar Francisco e a família, então acrescida com o nascimento da filha Beatriz. E se a casa de Diogo Lopes era já o ponto de encontro de muita gente, com a chegada de Francisco tornou-se um verdadeiro areópago que, por vezes virava “sinagoga”. Como aconteceu no mês de setembro de 1656, conforme testemunho de Ana de Cáceres:
- Disse que fizeram o jejum do dia grande em suas casas onde viviam nesta cidade os ditos Francisco Lopes Pereira e D. Maria Angel; Gaspar e Manuel, seus filhos; Diogo Lopes Pereira e Clara Lopes, que viviam em uma casa; e Ana Lopes e seu marido e sua filha, que viviam em outra; Maria Nunes, casada com um Fulano de Salamanca, que viviam em outra casa. E pela tarde se juntaram todos em casa de Francisco Lopes Pereira. (5)
Esta e outras denúncias tiveram como consequência a prisão de Francisco Lopes Pereira, em 1658, pela inquisição de Granada e a de sua mulher, D. Maria Dias, aliás, D. Maria del Angel, “na tarde de 15.1.1661”.
Não tivemos acesso a nenhum dos processos mas tão só a umas cópias da defesa de Maria Dias, remetidas de Castela anos depois e que andam no processo instaurado em Lisboa a seu filho Gaspar. Dali colhemos mais informações sobre Francisco Lopes Pereira que, ao chegar a Granada, “negociava em roupas como damascos, terciopelos, tafetás e o mesmo tratava de enviar estes géneros de sedas para Cádis e Sevilha”, logo depois se metendo no negócio do tabaco e tomando a renda dos “milhões” da cidade, um imposto que se pagava sobre o pão, o vinho e outros bens vendidos em público.
Não sabemos quanto tempo Francisco e a mulher permaneceram nas masmorras da inquisição mas temos o testemunho de Francisco Garcia da Costa, parente de Maria Dias dizendo que no ano de 1665 os viu “sambenitados” no “cárcere da penitência” em Granada.
Entretanto em outros tribunais da inquisição iam-se registando denúncias contra os mesmos e, por 1666-67, voltariam a ser presos, juntamente com o filho mais velho, conforme testemunho do filho Gaspar:
-Disse que o pai do réu, Francisco Lopes Pereira e sua mãe, Maria Dias del Angel e seu irmão, Manuel de Aguilar, sendo moradores em Madrid, foram presos pelo santo ofício e levados para a cidade de Toledo no ano de 1666 ou 67, estando o réu ausente, em Puerto de Santa Maria.
Seria curta a estadia na cadeia e eles condenados ligeiramente, em penas pecuniárias, talvez porque os “crimes” eram os mesmos por que já tinham penado anteriormente. Sobre a sua morte, temos a informação dada pela filha Beatriz em 1687:
- Disse que era filha de Francisco Lopes Pereira, morador desta cidade, rendeiro do tabaco e que falecera em Madrid havia 4 anos. (6)

Notas e Bibliografia:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 6790, de Francisco Lopes Pereira.
2-BAROJA, Julio Caro – Los Judíos en la España Moderna y Contemporánea, pg. 82-84, ed. Istmo, Madrid, 1978.
3-Uma devassa foi conduzida pelo deputado do mesmo tribunal Mateus Homem Leitão e outra pelo vigário geral de Moncorvo.
4-Francisco Lopes e Maria Dias casaram por 1643. Francisco era também o pai de Beatriz Lopes, nascida em 1644, de uma relação com Catarina Martins. – ANDRADE e GUIMARÃES – Gaspar Lopes da Costa, in: Jornal Nordeste, nº 1082 de 8.8.2017.
5-ANTT, inq. Lisboa, pº 2744, de Gaspar Lopes Pereira. – ANDRADE e GUIMARÃES – Gaspar Lopes Pereira, in: jornal Nordeste. nº 1083, de 15.8.2017. IDEM – Percursos de Gaspar Lopes Pereira e Francisco Lopes Pereira dois cristãos-novos de Mogadouro, in: Cadernos de Estudos Sefarditas, nº 5, pp. 253-297, Lisboa, 2005.
6-IDEM, pº 8338, de Beatriz Pereira Angel. ANDRADE e GUIMARÃES – Beatriz Pereira Angel, in: jornal Nordeste nº 1084, de 22.8.2017.

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - José da Costa, capitão de navios (n. Lisboa,1690)

As raízes de José da Costa estão em Mogadouro, terra de sua mãe, Beatriz Pereira, neta de Francisco Lopes Pereira, o Papagaio, de alcunha e de Catarina Martins. O pai chamou-se André Vareda e seria originário de Itália, com um dos filhos a dizer que era natural de Pádua, e outro dando-o nascido em Roma.
Difícil seguir também o percurso de seus pais, o qual ficaria assinalado pelo nascimento de um filho em Cadiz, outro em Badajoz, um terceiro em Viana do Castelo e o nosso biografado em Lisboa, por 1690, sendo o mais velho dos 5 irmãos que chegaram à idade adulta.
Ainda pequeno quando rumou a Castela com o pai que, sendo contratador, levava uma vida de itinerâncias. Por 1709, encontrava-se José da Costa em Elvas, no ofício de soldado de cavalaria, a crer na informação de seu tio materno, Gaspar Lopes da Costa dizendo que aí se declararam um ao outro por judeus e acrescentou que o José lhe dissera que fora doutrinado por seu pai.
No ano seguinte encontrava-se em Lisboa e temos notícia de um encontro com Simão de Bivar, (1) na casa deste, o qual lhe daria um livro em castelhano para que o lesse “que era bom por tratar da lei de Moisés, que era boa para a salvação das almas”. Não se alongaria José da Costa por Lisboa e pelo ano de 1711 “passou para a Baía e para casa de uma sua tia chamada Clara Lopes” que lhe ensinou mais coisas da lei de Moisés.
Em casa de Clara Lopes estaria uns 3 meses, ao fim dos quais se embarcou para Angola. Não sabemos em que condições e em que companhia terá decorrido esta viagem, se bem que podemos suspeitar que fosse com um filho da Clara Lopes chamado Francisco Rodrigues Pereira que, sendo morador na Baía, tinha casa montada na cidade de S. Paulo de Luanda, em Angola. Não sabemos se nesta viagem José ia já como capitão do navio ou como  passageiro. Certo é que a sua vida seria a de capitão de navios, ocupado principalmente no transporte de escravos de África para o Brasil.
E era já capitão do navio “Jesus Maria e José” (2) quando casou na Baía com Ana de Bernal Miranda, (3) por 1717. E era já proprietário de uma “roça” nas vizinhanças da cidade da Baía, no sítio da Graça, quando, por 1718, a sua mãe, o seu irmão António, a sua irmã Luísa e o marido desta chegaram à Baía e se instalaram na casa de José da Costa, o qual desempenharia o papel de chefe do clã famíliar, na falta do pai que falecera em Lisboa.
Antes de prosseguirmos, convém apresentar os irmãos que, certamente, trabalhariam mais ou menos em rede, como era próprio da gente da nação. Vejamos:
*João da Costa, ou Baredo, nasceu em Cadiz por 1693 e foi processado em 1714 pela inquisição de Lisboa, depois do que fugiu para Londres, onde já estivera antes e fora circuncidado. (4)
*Gaspar da Costa deixou o Reino em data que ignoramos e foi para o sertão brasileiro procurando ouro nas Minas de Cuiabá.
*Carlos Pereira, seguiu para a Baía e dali embarcou para a ilha do Príncipe, no Golfo da Guiné, e lá faleceu, pelo S. João de 1721. (5)
*António Lopes Pereira, nascido em Viana do Castelo, por 1704, aportou igualmente na Baía e dali foi para Angola.
*Finalmente, a irmã Luísa Maria Rosa, nascida em Badajoz, era já casada com João Gomes Carvalho quando embarcou para o Brasil, com a mãe, o irmão António e o seu marido. Este casal permaneceu poucos anos no Brasil, regressando a Lisboa por 1723. (6)
Não temos descrições das viagens do capitão José da Costa com o “seu” navio. Sabemos que a chegada da mãe à Baía coincidiu com a chegada de uma das suas “expedições” à Costa da Mina. E também sabemos que o Kipur de 1721 foi celebrado em sua casa por toda a família, com o jejum dedicado ao feliz sucesso de uma viagem que ele se preparava para fazer nos dias seguintes para a mesma Costa. Podemos ainda dizer que ele viajava para a Colónia do Sacramento onde o seu contacto comercial seria o seu cunhado Luís Nunes de Miranda, ali estabelecido. Mas a rota mais seguida pelo capitão do navio “Jesus Maria e José” era a de Angola. E a principal mercadoria transportada eram os escravos, considerados “marfim negro” e tratados como “peças”, comprados e vendidos em praças públicas, como gado em feiras.
E José da Costa não seria um simples capitão de navio mas um verdadeiro corsário. O próprio inventário dos seus bens ajuda-nos a compor a sua imagem de corsário. Vejam o equipamento que o inventário apresenta:
*Um vestido de lemiste preto e uma véstia de seda, da mesma cor, que lhe havia custado 60 mil réis.
*Camisas de Holanda (3 ou 4), com punhos de renda fina, que valiam mais de 40 mil réis.
*Uma véstia de veludo verde e outra de crepe preto, usadas, que valiam 12 mil réis.
*Um espadachim de prata, com punho de ouro, comprado por 6 moedas de 4.800 réis cada uma.
*Duas espingardas, novas, estrangeiras, que lhe custaram 32 mil réis.
*Duas plumas de chapéu de martinete que valiam 7 ou 8 moedas, de 4 800 réis.
*Dois martinetes mais ou cocares que valiam moeda e meia.
Camisas com punhos de renda, casaca de veludo verde ou preto, espada com punho ouro, chapéu em bico, decorado com plumas de uma ave de Porto Rico… é mesmo a imagem de corsário que o cinema consagrou!
De resto, os bens inventariados ao piloto, as dívidas ativas e passivas… tudo anda em volta do comércio de escravos e em todo o processo apenas há referência a umas 20 peças de algodão remetido de Angola para o proprietário do barco e umas fazendas levadas para o Rio da Prata juntamente com uma “manada” de escravos.
Foram mais de 20 as denúncias de judaísmo apresentadas contra José da Costa que foi mandado prender pela inquisição de Lisboa em 13.3.1726 mas que só em 13 de junho de 1728 ali foi entregue, vindo embarcado de Pernambuco na nau “Santiago Maior”. Acabou condenado em cárcere e hábito perpétuo e confisco de bens no auto de 16.10.1729. (7)
Depois terá novamente embarcado para o Brasil, como se depreende da seguinte declaração feita por sua mulher em 4.11.1737, a qual ficou morando em Lisboa, na Ruas das Gáveas, ao Bairro Alto e foi presa segunda vez:
- Disse que tinha 2 escravas, uma chamada Isabel e outra Ana, as quais lhe tinha mandado seu marido José da Costa, não sabe quanto valem por não saber quanto custaram ao seu marido. E que ela deve a seu cunhado João Gomes, homem de negócio morador em Alfama, as mesadas com que lhe assistia por conta de seu marido, não está certa no que importam mas o que ele disser será verdade. E que ela é devedora a seu irmão Manuel Nunes Bernal de assistência que lhe fez nesta Corte. (8)

