António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

PUB.

NÓS: TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Ana Fernandes (T. Moncorvo 1545 - 1602)

Na história de Torre de Moncorvo, o dia 15 de Setembro de 1602 deverá ser marcado de forma indelével por ser o dia em que a inquisição fez queimar a primeira de suas munícipes, acusada de judaísmo.
Chamava-se Ana Fernandes, filha de Francisco Fernandes e Beatriz Fernandes, nascida por 1545. Era casada com António Rodrigues Trindade. Pariu 16 filhos, 7 dos quais morreram crianças. Dos 9 que eram vivos à data de sua prisão, fixemos o nome dos mais velhos: Diogo Rodrigues, 30 anos, solteiro; Brás Rodrigues, 20 anos, solteiro; Manuel Rodrigues, 17 anos, solteiro; Maria Rodrigues, 25 anos, casada com Gaspar Nunes Varejão.
António Trindade era recebedor das sisas, que o mesmo é dizer homem abonado de dinheiro. E era lavrador e proprietário de um lagar de azeite, unidade industrial muito rentável naqueles tempos, e ainda hoje. Trazia também arrendada a Quinta da Tarrincha, propriedade de Miguel Ferreira, homem da mais elevada nobreza da terra.
Por 3 ou 4 meses, na época das ceifas e da colheita dos frutos, António Trindade e Ana Fernandes estabeleciam morada na Tarrincha. Ali trabalhavam e moravam alguns operários. E trabalhavam eventualmente homens e mulheres da aldeia dos Estevais, sita no alto da fragada onde a quinta se encaixa.
Naqueles tempos tomar banho era coisa que não estava nos hábitos daquela gente. E causava espanto ver a “patroa”, nas sextas-feiras à tarde depois de um dia de trabalho e calor intenso, meter-se em casa e “lavar-se toda com água e ervas cheirosas”. A limpeza do corpo cheirava a pecado para muito boa gente. 
Os rumores cresceram quando alguém reparou que Ana saía da casa do banho vestindo camisas e toucas lavadas que continuava usando no sábado, dia em que ninguém a via trabalhar e nem mandava que as criadas trabalhassem. De contrário, trabalhava e mandava trabalhar aos domingos. Pelo menos em alguns porque, em outros, até ia ouvir missa na vizinha aldeia de Horta da Vilariça. Mas também isso causava escândalo em alguma gente que a via entrar na igreja com um chapéu na cabeça, que mantinha mesmo ao levantar do Santíssimo Sacramento. Tudo eram coisas de judia! – Dizia-se.
Parte da quinta desenvolve-se pela encosta, íngreme e fragosa, onde apenas medram os zimbros e as piorneiras. Na paisagem sobressaem penedos ciclópicos respeitados como altares pelos povos antigos e albergando duendes Celtas. Alguns deles ganharam nomes estranhos como: fraga da cobra, ninho do corvo, casa do padre, fraga amarela…
Há recantos místicos entre os penedos, recantos onde crescem açucenas lendárias. Pois, alguém espreitou Ana Fernandes em dia de sábado e a viu caminhar pela montanha, subir a um desses penedos, ajoelhar-se e rezar, cara voltada a sul e as costas para a ermida da milagrosa Senhora do Castelo, “fazendo humilhações e reverências, de quando em quando, com o corpo e a cabeça”. Era cerimónia de judia, pois ali não havia santo nem ermida.
Contava-se também que o pastor estranhava que os patrões não aproveitassem o sangue dos cordeiros que matavam e, questionando ele uma filha de Ana, esta respondeu “que era a alma do cordeiro, que não se comia”.
Em junho de 1600, o vigário geral “fez visitação” oficial em Torre de Moncorvo e todos aqueles factos lhe foram denunciados. E nas pousadas do vigário, apareceram dois estranhos denunciantes: a filha Maria Rodrigues e o genro, Gaspar Varejão. Fizeram-se mesmo acompanhar de frei João de S. Francisco, presidente do mosteiro e confessor de Maria. E esta contou, como sua mãe a ensinara a ser judia e como ela se curou de tal cegueira há mais de 7 anos quando se casou com um cristão-velho. Recordou episódios provando que “sua mãe e seus irmãos vivem na fé judaica e a guardam perfeitamente com todas as cerimónias judaicas”. Veja-se um trecho das declarações de Maria Rodrigues:
- Disse mais que sua mãe muitos dias não comia senão à noite e o que comia era feito em uma panela nova e em tigela nova e feito com colher nova, mas não comia carne naqueles dias nem os ditos seus irmãos Diogo e Brás Rodrigues que também aqueles dias diziam que jejuavam com a dita sua mãe, tendo seu pai e mais gente panela feita de carne para cearem…
Também o genro, Gaspar Varejão “cristão-velho e homem nobre” denunciou cerimónias judaicas que presenciara na casa da sogra (camisas lavadas aos sábados, candeeiro aceso dentro de um cântaro em noite de sexta-feira…). Tal como a mulher, Varejão teve o cuidado de inocentar o sogro, dizendo que a comida dele era feita em outra panela e a sogra e os cunhados “se guardavam e acautelavam” para que ele os não visse judaizar.
Em resultado das denúncias feitas na “visitação”, o vigário-geral dr. Gregório Rebelo de Abreu, fez prender Ana Fernandes e os 2 filhos mais velhos: Diogo e Brás, enviando-os para Braga, dali os remetendo a autoridade arcebispal para a inquisição de Coimbra. (1)
Obviamente que, depois de serem presos em Moncorvo, mãe e filhos foram isolados sem que pudessem mais comunicar-se. Compreende-se, pois, a preocupação daquela mãe de ter novas de seus filhos e estes de saber se a mãe, doente como era, estaria morta ou viva.
Na cadeia de Coimbra, juntamente com 2 companheiras, Ana Fernandes foi colocada na “casa do pano” que era onde se recebiam e metiam ao lume as panelas com os géneros a cozinhar de outros prisioneiros.
Aproveitando panos e papelinhos que embrulhavam géneros, Ana escrevia neles um A, semelhante ao que em casa tinha bordado nas peças de roupa, os quais metia depois nas panelas, um pouco ao acaso. Certamente que os seus filhos reconheceriam a marca, se um escrito lhe fosse parar às mãos.
O primeiro sinal de esperança veio com um desses papéis devolvido em uma panela, com “3 risquinhos” acrescentados ao “A”, mensagem que ela não soube interpretar. Na mesma panela terá então metido uma “conta de azeviche” das que os filhos compraram e lhe ofereceram antes de vir presos. Veio a resposta com uma “conta de cheiro” enviada pelo filho mais velho, conforme tinham combinado. Faltava saber do filho mais novo, Brás Rodrigues, que deveria mandar uma conta de pau. A conta não veio mas um sinal de esperança nasceu quando recebeu uma panela onde, na casca de um pedaço de abóbora, vinham escritas umas letras “que lhe pareceram de seu filho mais moço”.
Entretanto, o acaso fez com que se abrisse uma outra janela de contacto através de “escritos” enviados e recebidos na cozinha com um homem natural de Mogadouro e morador em Lamego, parente afastado de Ana, Pero de Matos de seu nome, advogado de profissão. Ele lhe deu novas de seu filho Brás que estava numa cela por cima da dele.
Seria interessante analisar cada uma das mensagens trocadas entre Ana e o filho e entre ela e o advogado mas o espaço limitado do jornal não o permite. Fá-lo-emos em um trabalho mais alargado que estamos preparando. (2) Por agora diga-se que, às muitas perguntas que os inquisidores lhe fizeram sobre as mensagens trocadas, a resposta foi apenas uma: queria saber se os filhos eram vivos ou mortos. Contra todas as evidências e confissões dos filhos, Ana Fernandes manteve-se firme, sempre se dizendo boa cristã.
Impossível resumir aqui o processo e fazer um retrato, mesmo breve, desta mulher enfraquecida de muitos trabalhos e dezena e meia de partos. Veja-se a resposta que deu aos senhores inquisidores quando, ao findar a sessão da genealogia, a mandaram benzer e rezar a doutrina cristã:
- Quanto à doutrina, disse que não estava para a dizer por estar muito fraca mas que em qualquer outro tempo a diria porque a sabia muito bem.
E a resposta que deu quando lhe estranhavam os banhos e as camisas lavadas que vestia:
- Disse que por sua doença vestia todos os dias camisas lavadas porquanto todas as noites suava e que o fazia por respeito de sua saúde.
Deveras interessante para o estudo das lutas políticas e questões sociais da vila de Torre de Moncorvo naquela época é também o processo de Ana Fernandes, o que prometemos tratar em outra ocasião.
Também sobre a evolução do próprio tribunal da inquisição este processo tem notas interessantes. Uma delas refere-se ao Conselho Geral que, pela primeira vez encontramos mencionado em um processo. Com efeito em 23 de Julho de 1602 reuniu para apreciar o processo que lhe foi remetido pelo tribunal de Coimbra e confirmou a sentença proposta: que fosse relaxada e seus bens confiscados. E esta terá sido a primeira pessoa de Torre de Moncorvo queimada nas fogueiras da inquisição.