Notas e Bibliografia:
1-Simão de Bivar era natural de Mogadouro, filho de D. Afonso de Bivar, cavaleiro castelhano e de Clara Rodrigues, de Torre de Moncorvo. – ANTT, inq. Lisboa, pº 3677, de Simão de Bivar.
2-O proprietário do barco era Francisco Xavier da Silveira.
3-Ana Bernal de Miranda foi levada pelos pais para o Brasil quando era pequena. Seu pai era médico e um de seus irmãos foi estabelecer-se na Nova Colónia de Sacramento estrategicamente situada na margem do Rio da Prata, cuja posse era disputada entre Portugal e Castela.
4-Na verdade, fizeram-lhe apenas um ligeiro corte pois que ele “não podia rigorosamente ser circuncidado porque não tinha onde se lhe poder fazer a cortadura, o que procedia de uma grande queixa gálica que ele havia padecido na mesma parte”. ANTT, inq. Lisboa, pº 7264, de João Baredo. Agradecemos à Drª Carla Vieira ter-nos cedido a transcrição do processo.
5-ANTT, inq. Lisboa, pº 9924, de Beatriz Pereira. Depois de contar que fizera o jejum do kipur de 1721 em casa de José da Costa, com este, com o filho Carlos, com a filha Luísa, com o genro João de Carvalho e com a nora Ana de Miranda “para que Deus nosso senhor desse bom serviço ao dito seu filho José da Costa em uma viagem que havia de fazer para a Costa da Mina”, volta atrás para emendar: - Agora estava melhor lembrada que o seu filho Carlos não estava presente porque falecera pelo S. João e o jejum fora em setembro…
6-IDEM, pº 2424, de Ana de Bernal Miranda; pº 764, de João Gomes Carvalho.
7-IDEM, pº 10002, de José da Costa.
8-IDEM, pº 2424-1, de Ana de Miranda.
 

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - António Fernandes Pereira (n. Mogadouro,1693)

Seu pai, Manuel Fernandes, (1) nasceu em Vilarinho dos Galegos, Mogadouro e os ascendentes mais antigos que conhecemos e pertenceram à primeira geração de cristãos-novos, viveram em Sendim e Duas Igrejas, terras de Miranda.
A mãe, Maria Pereira, (2) seria originária de Castela, se bem que não haja certezas sobre o local de seu nascimento: Castela, Bragança ou Mogadouro. Pertenceu a uma “ínclita geração” que foram os filhos de Domingos Pereira, o Gaioso, de alcunha, e Clara Lopes, verdadeira matriarca.
O jovem casal constituído por Manuel Fernandes e Maria Pereira estabeleceram morada em Mogadouro e aí nasceu António Fernandes Pereira, pelo ano de 1693. Recém-casados, dispunham já de algum capital, pois que logo ascenderam à categoria de rendeiros. E como rendeiros foram viver para o Vidago, termo de Chaves. São daí as primeiras recordações do nosso biografado, do ponto de vista religioso, dizendo que foi sua mãe que o introduziu na lei de Moisés quando tinha 7 anos, acrescentando que “ficou com sua mãe até à idade de 9 anos”. Há uma nebulosa, porém, nestas vivências de António Fernandes que, em outra ocasião, confessou:
- No Porto, em casa de Gaspar Lopes da Costa, (3) onde ele réu assistia desde a idade de 5 para 6 anos, se achou com Manuel Lopes Dourado, cirurgião (…) que o doutrinou a mandado do pai dele réu, e ele réu tinha então 10 anos de idade.
Podemos então concluir que a meninice de A. F. Pereira foi vivida entre o Vidago e o Porto. Aliás, em 28.7.1732, sua mãe faria a seguinte declaração:
- Haverá 26 ou 27 anos, no lugar de Vidago, nas casas em que ela morava, se achou com seu filho (…) António Fernandes Pereira, solteiro e agora não sabe novas dele (…) e estando ambos sós, por ocasião do dito seu filho lhe dizer que na cidade do Porto o haviam ensinado a viver na lei de Moisés, se vieram ambos a declarar e não disseram mais porque passados poucos dias se ausentou.
Na verdade, antes de embarcar para o Brasil, o pequeno António e o “passador” ou “agente” Gaspar da Costa terão viajado para o Vidago, certamente a fazer as despedidas. E, contando ainda uns 10 anos de idade, ele chegaria ao Brasil, à povoação de Parnamirim, a casa de sua avó Clara Lopes, que continuaria a ministrar-lhe o ensino da lei mosaica.
Os anos seguintes, até atingir a maioridade, assistiria sobretudo em casa de sua tia Luísa Pereira, casada com Francisco Fernandes Camacho, (4) primeiro em Ferrobilhas e depois nos Campinhos da Cachoeira, ambos sítios da freguesia de S. Gonçalo, termo da Baía. E a tia Luísa lhe completaria o ensino da religião judaica.
Por 1718 António Fernandes traçou um novo rumo para a sua vida, metendo-se a caminho das Minas de ouro e fazendo-se mineiro. Nos 10 anos seguintes, foi empresário de sucesso e “correu todas as Minas Gerais, Novas e Velhas”.
Primeiro terá explorado minério no Córrego do Bacalhau, termo de Ribeirão do Carmo, onde tinha uma casa e nela terá judaizado no ano de 1721 com seu irmão Domingos Pereira da Costa e com seu primo Manuel Lopes Pereira, também mineiro. Nesse ano, porém, o jejum do “dia grande” tê-lo-á feito em casa de Francisco Nunes de Miranda, no termo de Vila Rica.
Depois foi explorar ouro para o sítio do Mato Dentro, termo de Rio Frio, bispado do Rio de Janeiro e ali, em sua casa, no ano de 1726, terá celebrado a festa do Kipur com alguns amigos e parentes, nomeadamente David Mendes da Silva e Manuel Lopes Pereira.
Por 1729, tinha exploração montada nas Minas Novas de Araçuaí, mal suspeitando que, em 10 de abril do ano anterior, os inquisidores de Lisboa tinham assinado o mandato de sua prisão que seria consumado em 12 de outubro de 1730 com a sua entrega no tribunal de Lisboa. Assim se alterava o rumo da vida de um homem de 37 anos e se arruinava uma empresa de sucesso. Façamos então o ponto da situação, espreitando o inventário de seus bens, que logo lhe foram sequestrados:
*Uma roça nas Minas de Araçuaí, que valia mil oitavas de ouro.
*Outra roça no sítio do Mato Dentro, do Serro Frio, que valia 50 oitavas de ouro.
*uma morada de casas no mesmo sítio que valia 600 oitavas de ouro.
*Tinha “ouro das águas do morro de mato Dentro” que arrematara por 400 oitavas de ouro, de sociedade com Diogo de Aguiar.
*20 ou 21 escravos, sendo 2 “fêmeas” avaliados em 3 mil oitavas de ouro.
*As ferragens de minerar que valiam umas 30 oitavas de ouro.
Deixamos o resto dos bens, como fossem talheres de prata, mobílias ou roupa, assim como as dívidas, ativas e passivas, coisas que pouco acrescentarão para caracterizar a empresa de António Pereira.
Repare-se que as oitavas de ouro constituem a moeda corrente naquela parte do império. A moeda oficial (réis) parece nem ter ali circulação. Devemos, no entanto, dizer que 1 oitava de ouro equivalia a 1 500 réis, (5) significando isso que os bens acima arrolados valiam mais de 7 contos e quinhentos mil réis, uma verdadeira fortuna!
Do ponto de vista teológico, o processo de António Fernandes é muito interessante, na medida em que ele confessou fazer muitas e continuadas cerimónias judaicas e ditou orações que sua mãe lhe ensinara em criança e que toda a vida rezara mas disse que sempre fora cristão e que fazia as coisas de judeu apenas para “comprazer com as pessoas” de suas relações, “a fingir que vivia na lei judaica”. Veja-se:
- Disse que fez as orações e cerimónias que a dita sua tia lhe ensinou persuadido de que não seria do desagrado de Deus, não crendo na lei de Moisés, antes na de Cristo (…) porque só as fazia para comprazer com as pessoas que com ele comunicavam.
Gostaríamos de apresentar aqui uma belíssima oração que sua mãe lhe ensinou em criança, a qual trata das relações entre Deus e o povo eleito, da aliança feita com Moisés no monte Sinai. Impedidos pela extensão da mesma, apresentamos uma mais pequena, igualmente aprendida em criança com a mãe:
Poderoso grão senhor
Da tua sanha me livra;
Rogo-te meu criador
Que aplaques a tua ira,
Por que o rei da perdição
Contra mim não prevaleça;
Posto que o não mereça
Dá-me a salvação, senhor.