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Lisboa, pº 2398, de Ana Fernandes; inq. Coimbra, pº 37, de Diogo Rodrigues; pº 8799, de Brás Rodrigues.
2-Como aperitivo, vejam a seguinte explicação de um escrito dada aos inquisidores por Ana Fernandes: - E também lhe mandou dizer que lhe escrevesse com sumo do Felgar somente, que era melhor. No que queria dizer que lhe escrevesse com sumo de cebola, porquanto escrevendo com ele num papel ficava branco sem se enxergar e posto defronte do fogo se lê as letras todas as quais ficam amarelas (…) e no dito escrito não nomeou cebola senão Felgar, por dissimulação, porque junto a Torre de Moncorvo há um lugar donde veem as cebolas e são as melhores.
MEA, Elvira Cunha de Azevedo – A Inquisição de Coimbra no Século XVI…, pp. 446-447, Porto, 1997.
 

NÓS: TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisca Fernandes (T. Moncorvo 15?? - 1576)

Ficara viúva de Bartolomeu Fernandes e tinha uns “40 ou 50 anos”- como a própria disse. Chamavam-lhe a Marzagoa, alcunha herdada do marido, possivelmente natural de Marzagão, termo de Carrazeda de Ansiães. Também lhe chamavam a Francisquinha das Cilhas, acaso porque vendia esses arreios utilizados para apertar as albardas das bestas. Com ela morava o filho Vicente Fernandes, de 25 anos, a filha Isabel, de 20, ambos solteiros e outro ainda pequeno. Havia mais um filho, já casado e morador em Carviçais.
Era o dia 22 de Abril de 1574. De casa de Francisca saíam gritos e impropérios. Acorreram estranhos, entre eles Francisco de Castro, um homem da nobreza da terra que prestou o seguinte testemunho:
- Passando à porta de seu irmão (Gaspar de Lobão), ouviu revolta à porta da mãe de Isabel Fernandes e acudiu com outros e acharam a dita Isabel Fernandes presa na casa, e a tinha presa um irmão que estava na casa com sua mãe. E o dito seu irmão apertava que ela chamasse o nome de Jesus e ela em vez de chamar assim, dizia: arrenego de Jesus; e o irmão deu nela e a dita Isabel disse: se tu és judeu, como me dizes que chame pelo nome de Jesus? (1)
Imagina-se o desespero da mãe e do irmão ouvindo-a gritar semelhantes impropérios, ainda para mais agora, na presença de gente cristã-velha. Com efeito, Isabel estava furiosa, como endemoninhada, e continuava a gritar:
- Os cães mataram ao Justo André Dias e o mataram na Praça! Eu sou judia e vós sois judeus e todos os da nação que há nesta terra são judeus!
A notícia do caso correu a vila, como fogo em rastilho de pólvora. O vigário geral, comissário da inquisição não estava e, por isso, competia ao juiz de fora (2) tomar as providências necessárias. E logo mandou buscar a rapariga e a interrogou. Depois mandou que a metessem na cadeia da comarca.
A crer nos testemunhos do carcereiro e da sua mulher, Isabel continuaria na cadeia a afirmar-se judia e a chamar por Adonay “que nascera primeiro que Jesus”. Dizia que não acreditava no santo sacramento e não queria confessar-se, antes “perguntava quando a haviam de queimar”.
Enquanto isso, o juiz de fora escreveu para a inquisição de Coimbra enviando os autos da prisão e interrogatório de Isabel Fernandes, bem como os depoimentos de várias testemunhas e dizendo nela:
- Vossas mercês ordenem dar ordem como seja levada a essa casa da santa inquisição com brevidade, e se faça o serviço de Deus, antes que outros semelhantes a corrompam, que, segundo ela diz, todos os da sua nação (que são muitos nesta vila) vivem na sua mesma lei. E eu por descargo de minha consciência, lembro a vossas mercês que convém ao serviço de Nosso Senhor dar-se remédio para se devassar nesta vila pela muita presunção que há de todos serem judeus.
Não chegou a prisioneira a sair de Torre de Moncorvo. Dias depois apareceu morta no cárcere, dizendo-se “que lhe deram peçonha”, se bem que o mesmo juiz escrevesse, em nova missiva para Coimbra:
- Não se sabe a causa da sua morte porque o corregedor me informou com muita curiosidade que não se pode saber se tivera alguém nisso culpa.
Enquanto Isabel era presa e interrogada e metida na cadeia, a mãe e os irmãos deixavam Torre de Moncorvo e metiam-se em fuga a caminho de Castela. Estes não conseguiram “dar o salto” pois foram presos em Freixo de Espada à Cinta. Aquela conseguiu alcançar Vilvestre, do lado de lá da fronteira. Ali foi presa pelo alcalde da vila. Porque a prendeu? Por ser judia e ir fugida? Talvez, que a fama de judeu corria mais veloz que o próprio “judeu errante”. Porém, a Marzagoa tinha uma explicação mais prosaica:
- Disse que a prendera o alcaide porque o seu burrico lhe fora à sua cortinha.