Uma última nota para dizer que António Fernandes Pereira tinha 9 irmãos, 5 dos quais conheceram como ele os cárceres da inquisição. Um irmão e duas irmãs casaram na família Peinado, de Bragança e foram presos no rio Tejo quando iam embarcar para Inglaterra, fugindo da inquisição. (6)

Notas e Bibliografia:
1-Manuel Fernandes faleceu em Chaves, sendo morador na Quinta de Paradela. Em 1690 foi preso pela inquisição. O mesmo acontecera em décadas anteriores com seus pais e avós. - ANTT, inq. Coimbra, pº 224, de Manuel Fernandes.
2-Maria Pereira apresentou-se na inquisição de Coimbra onde ficou presa, em 1726, saindo reconciliada em 9.5.1728. – Pº 8832.
3-Gaspar Lopes da Costa aparece nesta altura na cidade do Porto como “passador” de gente para o Brasil e mais tarde exerceria a mesma atividade em Lisboa embarcando gente fugida da inquisição para a Inglaterra – ANDRADE e GUIMARÃES, jornal Nordeste, nº 1082, de 8.8.2017.
4-Aventurosa foi a vida de Francisco Camacho. Certamente pressentindo o cerco da inquisição, deixou o Brasil e embarcou para o reino. Chegado aos Açores, em Angra do Heroísmo, foi à sede episcopal pedir que lhe enviassem para a inquisição um escrito que deu e no qual “pede aos senhores inquisidores Mesa, que tem que dizer nela, e que por achaques que padece o não fez (…) e que o fará com toda a brevidade, dando-lhe Deus saúde. Ilha Terceira, 1 de outubro de 1725”. O papel foi enviado para a inquisição de Lisboa que abriu o respetivo processo – nº 13442 – do qual nada mais consta. Sabemos, porém, que Francisco Camacho chegou ao reino e se despediu da família dizendo que ia ao Algarve. Na verdade, 8 anos depois, escreveu de Londres, onde vivia usando o nome de Francisco Martins, a mandar ir as filhas para junto dele. – ANTT, inq. Lisboa, pº 9925, de Beatriz Lopes.
5-FERNANDES, Neusa – A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII, ed. Uerj, 2000.
6-ANDRADE e GUIMARÃES, José Rodrigues Peinado, in: jornal Nordeste nº 1040, de 18.10.2016

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Ferreira Isidro (n. Freixo de Numão,1685)

Francisco Ferreira Isidro é bem um exemplo do trasmontano sefardita empreendedor que pega em tudo o que aparece e tira proveito das situações. Tinha uns 18 anos quando abalou para o Brasil, atraído pelas novas que dali vinham. Chegaria à Baía e aos Campos da Cachoeira por 1703 e começaria por entrar no mundo da agropecuária, tratando-se de uma região de excelência na produção de açúcar, tabaco e solas, produtos dos mais procurados na Europa. (1)

Mas logo teve notícias de descobertas de ouro mais a sul, na região que tomaria o nome de Minas Gerais e, por 1709, Ferreira Isidro deixou a Baía e a Cachoeira, metendo-se a caminho das Minas, provavelmente acompanhado por Manuel Nunes da Paz, certamente seu conhecido dos tempos da infância passados entre Freixo de Espada à Cinta, Vilvestre e Lumbrales, terras castelhanas de fronteira. A propósito desta viagem, temos uma declaração do mesmo Francisco feita em 1727:

- Disse que haverá 18 anos no sertão da Baía, a caminho das Minas, dois ou três dias de jornada dos campos da Cachoeira, se achou fazendo a jornada com Manuel Nunes da Paz, cristão-novo, tratante, então solteiro e hoje casado, filho de Diogo Nunes Henriques… (2)

Por toda a parte se começaram então a montar arraiais mineiros, com cabanas e casas abarracadas que originaram a formação de povoados novos no sertão brasileiro. Entre eles foi o Ribeirão do Carmo que primeiro ganhou o estatuto de vila, em 1711 e Francisco Ferreira Isidro contar-se-ia entre os fundadores, ali chegando por 1709. (3)

Começou por comprar uma roça e tinha “dois bois de carro” para o seu amanho. Ignoramos as culturas agrícolas produzidas na roça onde construiu duas “casas de telha”. Podemos então considerá-lo um colono, lavrador de roça.

Mas era também mercador, com loja de tecidos estabelecida, conforme ele próprio confessou:  “no sítio que chamam as Casas Altas, termo da vila do Ribeirão, em casa que ele confitente ali tinha para vender suas fazendas…”

Porém, tratando-se de uma terra nova, a construção civil era um campo a explorar. Aí, o fabrico de telha e ”tijolos” seria fundamental e Ferreira Isidro espreitou o furo: fez construir uma olaria. E assim o vemos, feito empreiteiro a vender casas e a fornecer telhas.

A colonização brasileira foi essencialmente feita com mão-de-obra escrava, originária de África. E como colonizador, o nosso biografado, adquiriu 25 escravos, o que representava um investimento notável: 18 mil cruzados, ou seja, mais de 7 contos de réis!

Obviamente que o garimpo era fundamental e a atividade principal de Ferreira Isidro era a de mineiro, atividade em que os escravos seriam principalmente utilizados.

Empresário de sucesso, dava emprego a dois caixeiros: o seu sobrinho Luís Vaz de Oliveira (4) e Gaspar Fernandes Pereira, natural de Mogadouro e com uma aventura empresarial igualmente interessante por terras do Nordeste Brasileiro. (5)

Isidro foi denunciado por 89 testemunhas com as quais se terá declarado seguidor da lei de Moisés e feito cerimónias judaicas. A grande maioria era constituída por cristãos-novos da região do Douro Superior, o que nos dá ideia sobre o tecido social construído na região de Minas Gerais pelos que daqui foram naqueles primeiros tempos. E se falámos de dois caixeiros que com ele trabalharam, importa referir alguns dos que com ele mantiveram mais estreitos contactos, aparecendo nas listas de denunciantes e denunciados.

Desde logo e como atrás se referiu aparece Manuel Nunes da Paz, natural de Lumbrales e todo o seu grupo familiar, assistente em Freixo de Espada à Cinta, com vários membros emigrados na região. Também de Freixo de Espada à Cinta, os filhos de Francisco Nunes e Maria da Fonseca, moradores no arraial de Serro Frio e minas de Cayaté.

Outro nome que importa registar é o de Clara Lopes de Mogadouro, moradora na Cachoeira, que liderava um verdadeiro clã, no qual se incluíam os filhos e vários parentes como José da Costa “que move negócio para o reino de Angola” e os mineiros Domingos Pereira e António Fernandes Pereira, seus netos.

Em dezembro de 1725 foi mandado prender, sendo entregue na cadeia de Lisboa em 6 de outubro do ano seguinte, trazido do Rio de Janeiro sob a responsabilidade de José Semedo, capitão da nau Nª Sª da Conceição. Tinha 41 anos e mantinha-se solteiro. Ao identificar-se perante os inquisidores, Francisco Ferreira Isidro disse que “era natural de Freixo de Numão, ou de S. João da Pesqueira, ou da Touça”. Depreende-se que seus pais não teriam “pouso” muito certo. O que logo corroborou dizendo que seu pai era de Torre de Moncorvo ou Vila Flor e sua mãe era “moradora em Vilvestre e Vitigodinho, no reino de Castela, na fronteira deste Reino”.

Luís Vaz de Oliveira se chamou o pai, que era filho de Diogo Vaz de Oliveira, de Vila Flor e Francisca Vaz, natural de Torre de Moncorvo. Ambos foram presos pela inquisição de Coimbra em junho de 1658, sendo moradores na cidade do Porto. (6) Henrique e Manuel Vaz Oliveira, também seus filhos, irmãos de Luís Vaz foram-se para Espanha e tinham loja de mercadores no Puerto de Santa Maria.

A mãe de Francisco Isidro teve o nome de Filipa Henriques e era filha de outro Francisco Ferreira Isidro, que foi capitão de uma companhia de tropas auxiliares que participou na batalha das Linhas de Elvas. Também ele conheceu as cadeias da inquisição. Este Francisco Ferreira Isidro foi casado com Francisca Vaz Alvim que, para além de Luís, lhe deu mais um filho e duas filhas, uma das quais se chamou Isabel Cardosa (7) e morou em Freixo de Espada à Cinta, casada com Duarte Nunes Cardoso.

O nosso biografado tinha 3 irmãos e 3 irmãs, uma das quais chamada Francisca Vaz ou Alvim que morou em Saucelhe, Castela, casada com o boticário João Sanches Majoral e foram os pais do caixeiro e mineiro Luís Vaz, atrás referido; de Francisca Henriques de Oliveira que morou no Porto, casada com o cabeleireiro e estanqueiro do tabaco José de Miranda e Castro e de Francisco Ferreira Sanches Isidro que, quando a mãe foi presa, deixou Freixo de Espada à Cinta e foi para Portalegre onde o seu padrasto (António Nunes Cardoso) tinha estanco do tabaco e depois se dirigiu à cidade do Porto e embarcou para Londres onde permaneceu cerca de um mês, frequentando a sinagoga mas não conseguiu integrar-se na comunidade judaica, regressando a Lisboa a apresentar-se no tribunal da inquisição onde contou a sua aventura religiosa. Tinha 15 anos e muita terra percorrida! (8)

O processo de Francisco F. Isidro decorreu dentro da “normalidade” com o réu a mostrar-se colaborante desde o início, dizendo-se arrependido e pedindo perdão de seus erros. Terminou condenado em cárcere e hábito perpétuo no auto da fé de 28.7.1728. trata-se de um processo interessante para o estudo das relações transfronteiriças dos cristãos-novos de Freixo de Espada à Cinta e mais ainda da vida quotidiana da comunidade sefardita do Douro Superior emigrada nas Minas Gerais do Brasil.