Facto é que o interrogatório feito pelo alcalde de Vilvestre tem data de 20 de Maio e a ordem de prisão emitida pelo tribunal da inquisição de Valhadolid só aconteceu em 21 de Junho seguinte. Dias depois era ali entregue a prisioneira.
Foi terrível a estadia em Valhadolid. A ponto de o médico do santo ofício escrever que “tiene gran cosa de sarna y cámaras”. Mas a sarna e as cámaras não impediram que ela fosse posta a tormento, de onde saiu “aleijada dos pés e quase das mãos”. Faziam-lhe perguntas as mais diversas e ela repetia:
- Dijo que no tiene que decir Y que la dejen.
Por conselho do médico, decidiram os inquisidores mandá-la tratar no hospital. Ali esteve uns 5 meses, com resultados muito pouco animadores e os médicos a concluírem que “Francisca Fernandez era mente capta y de poco juicio”.
Levada do hospital para as masmorras da inquisição foi apresentada aos senhores inquisidores em 23.1.1575. Vejam um pouco do que ficou registado na ata da sessão:
- Estando presente muy enferma y flaca mandaran ler las confesiones que hizo en la villa de Vilvestre ante Domingo Pérez alcalde ordinário en la dicha villa y leyendo y perguntando si entendía, unas veces decía que si otras veces decía que no, de manera que no se pudo entender de ella cosa de sustância diciendo que la dejasen, lo cual hablaba com mucha pena y flaqueza (…) e pareció estar desmayada y así los señores inquisidores la mandaran sacar de la sala de audiências en peso…
Certamente que desejavam ver-se livres da pobre mulher mas… também não haveria muita vontade de a receber em Coimbra. E isso explicará que tenham passado mais 5 meses para ao inquisidores de Valhadolid decidirem mandar ao comissário do santo ofício em Zamora que a fizesse levar ao bispo de Miranda para a entregar em Coimbra, onde chegou em 25.6.1575, 14 meses depois da fuga de Torre de Moncorvo.
No mesmo dia o inquisidor Diogo de Sousa tomou conta do processo e as primeiras diligências visaram saber se a ré “era mulher de perfeito juízo e memória”. Para isso começou por ouvir o alcaide dos cárceres que respondeu:
- Ela entrou neste cárcere aleijada dos pés e quase das mãos e que não se move de onde a põem (…) e sai da cama de gatinhas (…) ele testemunha a tem por melanconizada por ser presa e aleijada. E diz que a matem já, para que a querem aqui (…) e não tem conta de sua ração e toma o que lhe dão…
Idêntico foi o testemunho do guarda Francisco declarando:
- Da maneira que entrou neste cárcere está ainda agora; posto que aleijada, ao presente se sai da cama aos tombos, o que não fazia antes. E pela tal enfermidade, parece a ele testemunha que ela é melanconizada e anojada…
Pobre coitada, aleijada de corpo e a alma despedaçada, Francisquinha das Cilhas pedia que a matassem, para que a queriam ali?... Contudo, reunindo a Mesa em 18.8.1576, “pareceu à maior parte dos votos que a ré não estava em termos de ser despachada ao presente, por não assentar na sua confissão e haver dúvidas de seu juízo, que ficasse reservada no cárcere”.
E a estropiada ali ficou a apodrecer nas húmidas masmorras e escuras. Até que, em 3 de novembro de 1576, às 10 horas da noite, entregou a sua alma a Deus. Qual deles: o dos cristãos ou o dos judeus?
Era sábado, quando Francisca faleceu e a inquisição não funcionava e só na segunda-feira seria o feito retomado. Por isso o alcaide foi a casa do inquisidor Diogo de Sousa o qual mandou que o seu cadáver fosse “depositado dentro do cárcere em lugar secreto”. E assim foi enterrada “na casa antiga das diligências, como ele senhor inquisidor mandara”- no dizer do alcaide.
Algum cristão em Torre de Moncorvo terá rezado uma oração por sua alma? E algum judeu aceitará a oração marrana que sua mãe lhe ensinou e ela rezava ao lavar as mãos? Vejam, como consta do processo:
- Bento tu Adonay e Nosso Senhor rei sempre que nos mandou e nos encomendou nossas encomendanças santas e bentas para sobre lavadura de nossas mãos; e rezou nele o quos e os buracos descobertos e sabidos para a sobre lavadura de suas mãos.
NOTAS:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 445, de Francisca Fernandes.
2-Diogo Dias Cardoso se chamava o juiz de fora. Natural de Fronteira, matriculado na universidade de Coimbra em 1554, concluiu a licenciatura em Leis em 29-7-1560 – Arquivo da Universidade de Coimbra. O vigário geral, António Soares, encontrava-se no Felgar. Dias depois escrevia para Coimbra dizendo: - Se eu estivera na terra e dela tivera culpas, ao tal tempo, não se dilatara tanto na cadeia nem sua mãe e irmão fugiriam; no que foi para mim muita desconsolação. (…) E também falam em sua mãe a qual está presa em Castela  e se diz que nas perguntas que lhe lá fizeram descobriu muita terra.