 

Notas e Bibliografia:

1-ANDRADE e GUIMARÃES – Os Isidros, a epopeia de uma família cristã-nova de Torre de Moncorvo, ed. Lema d´Origem, Porto 2009.

2-ANTT, inq. Lisboa, pº 11965, de Francisco Ferreira Isidro.

3-Ribeirão do Carmo foi elevada à categoria de vila em 1711. Em 1745 foi batizada com o nome de Mariana e ascendeu a cidade, então escolhida para sede de bispado.

4-Luís Vaz de Oliveira era filho de Francisca Alvim, irmã de Ferreira Isidro, a qual foi relaxada no auto da fé de 25.7.1728. Foi para o Brasil aos 9 anos, chamado por seu tio de quem foi caixeiro. Depois começou a trabalhar por sua conta, nas ditas Minas do Ribeirão do Carmo. ANTT, inq. Lisboa, pº 9969, de Luís Vaz de Oliveira.

5-ANTT, inq. Lisboa, pº 8777, de Gaspar Fernandes da Costa; ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… in: Jornal Nordeste, nº 1085, de 2017-08-29.

6-IDEM, inq. Coimbra, pº 754, de Diogo Vaz Oliveira; pº 420, de Francisca Vaz.

7-IDEM, pº 4494, de Francisco Ferreira Isidro, capitão de auxiliares; pº 1433, de Isabel Cardosa.

8-IDEM, inq. Lisboa, pº 4227, de Francisco ferreira Sanches Isidro.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - António da Fonseca (n. Mogadouro, 1673)

António da Fonseca nasceu na aldeia de Castelo Branco, por 1673, sendo batizado na igreja matriz do mesmo lugar, por os seus pais ali assistirem por negócios que tinham, já que a residência era na vila de Mogadouro. Manuel Lopes Dourado se chamava o seu pai, cirurgião barbeiro, natural de Freixo Espada Cinta. A mãe, nascida em Mogadouro, nomeava-se Ana Martins.
Um tio paterno, chamado Domingos Lopes Dourado, foi almocreve e casou em Urros com Maria de Andrade, fixando o casal residência em Escalhão. Ambos foram presos pela inquisição.(1) O mesmo aconteceu com sua tia Maria da Fonseca, casada com António de Morais,(2) ferrador de profissão, natural de Vila Flor, os quais residiram em Freixo, antes de se mudarem para o Porto.
Do lado materno, teve um tio, cujo nome dizia ignorar e que estaria “habilitado para clérigo” e 3 tias, todas casadas, com moradas repartidas por Mogadouro e pelas aldeias de Paradela e Vilarinho dos Galegos. 
Entre os seus irmãos inteiros, citemos: Manuel de Almeida, cirurgião barbeiro que primeiro casou no Azinhoso e segunda vez em Mogadouro e Pascoal de Almeida que foi para o Brasil e por lá viveu, casado com Floriana de Matos, o qual terá falecido antes que o mandato de prisão fosse executado.(3)
Das vivências de António Fonseca com familiares citados, praticamente não temos registo. De contrário, a sua vida foi completamente marcada pelos encontros e desencontros com o seu meio-irmão paterno Gaspar Fernandes Pereira, a partir do ano de 1706.(4)
Voltemos a Mogadouro, à infância de António Fonseca. Ignoramos a sua idade quando ficou órfão de mãe e foi enviado para Salamanca, onde passou um ano. Regressado a Portugal, viajou para o Porto e dali embarcou para o Brasil, onde o encontramos, em constante movimento e desempenhando atividades diversas. Por um lado, exercia o ofício de ajudante de ordens com gente da tropa ou da ordenança.(5) Por outro lado, dizia-se mercador e “costumava comprar e vender cavalos para o que era bastante esperto e diligente”, na expressão de uma testemunha, acrescentando outra que ele fazia “viagens ao sertão em negócios de cavalos e bois, que era o seu modo de que vivia”.
Primeiramente ter-se-á fixado em Parnaíba, na fazenda do capitão Manuel Álvares de Sousa, de quem se tornou ajudante, transitando depois para a fazenda do mestre de campo Atanásio Sequeira Brandão sita na Barra da Carrinhanha, na margem do rio S. Francisco, onde chegou com uma carta de recomendação daquele pedindo para o “emparar e favorecer”.
Em uma de suas viagens, dirigindo-se do Rio de S. Francisco para a cidade da Baía, chegando ao sítio de Água Fria, tomou conhecimento que à fazenda de Clara Lopes e seus filhos, sita em Parnamirim, Campos da Cachoeira, chegara um carregamento de fazendas trazido por Gaspar Pereira e enviado do Porto por Gaspar Lopes da Costa. Aquele era o seu meio-irmão paterno e os outros eram todos seus conhecidos de Mogadouro. Obviamente que logo se dirigiu à dita casa e por lá ficou uns 2 meses. Este foi o primeiro mau encontro com o irmão, conforme explicaremos mais à frente.
De Parnamirim seguiu para a Baía e dali “alvorou” como ajudante do sargento-mor Temudo Meireles Machado para o seu “engenho” no sítio de Rio Fundo, distante uma dúzia de léguas da Cachoeira. No Rio Fundo, casou com Violante da Silva, uma afilhada da mulher do mesmo sargento-mor e que viveria no mesmo engenho com os pais Manuel da Cunha e Custódia da Silva.
Por 1713, pegou na mulher e nos filhos e voltou para a fazenda do mestre de campo Atanásio Brandão, passando-se depois para a fazenda da Malhada, sita nas proximidades e pertencente ao Dr. João Calmon, chantre da Sé da Baía, visitador e comissário da inquisição.
Em 1719, estando em sua casa, apareceu ali o seu irmão Gaspar pedindo-lhe para o acompanhar numa viagem de canoa pelo rio de S. Francisco a cobrar uma dívida derivada de um “comboio” de fazendas que tinha vendido ao capitão Domingos de Amorim, dono do “engenho” do Pilão Arcado. Em paga lhe daria 100 mil réis e um cordão de ouro e lhe pagaria uma dívida que tinha de 150 mil reis. 
Demorou a viagem 4 meses e, para o caso de o devedor se recusar a pagar, levavam uma ordem do dito Atanásio Sequeira, no sentido de serem sequestrados e leiloados os bens necessários ao pagamento da dívida. A isto se opôs o capitão Francisco Sousa Ferreira, então morador naquele sítio e certamente responsável pela defesa e manutenção da ordem, dizendo que “o devedor tinha em S. Tomás, em poder de António Teixeira, sobrinho dele capitão, ouro suficiente para pagamento de tal dívida”.
Não cobrando a dívida, Gaspar negou-se a pagar o prometido ao irmão. E aí começaram os desencontros. Durante uns 4 ou 5 dias, ainda viajaram juntos até á fazenda dos Angicos. Depois… Gaspar foi-se a cobrar a dívida em outras paragens e, no ano seguinte, meteu-se de regresso a Portugal. Fonseca ficou entregue a si próprio a mais de 40 léguas de casa.
O pior, no entanto, estava ainda para vir. É que, sendo preso pela inquisição de Lisboa, Gaspar denunciou o irmão, dizendo que se declarara com ele e fizera cerimónias judaicas em casa de Clara Lopes, no ano de 1706. E por esta simples denúncia, António Fonseca foi preso em 13.1.1727 e trazido para Lisboa na nau Nª Sª da Oliveira capitaneada pelo mestre Duarte Pereira, onde chegou em 16.8.1828. Por 4 anos conheceu os cárceres do santo ofício, sendo posto a tormento e acabando condenado em cárcere e hábito perpétuo no auto de 6.7.1732.(5)
Da leitura do processo ressalta, antes de mais a defesa que dele fazem todas as testemunhas e que o cavaleiro da ordem de Cristo, Atanásio Brandão, sintetizou:
— Quando o viu preso pelo santo ofício, dissera que se ele tinha culpas naquele tribunal não sabia de quem se havia de fiar.
E ressalta ainda mais o homem bom, “naturalmente alegre” que sempre se dispunha a ajudar os outros. O próprio comissário da inquisição, depois da inquirição das testemunhas nomeadas, escreveu no seu relatório final:
— Sempre o conheci por cristão-velho, muito temente a Deus (…) de que sou testemunha de vista e a sua caridade para com todos; era muito admirado pois, sendo pobre, se não negava no que lhe era possível…
E o capitão-mor Vicente de Pina, que morou 11 anos perto dele, falaria assim dos dois irmãos:
— Gaspar Fernandes era mau homem e pouco agradecido a favores que o dito António da Fonseca lhe fazia quando em sua casa o buscava; e sabia que António da Fonseca, com toda a sua pobreza, nunca a ele dito irmão buscara.
Homem pobre e pai de 4 filhos, fizera-se lavrador de roça, certamente em terra alugada e no seu amanho se empregariam os 2 escravos e 3 escravas que António Fonseca possuía e valeriam cerca de 400 mil réis que, certamente lhe foram sequestrados e vendidos em praça.
Terminamos com a transcrição de um parágrafo de suas confissões contando uma cena acontecida na Baía em casa de Ana de Miranda:
— Estando todos, perguntou ele réu a Violante Nunes por António Fernandes Camacho e a mesma lhe respondeu que era falecido e levando-o a uma câmara, coberta com uma toalha, onde estavam coisas de comer em que entravam pão, azeitonas e algumas frutas e em cima da mesa estava uma candeia acesa e perguntando-lhe ele confitente que era aquilo, ela respondeu que era em memória do dito António Fernandes Camacho e que a candeia dava luz era sinal que ele estava no céu… 
 
Notas e Bibliografia:
1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 4199, de Domingos Lopes Dourado; pº 2792, de Maria de Andrade.
2 - IDEM, pº 6181, de Maria da Fonseca; pº 8130, de António de Morais.
3 - IDEM, inq. Lisboa, pº 17352, de Pascoal de Almeida: — O ano de 1728 me remetera (…) um mandado para se prender na vila da Mocha, de Piagui, a Pascoal de Almeida, por ordem desse tribunal (…) segurando-lhe depois ter notícia ser o dito Pascoal de Almeida falecido no rio de S. Francisco, no sítio das Barreiras…
4 - IDEM, inq. Lisboa, pº 8777, de Gaspar Fernandes Pereira; ANDRADE e GUIMARÃES – Jornal Nordeste, nº1085, de 29.8.2017.
5 - IDEM, pº 10484, de António da Fonseca.

 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Gaspar Fernandes Pereira (n. Mogadouro, 1690)

Gaspar Fernandes Pereira nasceu em Mogadouro por 1690. A sua mãe, Maria Lopes, era irmã inteira de Gaspar Lopes da Costa. O pai chamou-se Manuel Lopes Dourado(1) e era natural de Freixo de Espada à Cinta. 
Manuel Lopes Dourado foi casado em primeiras núpcias com Ana Martins e o casal teve pelo menos 5 filhos, meios-irmãos de Gaspar. Um deles chamou-se António da Fonseca, o qual emigrou para o Brasil, onde se tornou lavrador de mandioca, na região do rio de S. Francisco. Irmãos inteiros, teve apenas um, que se chamou Francisco e faleceu ainda pequeno.
Nascido em Mogadouro, Gaspar cedo perderia a mãe. E, ficando órfão, dele tomou conta o tio e padrinho, Gaspar Lopes da Costa, atrás citado, que o levou para a cidade do Porto. Ali viveriam, mantendo estreitas relações com a família de Francisco Lopes Carrança, no seio da qual ambos haveriam de casar mais tarde.
Pelos 10 anos começou a trabalhar de “caixeiro” com o mesmo tio que, um ou dois anos depois, o mandaria para o Brasil, levando fazendas para vender. Foi dirigido e à responsabilidade de Clara Lopes, viúva de Domingos Pereira que se encontrava instalada, com seus filhos, em uma roça nos Campos da Cachoeira, recôndito da Baía. De seguida tornou-se “caixeiro” da mesma Clara Lopes e seus filhos. 
A chegada de Gaspar ao Brasil terá acontecido em 1702, a crer no testemunho de seu meio-irmão António da Fonseca que o foi visitar e com ele, terá passado 2 ou 3 meses.
Permaneceria Gaspar pelas bandas da Cachoeira uns 10 anos, regressando ao Porto e a Lisboa por 1712, para casar com Branca Teresa, filha de Francisco Lopes Carrança e Maria Gomes, que entretanto deixaram o Porto e foram para Lisboa. Ali encontrou também Gaspar Fernandes o tio, agora também seu cunhado, Gaspar Lopes Costa, e feito “passador” de judeus para Inglaterra. Vejam, a propósito, uma cena que o nosso biografado contaria, em 1726, para os inquisidores:(2)
— Há 13 anos em Lisboa, junto ao Cais da Pedra, em uma fragata, na qual foi a bordo de um navio, em companhia de seu sogro e cunhado Gaspar Lopes da Costa (…) e em uma quinta diante do convento de Nª Sª da Graça, indo para Penha de França, se achou com Brites da Costa, cunhada e sogra dele confidente, filha de Francisco Lopes Carrança.
Afinal quem era a sua mulher e quem eram os seus sogros? Expliquemos. Branca Teresa, filha de Francisco Lopes Carrança, terá falecido pouco depois e não consta que tenha deixado qualquer filho. E ficando viúvo, Gaspar Fernandes viria a casar mais tarde com uma sobrinha da falecida mulher,(3) filha de sua irmã Brites da Costa e de Gaspar Lopes da Costa, seu tio e cunhado e depois seu sogro. Caso exemplar de endogamia! Mas este casamento aconteceria apenas anos mais tarde.
No estado de viúvo e contando cerca de 24 anos, Gaspar Fernandes embarcaria novamente para o Brasil. No ano seguinte, encontrar-se-ia no sítio do Papagaio, “distrito das Minas Gerais de S. Paulo”. Sim, que a febre do ouro começava então a alastrar pelo Brasil. Mas ele não era mineiro, antes continuou na atividade de “caixeiro”, agora ao serviço de Francisco Ferreira Isidro,(4) nas minas do Ribeirão do Carmo, morando na freguesia de N.ª Sr.ª da Oliveira.
Ontem como hoje, sempre houve dívidas difíceis de cobrar. De uma dessas cobranças temos particular notícia, dada por seu irmão António Fonseca que o acompanhou pelo Rio de S. Francisco para o interior do Brasil.
Assim se explica que ele viajasse pelos sítios mais diversos da Baía a S. Francisco, das terras de S. Paulo às do Rio de Janeiro, das Minas Gerais às Minas de Ouro Preto ou do Serro Frio ou do Ribeirão do Carmo… entre 1715 e 1720, contactando a mais diversa gente, nomeadamente da etnia hebreia, como registou Anita Novinsky.(5) 
Regressaria a Portugal por 1720 e certamente trazia uma bolsa com grossos cabedais, o que lhe permitiu tomar de arrendamento o assento da província do Minho. Nesse mesmo ano terá casado com Josefa Teresa da Costa, atrás referenciada, a qual, no ano de 1723, lhe deu uma filha que batizaram com o nome de Beatriz. 
Para além do pagamento dos ordenados e fornecimento de géneros às tropas estacionadas na província do Minho, Gaspar Fernandes tomou também a cobrança das rendas da comenda de Algoso, o que lhe exigia dispor de 2 contos e 800 mil réis em dinheiro contado, que era o montante que tinha de pagar à cabeça e correspondia a um ano de renda.
Para além do assento do Minho e da comenda de Algoso, Gaspar era mercador e vendia coisas tão diversas como baetas, serafinas e outras fazendas, papel ou pimenta, não faltando “peças de Ruão”. Assim se explica a vida de andarilho entre Lisboa, Porto, terras do Minho, Vila Real e Mogadouro. Onde ele não faltava era na feira de S. Mateus, em Viseu. E não ia apenas à feira, antes alugava uma casa em que ficava instalado por uma boa semanada.
Contava 35 anos quando o meteram nas masmorras do santo ofício de Lisboa. Começou por confessar que foi iniciado no judaísmo por Gregório da Silva Henriques, na Cachoeira. Depois alterou o depoimento dizendo que foi instruído logo aos 7 anos por seu tio Gaspar Costa, continuando Clara Lopes o mesmo ensino. 
Por 15 meses ocupou as celas da inquisição, saindo penitenciado em cárcere e hábito perpétuo no auto de 13.10.1726, juntamente com sua mulher. Meio ano depois, ambos escreveram uma carta conjunta ao inquisidor geral pedindo licença para comungarem. O parecer dos inquisidores foi negativo e a razão principal foi esta: 
— Toda a sua família, assim que saíram no auto, se ausentaram para Inglaterra e se presumia que eles o não foram também por estar prenha a mulher. 
Posto em liberdade, ele não fugiu, antes se meteu no negócio do tabaco, com o estanco em Benavente. Ali o vamos encontrar em 21.12.1728, na igreja da Senhora da Graça, a ratificar o testemunho que em tempos dera sobre o seu irmão António da Fonseca, agora preso na inquisição de Lisboa.(6) Terminamos com uma das orações que Gregório da Silva Henriques lhe ensinou:
 
Poderoso grande Senhor
hacedor de cielo y terra
del mundo gobernador
buelve como buen pastor
las ovejas a la sierra
y las que hubieren comido
apártalas del rebaño
socórrelas gran Dios
donde no hagan daño.
Yo como oveja perdida
a tu ganado dexé
mas vuelve Señor a mi
de nuevo dama la vida
como al cordero humanado
Abraham por tu mandado 
a Isaac su hijo amado
el brazo teniendo levantado
la pancada dar quería
cuando su majestad
há visto su corazón limpio e
[sano
envio hun ángel cortesano
que descendesse 
e le tibiesse a la mano
si alguna nueva divina
[clemencia.
Dámela por perdonado 
líbrame de Satanás
e de su malas cuestiones
como libraste a Daniel
del lago de leones.
Líbrame de Satanás 
y del poder del demónio
como libraste a Susana
de aquel falso testimonio.
Líbrame de Satanás 
y de su poder fecundo
como libraste a Noé
en aquela arca del diluvio.
Señor, pequei
Y sempre estou pecando.
Havei misericórdia de mim, 
ajudaime, encaminhaime,
abençoaome y perdonaime.
 