NÓS: TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Pedro Henriques, mercador (n. T. Moncorvo c. 1523)

A imagem que ilustra o texto, provavelmente da autoria do falecido fotógrafo Sr. Peixe, mostra a Praça de Torre de Moncorvo, decorada com vasos de flores “roubados” das varandas da vila em uma noite de S. João, na década de 1960. Era nesta Praça que tinha a sua loja e casa de habitação o mercador Pedro Henriques. Em boa verdade as casas eram de duas irmãs suas, ambas viúvas, já que ele se mantinha solteiro aos 33 anos, quando o referenciamos. Nascido pelo ano de 1523, Pedro era filho de Henrique de Miranda e sua mulher Filipa Dias. Tinha também um irmão chamado António Henriques.

Gaspar de Lobão, um homem da nobreza moncorvense e cristão-velho, falava dele como “homem rico e abastado e de grosso trato (…) conhecido na Torre e nas outras partes por homem de verdade”.

Diogo Pinto, moço da câmara d´el-rei, natural de Mogadouro acrescentava que era homem de muito crédito e que o via “tratar em tratos grossos”, nomeadamente nas feiras de Medina del Campo onde o acompanhou e com ele ficou alojado “por espaço de uns meses” na mesma pousada.

Temos informação que para uma dessas feiras, Pedro Henriques levava na carteira 500 cruzados (200 mil réis!) que lhe confiou António Domingues de Madureira, cavaleiro fidalgo “para os empregar em Medina”. Casualmente soubemos desta operação financeira porque ela se não concretizou, em virtude de “leis pragmáticas” que então foram promulgadas. (1) Mas esta informação é muito importante por nos mostrar um pouco do mundo empresarial de Pedro Henriques. Provavelmente não seria apenas aquele António Domingues a confiar-lhe os seus capitais para lhos fazer render. Outros haveria e isso nos permitirá afirmar que Pedro Henriques era um “gestor de contas” ou de “aplicações financeiras”, como hoje usa dizer-se.

O mesmo se conclui do testemunho de Francisco Garcia “escudeiro fidalgo, morador no lugar de Almofala”, na Beira, que tinha um filho a viver em Freixo de Espada à Cinta e lhe disse que “quando der certo dinheiro para tratar a alguma pessoa, que não o desse senão ao dito Pero Henriques, que era homem de muita verdade”. Como se vê a fama de Pedro Henriques como honesto executor de investimentos financeiros, não se limitava à sua terra mas ia bem longe e entre a classe da nobreza e cristã-velha.

Por outro lado, temos o depoimento de muitas pessoas dizendo que ele emprestava dinheiro. Outros, inclusivamente dizem que lhe são devedores. Foi o caso de um criado da infanta D. Isabel que apareceu a testemunhar que o viu a “emprestar dinheiro a homens da terra e que a ele testemunha também emprestou 4 mil e tantos réis”.

Não seriam empréstimos desinteressados, naturalmente, antes renderiam juros e isso prova também que Pedro Henriques desenvolvia atividades bancárias. Aliás, sempre foi atividade peculiar dos judeus emprestar dinheiro a juros, até porque a igreja católica condenava a usura.

Isto não pode fazer-nos esquecer que a atividade principal do nosso biografado era a de mercador. E encontramo-lo a mercadejar no Algarve e pelo Alentejo, a comprar mercadorias em Lisboa e mandá-las para Torre de Moncorvo.

E também o encontramos na capital do reino a arrematar a renda da comenda de Rio Torto e Longroiva, devendo então acrescentar-se-lhe o título de rendeiro.

Situemo-nos agora em Torre de Moncorvo, em finais de Março de 1556, quando a inquisição ali fez a sua primeira entrada, levando presas para Lisboa 3 pessoas acusadas de judaísmo. (2)

 

Nesse dia já Pedro Henriques não estaria em Moncorvo, pois se abalara para o Alentejo e Algarve, antes do entrudo, chegando a Lisboa no dia anterior à Páscoa. Isto foi o que ele contou e algumas testemunhas confirmaram, quando se viu preso também ele, em finais de Maio daquele ano.