 
Notas e Bibliografia:
1 - Domingos Lopes Dourado e Maria Fernandes Dourado, avós de Gaspar, foram moradores em Urros, concelho de Torre de Moncorvo. Para além de Manuel Lopes Dourado o casal teve uma filha chamada Maria Lopes que casou com António de Morais, ferrador de profissão. E tiveram outro filho, chamado Domingos Lopes Dourado, cirurgião como o pai, que foi casado com Maria de Andrade e morador em Escalhão. - ANTT, inq. Coimbra, pº 6181, de Maria Lopes; pº 4199, de Domingos Lopes Dourado.
2 - ANTT, inq. Lisboa, pº 8777, de Gaspar Fernandes Pereira.
3 - IDEM, pº 8783, de Josefa Teresa da Costa.
4 - ANDRADE e GUIMARÃES – Os Isidros, a saga de uma família de cristãos-novos de Torre de Moncorvo, ed. Lema d´Origem, Porto, 2012.
5 - NOVINSKY, Anita – Inquisição Rol dos Culpados Fontes para a História do Brasil sec XVIII, ed. Expansão e Cultura, Rio de Janeiro, 1993.
6 - ANTT, inq. Lisboa, pº 10484, de António da Fonseca.

 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Beatriz Pereira Anjel (n. Granada, 1652)

Beatriz Pereira Anjel terá nascido em Granada, Espanha, por 1653, sendo filha de Francisco Lopes Pereira e Maria Dias, um casal de cristãos-novos de Mogadouro que naquela cidade e respetiva circunscrição alcançou o monopólio da venda do tabaco. Significa isto que a família ocupava um lugar social de destaque e era servida por quantidade de familiares e amigos empregados na fábrica do tabaco e na sua venda pelos estancos da cidade e mais terras do reino de Granada. De parceria com Manuel da Costa, de Torre de Moncorvo, alcançou também o monopólio da venda do sal em Málaga e ainda a administração dos “millones” de Granada, um imposto que se pagava sobre o vinho, o pão e vários outros géneros alimentícios vendidos em público.(1)
Para o rápido êxito empresarial de Francisco Lopes Pereira, muito contribuiria o seu irmão Diogo Lopes Pereira, casado com Clara Lopes e sem geração, o qual o precedeu na emigração para Castela e para Granada, em cuja casa foi recebido  e passou a morar Francisco e a família. Aliás, a fábrica e a renda do tabaco eram dele.
Quando tudo corria de feição, Francisco Lopes Pereira foi preso em Madrid e metido nas celas da inquisição de Toledo em 1658 e D. Maria del Angel, aliás, D. Maria de Aguilar, (como então já era respeitosamente chamada a Maria Dias), foi também presa pela inquisição de Granada. Com os pais presos e contando Beatriz uns 5 anos, foi retirada do contacto dos irmãos e outros familiares e entregue aos cuidados de D. Bartolomeu Galiano, agente de negócios em Madrid, juntamente com um escravo e uma escrava de seus pais que a serviam. Nesta situação permaneceu por 4 anos.
Seus pais retomaram a liberdade, a tempo de casarem a Beatriz que andava pelos 15 anos, com D. Pedro Maldonado de Medina, nascido em Miranda do Douro, por 1645 e levado pelos pais para Madrid com 2 anos de idade.(2) Contando uns 23 anos, D. Pedro era já um homem de respeito e consideração, integrando a classe dos rendeiros.
O casal fixou residência em Granada, transferindo-se para a cidade de Málaga, pelo ano de 1683, certamente para ali tomar conta da distribuição do tabaco, seguindo certamente os planos da rede familiar do negócio que, com a morte de Francisco Lopes Pereira, nesse mesmo ano de 83 e sua mulher, antes ainda, passaria a ser liderado por Manuel de Aguilar, irmão de Beatriz.
A inquisição seguia atentamente o percurso da gente da nação, muito especialmente os portugueses que se destacavam nos circuitos do comércio, dos assentos e das rendas. E assim, ao início do ano de 1687, D. Beatriz Pereira Angel e o marido foram metidos nas cadeias da inquisição de Granada, saindo penitenciados em cárcere e hábito em 1689. Por 3 anos andaria a aristocrática senhora vestida com o horroroso sambenito, enquanto o marido saiu cego da prisão.
Obviamente que a vida em Granada não era nada fácil para esta família. Imagine-se: uma senhora da condição de D. Beatriz Angel obrigada a andar pelas ruas da cidade e assim ir à missa vestindo um horroroso sambenito, exposta à irrisão pública! Menos interessante ainda para o marido, outrora rico e poderoso e agora cego. Assim se explica que a família tenha então decidido abandonar Granada e tentar a vida em Antequera. Inútil, a fama de judeus tê-los-á precedido e, ao cabo de 6 meses, rumaram a Portugal, seguindo o irmão Manuel de Aguilar que, estabelecido na cidade do Porto,(3) obtivera já a renda do tabaco, em cujos estancos se empregava muita da larga parentela. Além de que, em Lisboa estariam já contratados os casamentos dos filhos. Vamos apresenta-los:
1 – Francisco de Medina, nascido por 1675 em Sevilha, casado em primeiras núpcias com Isabel Pinheiro.
2 – Isabel Pereira de Medina, nascida por 1678 em Granada, veio a casar com Manuel Lopes Pinheiro.
3 – Joana Pereira de Medina, casou com Gabriel Lopes Pinheiro.
4 – Gaspar de Medina, que, estando solteiro, logo deixou Lisboa e se foi para Londres.
Como se vê, os três filhos casaram na família Pinheiro, originária de Freixo de Numão. E pelo menos o casamento da filha mais nova, Joana de Medina, não seria nada da vontade dos pais. Tanto que, depois que casaram, Beatriz não voltaria a falar com a filha e o genro, conforme ela própria testemunhou.
A vinda para Lisboa de D. Beatriz e D. Pedro teria sido acertada com Francisco Lopes Laguna, cunhado daquele, casado com sua irmã Feliciana Henriques,(4) também ele originário de Mogadouro e líder também de um poderoso grupo empresarial. Este lhe arranjaria casa, na rua das Mudas,(5) então uma das mais comerciais de Lisboa e, inclusivamente, lhe deu esperanças de que em Lisboa conseguiria um médico competente para tratar a sua cegueira. Acresce que Francisco Laguna estivera também em Castela e fora sócio comercial do cunhado.
Por esse tempo, a comunidade judaica de Londres florescia e os ingleses afirmavam-se como os grandes parceiros de Portugal, no que respeita ao comércio internacional, com os seus barcos a encher os portos de Lisboa e Porto. E esses barcos apresentavam-se como o mais simples e seguro caminho de fuga para os cristãos-novos portugueses perseguidos pela inquisição. E esta acentuou então o seu trabalho, num extraordinário movimento de prisões. 
E, vendo prender os Laguna, dois dos filhos de Brites Angel, o Gaspar e a Isabel puseram-se em fuga num desses barcos, saindo em um sábado de manhã, ao princípio de novembro de 1702. O mesmo caminho tentou seguir D. Brites com o marido e as restantes filhas e genros. E estando no barco há 20 dias, quando este se preparava para zarpar, foram entregues pelos ingleses à inquisição de Lisboa, certamente na sequência de contactos e muitas pressões sobre os representantes da diplomacia inglesa em Lisboa.(6)
Era uma nova descida aos “infernos” da inquisição que Betriz Angel iniciava nesse dia 2 de dezembro de 1702.(7) Por 3 anos ali penaria, sendo inclusivamente posta a tormento. Acabou condenada em cárcere e hábito perpétuo e degredada por 3 anos para o Brasil, no auto da fé de 1 de setembro de 1705.
Do seu processo, que correu com relativa normalidade, comentamos apenas duas situações. A primeira justificando os desentendimentos com os Laguna. Vejam o depoimento prestado por seu marido:
— Em razão de ser ele testemunha pessoa de toda a conta e satisfação no reino de Castela, sentia que vindo, o buscasse e fizesse zombar dele Francisco Lopes Laguna, falando-lhe por Tu, como se fosse um carcereiro, tratando ele em Castela com o duque de Alba, Desembargadores e mais Senhores com muita satisfação, tratando-o estes por Senhor, do que ele e sua mulher se deram por muito sentidos e se não falaram mais.
A outra situação respeita aos vizinhos Domingos Lopes e Francisca Lopes, que tinham uma filha chamada Grácia. E esta e Gaspar de Medina, filho de Beatriz, começariam a namorar. Os pais da menina é que não encontraram graça e mandaram tapar as janelas da casa que davam para a deles, a fim de impedir qualquer conversação entre os jovens.
 
 
Notas e Bibliografia:
 
1 - BAROJA, Julio Caro – Los Judíos en la España Moderna y Contemporánea, pp. 91-92, ediiones ISTMO, Madrid, 1978.
2 - ANDRADE e GUIMARÃES – Judeus em Trás-os-Montes, A Rua da Costanilha, pp. 177 e seguintes, ed. Âncora, Lisboa, 2015.
3 - Manuel de Aguilar transferiu depois a residência para Lisboa, onde veio a falecer – ANTT, inq. Lisboa, pº 9924, de Brites Pereira.
4 - A esta altura Feliciana já era defunta e Francisco L. Laguna estava casado em segundas núpcias com Leonor da Fonseca.
5 - Na rua das Mudas, algumas décadas atrás, era também a sede das empresas da família “Mogadouro” e a importância da família de Francisco Lopes ficaria assinalada na toponímia da cidade, com o designado “Beco dos Lagunas”. ANDRADE e GUIMARÃES – A casa comercial de Diogo Álvares na Rua das Mudas em Lisboa, em 1655, in: jornal Terra Quente de 1.12.2011.
6 - A descrição desta tentativa de fuga foi pormenorizadamente feita pelo seu genro Manuel Lopes Pinheiro – ANTT, inq. Lisboa, pº 2378.
7 - ANTT, inq. Lisboa, pº 8338, de Beatriz Pereira Anjo.

 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Gaspar Lopes Pereira (Mogadouro, 1642 – Lisboa, 1682)

Nasceu por 1642, na vila de Mogadouro, sendo filho primogénito de Francisco Lopes Pereira e sua mulher Maria Dias. (1) Na terra natal se criaria e ali aprendeu a ler e escrever, com o “mestre-escola” João Bernardo.

Andaria pelos 9 anos quando, ao final de fevereiro de 1651, a vila de Mogadouro foi autenticamente tomada de assalto, por um verdadeiro exército de familiares da inquisição, padres e frades e militares requisitados pelo tribunal de Coimbra para prender umas 120 pessoas acusadas de judaísmo, constantes da lista enviada ao comissário António Azevedo da Veiga, reitor da igreja de Sambade, que comandaria as operações. (2) Um dos prisioneiros foi o pai de Gaspar. Imagina-se a impressão que os acontecimentos terão causado na criança, nela deixando indelével marca.

Posto o pai em liberdade no ano seguinte, a família abalou para Castela, e depois de uma breve estadia em Madrid foi assentar casa em Granada, cidade onde vivia já um tio paterno de Gaspar, metido nos negócios do tabaco. Chegaram ali em agosto de 1653.

A partir de então, ele “nunca teve assento nem morada certa” pois a vida de Gaspar Lopes Pereira era “andar sempre nas estradas, com fazendas dos pais” – para usarmos as suas próprias palavras. Entre Portugal e Espanha conhecia todos os caminhos “por neles andar sempre com seus contratos de mercancia”. Especialmente conhecia os caminhos para Mogadouro onde se deslocava com frequência e fazia estâncias de semanas, como atestaram algumas testemunhas. Mais conhecidos ainda eram os caminhos de Lisboa, onde passava meses e vinha sobretudo comprar tabacos, trazendo de Espanha cavalos e tecidos para vender. Na capital do reino hospedava-se na estalagem de Manuel Fernandes, sita ao Beco das Comédias. E tanto o estalajadeiro que o recebeu por mais de 20 anos, como o barbeiro, o confeiteiro e outros que o serviram ou com ele conviveram, o retrataram como “um homem de bom entendimento, de muita indústria e viveza nos negócios”.

Mas não eram só os caminhos de Portugal e Castela que Gaspar conhecia. Não: ele fazia também viagens para a França, a Itália e a Flandres, conhecendo muito bem Roma e Livorno onde contactou com “professores judeus”, assim como a cidade holandesa de Amesterdão, cuja sinagoga frequentou e onde se apresentava como “público profitente da lei de Moisés”, como ele próprio confessou.

Em 16 de Março de 1675, a inquisidores de Valhadolid escreveram para Lisboa dizendo que haviam passado ordem de prisão a Gaspar Lopes Pereira, que não foi encontrado. E constando que se encontrava em Lisboa, requereram a sua prisão, enviando cópia das denúncias feitas contra ele por: Ana de Cáceres; Francisco Garcia Torres e João de Torres, em 1664, 1666 e 1668, respetivamente.

Foi encontrado na estalagem do Beco das Comédias e preso, no dia 8 de Abril de 1675. Para além dos objetos e mercadorias apreendidas e sequestradas, tinha consigo 47 moedas de ouro, que valiam 206 mil e 800 réis, o suficiente para comprar uma boa casa.

Antes de prosseguir, voltemos atrás, ao verão de 1673, em que os cristãos-novos portugueses, vinham negociando em Roma um perdão geral para os prisioneiros da inquisição e uma alteração dos métodos praticados. Em Roma as negociações eram conduzidas pelo padre jesuíta Francisco de Azevedo e em Lisboa um dos 3 representantes da “nação hebreia” era António Rodrigues Marques, da poderosa família dos Mogadouro. (3) As negociações encontravam-se em bom ponto e era necessário levar documentação importante. E quem melhor do que Gaspar Lopes Pereira, para levar o correio a Roma?

Partiu a 27 de agosto, obrigando-se a fazer a viagem em 20 dias, como costumava. Aconteceu porém que ao atravessar a Espanha, adoeceu com “las calmas” que faziam. E só ao fim de 43 dias é que a documentação chegou às mãos do padre Francisco de Azevedo, que assim tinha visto gorada a assinatura do perdão geral pelo papa. (4) E o padre Francisco de Azevedo acusou Gaspar de se ter atrasado propositadamente e que estaria pago pelos inquisidores. E tão zangado ficaria que, além dos insultos, até puxaram de facas.

Fiquemos agora com Gaspar Lopes Pereira, metido nas masmorras da inquisição de Lisboa. (5) Ao cabo de meio ano, decidiu confessar que judaizara durante 10 anos e que fora catequizado por Diogo Rodrigues do Vale, viúvo de sua tia Maria Lopes. Por dois anos prosseguiu o seu processo, com os inquisidores a dizer que as suas confissões eram diminutas e que contasse toda a verdade, para merecer perdão e misericórdia.

Entretanto, a luta diplomática em Roma continuava e foi suspenso, pelo papa, o despacho de processos pela inquisição portuguesa. Em resposta, o rei D. Pedro II, apoiado pela máquina inquisitorial que dominava por completo a hierarquia da igreja, mandou fechar à chave as casas da inquisição. Pobres dos prisioneiros! Se antes a vida era difícil, agora tornava-se dramática, com o agravamento das condições de salubridade e alimentação.

Só em 1681 a inquisição reabriu e só em 22 de dezembro o processo de Gaspar foi retomado. A solidão e o desespero haviam transformado por completo este homem de “bom entendimento, muita indústria e viveza nos negócios”. Na audiência que então lhe foi concedida, ele revogou as confissões que antes fizera e declarou que fora educado na lei de Moisés desde criança, que sempre fora judeu e que na lei judaica havia de morrer porque só nela encontrava salvação. Muitas sessões tiveram com ele os inquisidores e vários teólogos qualificadores foram chamados para o convencer que a lei verdadeira era a de Cristo. Inútil. Argumentavam que, como fora batizado, era obrigado a ser cristão. Respondia que foi batizado “em tempo que não podia deixar de o ser… e não tem obrigação de seguir preceitos da igreja católica romana que vão contra a lei de Moisés, quando tem esta por mais certa”. 

Continuou irredutível, afirmando que “na lei que Deus dera a Moisés esperava viver e morrer”. Nem sequer vacilou quando lhe ataram as mãos e o levaram para ser queimado no grandioso auto da fé celebrado no Terreiro do Paço em 2 de Maio de 1682, para celebrar o restabelecimento fulgurante da inquisição, no qual foram penitenciados 106 réus, muitos deles trazidos das inquisições de Coimbra e Évora. Daqueles penitenciados, 3 foram condenados à morte como judeus, sendo Gaspar foi um deles. Em mais uma memória enviada para Roma apontando 27 reparos àquele auto da fé, escreveu-se a respeito de Gaspar Lopes Pereira o seguinte:

- (…) E o mesmo Gaspar Lopes, quando o apertavam com razões para o convencer, respondia a tudo por remate: - Sem botica – resposta tão despropositada que parece de homem insensato, e mais desesperado que infiel. E todos os ditos profitentes iam como assombrados e fora de si, com tal aspeto que parecia terem no corpo o diabo, e não falta quem presuma que este lhe apareceu nos cárceres e, ajudando-se das misérias e lástimas em que se achavam, sem remédio para a vida, nem honra, os fez sair em tal desesperação. (6)

Seria o desespero que levou Gaspar Lopes a querer morrer queimado na fogueira? Ou seria mesmo uma profunda convicção interior de que a lei judaica era a verdadeira? Nesse caso, ele deverá ser considerado um mártir do judaísmo e o seu nome inscrito no livro de ouro dos judeus.

Antes de lhe dar a notícia de que ia ser queimado, os inquisidores mandaram um pintor fazer-lhe um retrato, com o seu rosto envolto em chamas, as chamas do inferno. Esse retrato foi enviado para Mogadouro e esteve pendurado na igreja de S. Mamede até se romper, para exemplo do povo cristão.

 

Se, ao pendurar o seu retrato na igreja, os inquisidores intimavam os cristãos de Mogadouro a execrar a sua memória, nós os convidamos hoje a rezar uma belíssima oração que Gaspar ditou para o processo. O papa Francisco e o bispo José Cordeiro haverão de gostar. Rezem connosco:

Perdóname Señor que te he ofendido,

perdona al miserable que te llama,

perdona el desamor que te he tenido,

no me condenes, Señor, a eterna llama.

Vuelve esses tus ojos a mirarme,

suefre el que por amarte se desama,

valga contigo el confesarme,

válgame ante ti llorar mi ofensa.

Pliegote ahora un poco a escucharme

que si tu gracia en esto mi dispensa

y si mi ayudas, Señor, en lo que digo,

servirá el acusarme di ofensa.

Pecador soy, Señor, tu es testigo,

Que a tus ojos divinos no ay negarlo.

 

Notas e Bibliografia:

1-Francisco foi o pai de Beatriz da Costa, nascida fora do casamento em 1644. Gaspar teve um irmão inteiro chamado Manuel de Aguilar, nascido por 1645 e uma irmã chamada Beatriz Pereira, nascida já em Castela.

2- O trabalho não terminava com a prisão dos decretados, antes continuava no arrolamento dos bens dos prisioneiros e venda em hasta pública dos necessário para se fazerem 20 mil réis para despesas de transporte e alimentação, pois tinham de pagar até as cordas e os ferros com que os prendiam e as jornas aos que os conduziam para os cárceres do santo ofício.

3-ANDRADE e GUIMARÃES – A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, ed. Veja, Lisboa, 2009.

4- Nesta ofensiva diplomática contra a inquisição foi destacado o papel do padre António Vieira, que fora preso em Coimbra e do ex-notário da inquisição Pedro Lupina Freire.

5- ANTT, inq. Lisboa. Pº 2744, de Gaspar Lopes Pereira.