A história contada pelo promotor do mesmo tribunal, com base nos depoimentos de outras testemunhas, é um pouco diferente. Assim, Pedro Henriques estaria em Torre de Moncorvo quando prenderam aquelas 3 pessoas. E sendo homem de muitos conhecimentos e grande expediente, meteu-se a caminho de Lisboa com o objetivo de saber quem denunciou aqueles concidadãos e “tirá-los da cadeia” ou, pelo menos, ajudá-los a safar-se.

Viria a descobrir que um dos denunciantes foi Francisco Rodrigues Trindade, enteado de Isabel Lopes, estalajadeira, que antes fora casada com um primo dele, Pedro Henriques. E sabendo que Francisco estava em Évora, foi atrás dele e encontrando-o, tudo fez para que lhe contasse que coisas dissera na inquisição e que pessoas denunciara. Inútil.

Francisco voltou a Lisboa onde tinha a mulher e um filho e Pedro também. Soube que aquele ganhava uma miséria e “andava aqui perdido a morrer de fome”, trabalhando de escriturário eventual com escrivães da alfândega quando o serviço ali apertava.

E foi o próprio Trindade que lhe falou de um tio rico que tinha em Cabo Verde e lhe escreveu a mandá-lo ir, que ali se ganhava muito dinheiro. Confessou que gostava bem de ir mas não tinha dinheiro para comprar roupa e comida e pagar a viagem.

Isso não era problema. Pedro Henriques ficaria contente de poder ajudar um conterrâneo em dificuldades. Para além disso tinha um grande amigo ali em Lisboa chamado Duarte de Leão que conhecia como poucos as ilhas de Cabo Verde e os rios da Guiné de onde transitou para ocupar o cargo de fator d´el-rei na Casa da Guiné, por ele passando muito do negócio dos escravos daquela região. (3) Ele escreveria cartas de recomendação para Francisco Trindade levar. Certamente conhecia o seu tio.

Estando já metido no barco para seguir viagem rumo a Cabo Verde, com bagagem que custou 2 mil réis adiantados por Pedro Henriques, Francisco viu-se impedido de seguir por ordem do juiz que ali apareceu no seguimento de uma queixa apresentada pela sua mulher, que antes tinha já contactado o tribunal da inquisição, parece que, de combinação com o marido.

Posto em terra, Francisco e a mulher dirigiram-se ao tribunal da inquisição contando que Pedro Henriques veio de Torre de Moncorvo com o objetivo de soltar os presos de que atrás se falou. Para isso valeu-se da pobreza do Trindade e, com promessas de riqueza e ameaças de morte, o obrigou a embarcar, ficando assim impedido de ser ouvido em declarações nos processos dos mesmos prisioneiros. Acusado de ser fautor de hereges, o mercador foi preso pela inquisição de Lisboa. (4)

Obviamente que ele contou uma história diferente, dizendo que o Trindade é que lhe pediu e lhe mostrou a “carta de chamada” do tio e que ele, como “homem de verdade”, apenas quis ajudá-lo, usando da caridade cristã e que não tinha qualquer interesse na libertação dos ditos presos pois nenhum deles era de sua família. De contrário, Francisco é que queria fugir pois tinha medo que na inquisição se descobrisse que ele mentira e fizera denúncias falsas.

Acabou condenado como “leve suspeito na fé”, com a sentença lida na missa de domingo, 19 de Julho de 1556, na igreja do Hospital de Todos os Santos, em cárcere a arbítrio dos inquisidores. O seu processo é extremamente interessante. Por um lado, assemelha-se a um verdadeiro romance policial. Por outro revela uma invulgar argúcia e capacidade de raciocínio tanto da parte de P. Henriques como de F. Trindade, bem como uma sólida argumentação tanto da parte do promotor de justiça como do advogado de defesa.

Regressado a Moncorvo, Pedro Henriques terá casado, abalando depois “com sua mulher e casa para Florença” para professar abertamente o judaísmo, segundo informação dada pelo Dr. André Nunes, em 1583.

 

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:

1-ANTT, inq. Lisboa, pº 6771, tif. 32: - Não os podendo ele réu empregar por razão das pragmáticas, ele réu pôs em depósito 300 cruzados desses 500 e com eles soltou um português que estava preso em Valhadolid. – Curiosa esta aplicação financeira!

2-IDEM, pº 3123, de Isabel Lopes.

3-Francisco Jorge, um irmão de Duarte de Leão era então o superintendente da feitoria de Buguendo, na margem do rio de S. Domingos, na atual Guiné-Bissau onde a sua atividade consistia em comprar escravos aos chefes tribais africanos, vendendo-lhes cavalos, roupas armas e bigigangas. Ocupando o lugar de escrivão d´el-rei em Cabo Verde, visando o controlo da venda de escravos e pagamento do respetivo imposto estava então um sobrinho de ambos, chamado Luís de Carvajal, que viria mais tarde a celebrizar-se como o Conquistador do Nono Reino de Leão, no México. Ver: ANDRADE e GUIMARÃES, Marranos de Trás-os-Montes na rota do comércio de escravos da Guiné para as Américas, in: jornal Terra Quente, de 01.07.2012.

4-ANTT, inq. Lisboa, pº 6771, de Pedro Henriques.

NÓS: TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Vasco Pires, tesoureiro da Misericórdia (n. T. Moncorvo c. 1513)

No dia 9 de Maio de 1554, em Lisboa, perante o inquisidor Pedro Álvares Paredes apresentou-se o padre Bastião de Sousa, cristão-novo, de Mirandela e disse que em 15 de agosto do ano anterior, estando em casa de João Rodrigues, seu irmão, em Torre de Moncorvo, ali chegaram o reitor e irmãos da Misericórdia a fazer um peditório. Para além do padre e dos donos da casa, estava a madrasta de sua cunhada, segunda mulher de Vasco Pires, chamada Francisca Fernandes. E indo-se os do peditório, Francisca começou a murmurar, dizendo que “por clérigos e frades se havia de perder o mundo”. Repreendida pelo padre Bastião, acrescentaria outros ditos menos ortodoxos em relação à doutrina cristã, com o padre a ameaçar que era sua obrigação denunciá-la na inquisição.

Óbvio que João Rodrigues não gostou da conversa e menos das ameaças do irmão padre, a quem repreendeu, dizendo-lhe que assim “os cristãos-novos o aborreciam e fugiam dele e lhe queriam mal”. Respondeu que “por isso se fizera sacerdote e se apartara de seu pai e deixara sua fazenda e se apartaria também dele”.

Bastião cumpriu a ameaça metendo-se a caminho de Lisboa onde denunciou Francisca, que foi presa e levada para a inquisição de Lisboa onde foi seria entregue em 20 de Abril de 1556 e logo viria a falecer, possivelmente de parto, tendo sobrevivido o menino. (1)

Gabriel Pires era outro dos enteados de Francisca, também filho de Vasco Pires e da sua primeira mulher. Em Julho daquele ano de 1556, contando uns 20 anos, encontrava-se preso na cadeia de T. Moncorvo, por ordem do juiz ordinário. Na cadeia teve 3 companheiros bem esquisitos, que vamos apresentar:

Diogo Maçulo que fora cura da igreja de Vila Flor e se tornara fiel servidor do comissário local da inquisição, vigário geral da Torre de Moncorvo, Aleixo Falcão.

Amador Rodrigues, que fora pároco na freguesia de Bruçó. 

António Rodrigues que foi preso por rezar missa e se fazer passar por padre, sendo homem casado e leigo.

Naturalmente revoltado por se ver preso, Gabriel foi deixando escapar frases e informações muito comprometedoras, que aqueles transmitiram ao vigário geral que logo se meteu a organizar um processo, registando as seguintes culpas de judaísmo:

- Disse que quando dali saísse havia de ser pior do que Judas.

- Que quando prenderam a sua madrasta, o seu pai com 200 cruzados podia ter arranjado quem saltasse ao caminho e fazê-la soltar.

- Que ele era casado com duas mulheres: uma em Ceuta e outra em Torre de Moncorvo.

Não vamos seguir os passos de Gabriel para a inquisição e sua estadia nas masmorras de Lisboa. Diremos que conseguiu defender-se muito bem e saiu absolvido em 2.10.1557. (2)

Imaginamos Vasco Pires com a vida suspensa, receoso de ser também preso, como a mulher e o filho. E imaginamos também como alguns de seus inimigos ansiariam de o ver encarcerado, especialmente aqueles que lhe eram devedores. Terá sido o caso de um tal Gonçalo Anes Carrazedo e seu filho João Afonso, cristão-velho, natural de Cabeça Boa e morador no Seixo de Ansiães?

Facto é que, em 16.11.1558, estando o vigário geral de Torre de Moncorvo, Pedro Fernandes Lima, em visitação na vila de Ansiães, na românica igreja de S. João, ali se apresentou João Afonso e prestou o depoimento seguinte:

- Haverá 12 anos, ao tempo que os cristãos-novos andavam alevantados para se irem do reino, com medo da inquisição, estando ele pisando linho canimo à Foz do Sabor, que era do pai dele testemunha, que o dava (em pagamento de dívidas) a Vasco Pires (…) e estando assim pisando o dito linho, dissera o dito Vasco Pires a ele testemunha: -“Coitados de vós outros que andais cegos e credes que Nª Senhora ficou virgem depois do parto; como podia parir uma mulher sem dormir com homem?”

E esta denúncia bastaria para o comissário da inquisição, vigário geral de T. Moncorvo dar início ao processo inquisitorial contra Vasco Pires que, em 8.3.1560, “às portas da cadeia da dita vila” fez uma escritura nomeando seu procurador ao licenciado Francisco Fernandes para o representar na audição das testemunhas de acusação, como era de norma até então. Contudo, autuada aquela procuração, os inquisidores haveriam de escrever, na margem da folha do processo: (3)

- Bem escusado porque não houvera de ver jurar as testemunhas.

Significa isto uma mudança nos estilos da inquisição, mudança que seria implementada gradualmente, passando as testemunhas a ser “fechadas e calados os nomes”, nos termos do regimento de 1552.

Não seria difícil a Vasco Pires adivinhar quem o denunciou. E sendo chamado a Lisboa para confirmar o seu testemunho, logo na primeira audiência, se retratou, confessando:

- O que disse na dita denunciação era falso e mentira e o revoga, porque nenhuma das coisas sobreditas nem outra coisa assim ouviu dizer (…) seu pai Gonçalo Anes, lavrador, já defunto (…) disse a ele que fosse dizer do sobredito o que dele disse em seu testemunho, por estar mal com ele, por causa de certo dinheiro que dizia o dito Vasco Pires que seu pai lhe havia de dar em linho ou o mesmo dinheiro… (4)

Começava a esvaziar-se o processo instaurado a Vasco Pires, já que os outros “crimes” que lhe imputavam eram menos graves e deficientemente sustentados. E mais uma vez fica a ideia de que o vigário geral nomeado pelo arcebispo / inquisidor Baltasar Limpo era mais justiceiro do que “pastor da igreja”. Aconteceu que neste intervalo, a Mitra de Braga mudou para a cabeça de D. Frei Bartolomeu dos Mártires que logo nomeou para vigário geral de T. Moncorvo o licenciado Sebastião Veloso. (5)

Embora a principal testemunha se revogasse, o processo continuou e… Vasco Pires acabou por confessar que durante 15 ou 16 anos andara errado na fé, seguindo a lei de Moisés e rezava orações judaicas como fossem:

Ao levantar - Bento tu Adonay que criaste o homem com sua sabedoria…

Ao deitar – Louvem o poder de Adonay que muitas são as suas piedades…

E aqui é importante dizer-se que Vasco Pires foi o primeiro dos cristãos-novos Moncorvenses presos da inquisição a confessar o seu judaísmo. Para além disso, o seu processo tem particular interesse para o estudo da vida quotidiana de Torre de Moncorvo, lutas políticas e questões sociais.