6- ANTT, Armário Jesuítico, Segunda caixa, nº 87, Reparos feitos por ocasião do Auto da Fé…

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Gaspar Lopes da Costa (Mogadouro,1670 – ?)

Batizado em Mogadouro no dia 29 de agosto de 1670, Gaspar era filho de Belchior Fernandes e Beatriz Lopes. O pai, originário de Sanfins da Castanheira, termo de Monforte de Rio Livre, foi morador na Quinta do Vimieiro, Mirandela, de onde passou à vila de Mogadouro, para servir como criado em casa de Francisco Lopes Pereira, cristão-novo, o Papagaio, de alcunha. A mãe era filha natural do mesmo Papagaio e de uma Catarina Martins.
Beatriz nascera em 27.5. 1644 e no assento de batismo ficou escrito: - “Aos 3 dias do mês de Junho de 1644, batizou o padre António Martins a Beatriz, filha de Catarina Martins, cujo pai não sabe…” Se o pai não deu o nome no batismo da filha, a verdade é que desde menina cuidou dela, criando-a em sua casa. E ainda não tinha a Beatriz completado os 13 anos, quando o pai a casou com o seu criado Belchior, no dia 25.4.1657, escrevendo-se no registo de casamento que a noiva era “filha de Francisco Lopes Pereira e Catarina Martins”. E em dote de casamento, o pai deu-lhe a quinta do Souto, também conhecida como a quinta do Papagaio. O novo casal teve 10 filhos, 3 dos quais devemos referir:
1-Maria Lopes, que casou no Mogadouro, com Manuel Lopes Dourado, de uma família cristã-nova bem conhecida na terra e assinalada pela inquisição. Um filho do casal, Gaspar Fernandes Pereira, casaria com uma filha do nosso biografado e seria também preso pelo santo ofício. (1)
2-Beatriz Pereira que casou com André Vareda, de Mogadouro. O casal emigrou para o Brasil, e por lá faleceu o André. Também a Beatriz e alguns de seus filhos, passariam pelas cadeias da inquisição. (2)
3-O terceiro dos filhos é o nosso biografado que, pelos 9/10 anos, falecendo o seu pai, (3) deixou Mogadouro e se foi para o Porto. João Ribeiro, escrivão no Mogadouro, que ensinou o menino Gaspar a ler e escrever, dirá mais tarde que “ia descalço de pé e perna e depois, com muitos cabedais, viera várias vezes a esta vila onde tinha algumas irmãs”. Na verdade, foi rápida a ascensão económica deste homem que, aos 30 anos, se afirmava como “contratador de tabacos e sabões e rendeiro de comendas”.
Como explicar tão rápida ascensão? A dúvida permanece, mas estamos em crer que foi amparado por seu tio Manuel de Aguilar, filho do avô Francisco e sua mulher, Maria Dias.
Como quer que seja, Gaspar L. Costa e Beatriz L. Costa tinham morada estabelecida no Porto, na Ferraria de Baixo, uma boa casa, avaliada em 600 mil réis e bem movimentada de crianças, já que o casal viria a ter 17 filhos. Mas vejam um resumo da vida errante deste empresário, feito pelo próprio:
- Ele se criou no Porto, ficando sem pai na idade de 9 anos e dali foi para Barcelos com o trato dos tabacos e para Vila Real e para Lisboa e assistiu no Algarve, Alentejo e Beira, onde andou por várias terras, sendo administrador dos tabacos, sem domicílio certo, exceto nas vilas de Mogadouro e Viana (do Castelo) e em Compostela e na Corte de Madrid… (4)
Entretanto os esbirros da inquisição iam seguindo os passos de Gaspar e de seus familiares e amigos. E em 1697, um médico, familiar do santo ofício, informava o comissário Tomás de Almeida:
- Em casa de Francisco Lopes Carrança vira em muitas ocasiões, quando entrava a curar na dita casa, ajuntamentos entre os quais o seu genro, Gaspar Lopes (…), Diogo Vaz Faro (…), Manuel Rodrigues (…), o médico Gaspar Dias (…), um irmão do dito médico e o médico Miguel Nunes…
Na mesma altura, perante o mesmo comissário, outro familiar acrescentava:
- Que via entrar em casa de Manuel de Aguilar, contratador de tabacos, a Fernão Dias Fernandes e a seu irmão Gaspar, médico, e a Luís Francisco e a Rodrigo Álvares da Fonseca e a Gaspar Lopes da Costa e a seu sogro, e a Diogo Vaz Faro e a Gaspar Fernandes Lopes.
Em 1702, a inquisição começou a prender membros da família dos Medina, entre eles Joana de Medina, sobrinha de Gaspar da Costa, filha de sua meia-irmã, Beatriz Angel. (5) E este terá começado a sentir o cerco apertar-se em seu redor. E tratou de proteger-se, através de uma operação de limpeza de sangue.
E conseguiu que o juiz de Mogadouro e o vigário geral da comarca despachassem favoravelmente o processo provando que ele era filho de cristãos-velhos, sem gota de sangue judeu. Mas como, se muita gente de Mogadouro se recordava de ver pendurado na igreja o “retrato” do Papagaio que fora queimado pela inquisição como judeu?  (6)
Simples: ele conseguiu testemunhas provando que a sua mãe era filha de Catarina Martins e do padre Gonçalo Martins, do Azinhoso, ambos cristãos-velhos. (7) E assim, no livro de registo dos batizados de Mogadouro, foi acrescentada, à margem, a seguinte nota:
- Declaro que o pai de Beatriz que declara este assento foi o padre Gonçalo Martins, da vila do Azinhoso, e por assim estar justificada a filiação por sentença, em caso julgado cuja declaração para que conste a todo o tempo, fiz, por despacho do Dr. Vigário Geral. Mogadouro, 13 de Agosto de 1706.
Pensaria Gaspar que assim, munido com uma certidão de cristão-velho, estava protegido das garras da inquisição.
Entretanto a roda da fortuna também começou a encravar no mudo empresarial de Gaspar Costa. As dívidas à Fazenda Real chegavam aos 32 contos de réis e, por 1710, vivendo em Mogadouro, foi preso e levado para a cadeia de Miranda. Deste processo civil, não temos elementos concretos. Sabemos que saiu em liberdade condicional, como hoje se diz, ficando “preso debaixo de fiéis carcereiros”.
Na tentativa de endireitar os negócios e resolver o problema das dívidas à Fazenda, o nosso contratador mudou-se para Lisboa. E ali, entre os negócios, meteu-se a embarcar pessoas que fugiam da inquisição, ajudado por um cidadão inglês estabelecido em Lisboa, chamado João Cronque. Uma das famílias embarcadas seria a do irmão de sua mulher, João Gomes Carvalho. Este, porém, não se demorou lá e, um mês depois, estava de novo em Lisboa, apresentando-se na inquisição, onde falou de muita gente que fugia para Inglaterra, ajudada pelo seu cunhado, “passador de judeus”. Acusou ainda o cunhado de ter feito uma venda fictícia dos bens que tinha em Mogadouro a Leonor Angélica, sua irmã. (8)
Outras denúncias foram acrescentadas, já que, por aqueles anos, a inquisição fazia larga colheita entre familiares, amigos e conhecidos do nosso biografado, que foi preso em 10.7. 1725. O seu processo é deveras interessante, pois nos mostra a vida de um empresário em constante movimento, deitando mão a todos os negócios possíveis e relacionando-se com gente de toda a parte. Dele vamos apenas olhar o inventário dos bens que possuía em Mogadouro e que poderão ajudar na definição de uma “Rota dos Judeus”:
- Uma morada de casas por baixo da cadeia, com quintal, no valor de 100 mil réis; outra casa, onde mora o prior, também com quintal, avaliada em 80 mil réis; um campo de olival e horta, no sítio do Escorial, todo murado e que valia 500 ou 600 mil réis; a citada quinta do Souto; um campo de vinha e olival no sítio de Santo André.
Escusado será dizer que Gaspar Lopes da Costa acabou confessando-se judeu e ditou 3 belas orações para o processo. Terminou condenado em cárcere e hábito perpétuo, no auto de fé de 13 de outubro de 1726.

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Lisboa, pº 8777, de Gaspar Fernandes Pereira.
2-IDEM, pº 9924, de Brites Pereira; pº 7264, de João da Costa Vareda; pº 6540, de António Lopes da Costa.
3-Belchior Fernandes faleceu em Madrid, onde ia regularmente visitar os sogros.
4-ANTT, inq. Lisboa, pº 8766, de Gaspar Lopes da Costa.
5-ANDRADE e GUIMARÃES – Percursos de Gaspar Lopes Pereira e Francisco Lopes Pereira, dois cristãos-novos de Mogadouro, in: Cadernos de Estudos Sefarditas, nº 5, pp. 253-297, Lisboa 2005
6-O “retrato” pendurado na igreja de Mogadouro respeitava a Gaspar Lopes Pereira, tio de Gaspar Lopes da Costa, que foi queimado em 10.5.1682.
7- Na verdade o padre Gonçalo também andou de amores com Catarina Martins e dela teve uma filha que se chamou Apolónia, batizada em 1 outubro de 1653. Mas o padre não a desamparou, antes a levou consigo, a criou e “tratou por filha, coisa que não fez a Beatriz que esta sempre foi tida e havida por filha do Papagaio”.
8- ANTT, inq. Lisboa, pº 8764, de João Gomes Carvalho: - Entende que o dito Gaspar Lopes da Costa lhe deu o dito conselho em razão de ter feito um escrito de venda à dita sua irmã Leonor Angélica para que não sucedesse que lhe apanhassem a dita fazenda por dívidas que devia a el-rei e portanto recear que, se as ditas suas irmãs fossem presas, ele viesse a perder sua fazenda.