Nota interessante do processo são uns escritos que foram apanhados pelo alcaide dos cárceres na cesta da merenda que lhe era enviada do exterior e que iam metidos dentro da barriga de um peixe cuja cabeça fora cortada e ia crua.

A completar a sua biografia, diremos que ele foi rendeiro da almotaçaria e era homem de tal consideração entre a comunidade cristã de Torre de Moncorvo que o nomearam tesoureiro do dinheiro recolhido para a construção da igreja da Misericórdia.

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:

1-ANTT, inq. Lisboa, pº 12 663, de Francisca Fernandes.

2-IDEM, pº 15414, de Gabriel Pires.

3-IDEM, pº 5118, de Vasco Pires.

4-No seguimento daquela revogação, João Afonso ficou preso na inquisição de Lisboa, acusado de “ perturbação e prejuízo e impedimento do santo ofício”. Era um homem verdadeiramente simples e ingénuo, como os próprios inquisidores reconheceram. Mas isso não impediu que ele fosse condenado a 7 anos de degredo nas galés, sendo sentenciado no auto de fé de 16.3.1561, no qual compareceu “descalço, sem barrete e a cabeça descoberta e uma corda de esparto cingida, disciplinando-se publicamente”. – ANTT, inq. Lisboa, pº 12 631, de João Afonso.

5- Meses depois, em 12.2.1562, estando no Concílio de Trento, o arcebispo escrevia ao vigário de Moncorvo dizendo nomeadamente: - Cuida de pôr à frente das paróquias sacerdotes idóneos, porque toda a substância do nosso ofício está em pôr bons médicos nos hospitais de Deus, que são as paróquias (…) Nisto queria que empregasse todo o ímpeto do seu zelo sem frouxo algum, pois o principal mal destes tristes tempos, e foi raiz das outras calamidades, é que as ovelhas de Cristo não têm pastores, senão comedores, como que Cristo não ordenara suas ovelhas senão para fartar os pastores, e não para serem pastadas por eles. Neste negócio, arranque da sua espada e corte por todos os mercenários ou lobos. Cit. ROLO, Fr. Raul de Almeida – Dom Frei bartolomeu dos Mártires por Terras de Moncorvo, in: Brigantia, vol. 1, nº 3, 1981.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Luís Vaz, recebedor das sisas (n. Mirandela c. 1507)

Se houver de atribuir-se a algum cristão-novo de Torre de Moncorvo o título de patriarca, ele cairá muito bem a Luís Vaz. Com efeito, nele entroncam as mais poderosas famílias marranas da terra. (1)
Porém, o local de seu nascimento terá sido Mirandela e irmãos seus foram casar em Vila Flor e Vila Nova de Fozcôa, engrandecendo também aquelas comunidades. Álvaro Vaz e Esperança Pires, foram os seus pais e pertenceram à geração dos “batizados em pé”.
Se bem que ele diga que “sempre viveu na Torre”, a verdade é que a sua ligação a Mirandela é constante. E foi ali também que ele casou, com Branca Pires, ou Dias, filha de Branca Ribeira. O casal fixou morada em T. Moncorvo e a sogra, depois que enviuvou, foi morar com a filha e o genro. Seria mulher de relevo, do ponto de vista social, e era servida por uma escrava, mulata, Paula de seu nome.
Luís terá começado a sua vida profissional como mercador, um mercador de sucesso e cobrador de rendas, a ponto de ser nomeado “recebedor das sisas” do concelho. Os seus investimentos, no entanto, dirigiam-se para as propriedades rústicas, tornando-se “empresário agrícola”, para utilizarmos a linguagem moderna. Isto porque, ao contrário dos lavradores que então produziam para consumo próprio e mercado local, ele dedicou-se sobretudo ao cultivo de linho cânhamo e sua transformação em panos e cordas, (2) para o que tinha criados e criadas, cristãos-velhos, geralmente.
Em Dezembro de 1551, faleceu em Mirandela um cristão-novo chamado André António, pessoa de relevo social, a cuja família ficaria ligado um dos mais famosos médicos portugueses (3) e muito bem relacionado com na Casa dos Távora. E comentando o falecimento de André António, Luís Vaz terá dito que tudo acabava ali, que “não havia mais do que nascer e morrer”. Isto seria ouvido por um Pedro Ferraz, cristão-velho de Mirandela, casado em Torre de Moncorvo, no seio da enobrecida família Lobão. Pedro terá comentado o caso com outras pessoas, nomeadamente com o Dr. Luís de Azevedo e com o padre Baltasar Gonçalves, concluindo que, ao dizer tal coisa, Luís Vaz negava a existência da alma, do paraíso e do inferno. (4)
Por aqueles tempos construiu-se a igreja da Misericórdia de Torre de Moncorvo e parece que a esmola de Luís Vaz foi bem avultada. E já então o lugar de provedor da Misericórdia ganharia importância política. E em determinada altura apareceram dois concorrentes de peso e posicionados em campos bem diferentes. Um deles era cristão-velho, de nobre linhagem e com formação universitária – o Dr. Luís Azevedo. O outro era cristão-novo, advogado de sucesso – o Dr. André Nunes. Luís Vaz, sendo parente do Dr. André Nunes, terá sido um dos seus esforçados apoiantes.
Não sabemos qual deles ganhou as “eleições” e a vara de Provedor. Sabemos é que, entretanto, ao vigário geral Aleixo Dias Falcão terão chegado denúncias de judaísmo contra Luís Vaz e ele se meteu a organizar um processo judicial que depois remeteu para a inquisição de Lisboa onde também Luís Vaz acabou por ser entregue e ficar preso, em 10.4.1557. (5)
Já vimos a acusação de “saduceu” sustentada nos testemunhos de Pedro Ferraz, Luís Azevedo, e Baltasar Gonçalves, estes dois dizendo que ouviram dizer ao outro. Não foi difícil ao procurador do réu desmontar a acusação, mostrando inimizades entre os acusadores e o réu e explicando que tais palavras são perfeitamente compreensíveis em tal momento, como significando que a morte é certa para todos nós.
Outra acusação saiu da boca do meirinho Francisco Rodrigues dizendo que “o réu vai muito mal à igreja e estando a missa a levantar a Deus, ele se deixa ficar fora sem entrar na igreja…”
Também a suspeição e a prova de inimizade entre eles desvalorizou este testemunho. Com efeito, Luís Vaz provou que andaram em tribunal por causa de uma injúria. A injúria terá consistido em Luís Vaz apresentar uma queixa perante o Corregedor da comarca contra um anterior meirinho que era Barnabé Cordeiro, cunhado de Francisco Rodrigues, o qual foi demitido do cargo e desde então os três nunca mais se falaram.
Um terceiro “crime” foi testemunhado por Gaspar Vaz, solteiro, pedreiro, dizendo que em casa de sua mãe entrava muitas vezes uma mulata chamada Paula escrava de Branca Ribeira, sua vizinha e que lhe contou que em casa de Luís Vaz “se guardava o sábado de sexta-feira à tarde sem fazer nenhum serviço e se vestiam camisas lavadas e se guardavam os sábados como guardamos os domingos, não consentindo que criados e criadas da casa fizessem nada em tais dias e que tão judeus eram agora como no tempo que crucificaram a Jesus Cristo”.
Também esta acusação caiu por terra por que, “Gaspar Vaz, testemunha da justiça, diz ouvir dizer a Paula cativa da sogra do réu (…) e que a tudo a dita Paula, em seu testemunho diz que não ouviu nem viu”. Acresce que Gaspar foi acusado de ter roubado uma manta a um irmão de Luís Vaz e foi por isso “infamado de ladrão e por justiça degredado”.
Como era de norma, mandaram os inquisidores de Lisboa ouvir de novo as testemunhas para ratificar seus depoimentos. E nesse tempo ainda as testemunhas eram “abertas”, ou seja: aos réus ou seus procuradores era dado conhecimento das acusações e dos acusadores. O procurador indicado por Luís Vaz para, em Torre de Moncorvo, acompanhar a audição das testemunhas foi seu genro, o licenciado Francisco Fernandes.
Obviamente que o procurador e os familiares e amigos do réu, se esforçariam por convencer as testemunhas a mudar seus depoimentos. E isso mesmo foi utilizado pelo promotor de justiça contra o réu, alegando que houvera “negócio e suborno que teve com as testemunhas da justiça, como também tiveram naturalmente na terra seu genro e parentes” para se desdizerem. Assim não entenderam os inquisidores que, pura e simplesmente, deliberaram que o réu fosse solto e mandado em paz. Porém, como não sabia praticamente nada da doutrina cristã foi mandado uns dias para o Colégio a fim de ser devidamente instruído.
O processo de Luís Vaz tem particular interesse pelo notícias que nos dá acerca do quotidiano da vida económica, social e política de Torre de Moncorvo, uma terra que ele, como arrecadador das sisas sabia ter uns 1 500 vizinhos. Por ele sabemos, nomeadamente, que a igreja da Misericórdia já estava construída. E o mesmo em Mirandela, já que uma das testemunha de defesa por ele indicadas é exatamente “o cura da igreja da Misericórdia nova de Mirandela”.

NOTAS e BIBLIOGARFIA:
1-Pelo casamento da filha Maria Vaz, teve origem a família dos Isidros. O filho Francisco Vaz Frade ligou-se às famílias Henriques e na sua descendência a ligação estendeu-se aos Alvim, aos Pena, aos Mesquita, aos Cardoso… Ver: ANDRADE e GUIMARÃES – Os Isidros, a epopeia de uma família de cristãos-novos de Torre de Moncorvo, ed. Lema d´Origem, Porto, 2012. 
2-A cultura intensiva do linho cânhamo no Vale da Vilariça levou mesmo a câmara de Moncorvo a queixar-se perante o rei D. Afonso V dizendo que “os homens lavram ali muitos linhos alcanaves além do razoado, em tal guisa que por azo do dito linho lavrarem tanto, vêm a adoecer e morrem ante tempo (…) e deixam morrer as vinhas e deixam de lavrar o pão e a terra vai-se a monte”. – ANTT, Além Douro, lv. 4º, f. 222. Cit. ALVES, Francisco Manuel, Moncorvo Subsídios para a sua História ou notas extrahidas de documentos inéditos, respeitantes a esta importante villa transmontana, in: Ilustração transmontana, Porto, 1908.

3-Francisco da Fonseca Henriques, mais conhecido por Dr. Mirandela. Ver: ANDRADE e GUIMARÃES – O Dr. Francisco da Fonseca Henriques e a sua Família na Inquisição de Coimbra, separata da revista Brigantia, vol. XXVI, pp 189-225, Bragança, 2006.
4-Aquela afirmação de Luís Vaz insere-se na corrente do chamado “judaísmo saduceu” e da filosofia epicurista, com base na qual foi processado pela inquisição de Évora o serralheiro Manuel Galindo, um dos primeiros 4 condenados à morte por aquele tribunal e que estarão representados no coroamento da fachada da igreja de Nª Sª da Graça daquela cidade. COELHO, António Borges – Inquisição de Évora 1533 – 15668, p. 239, ed. Caminho, Lisboa 2002; ESPANCA, Túlio – Curiosidades de Évora, in: A Cidade de Évora, Boletim da Comissão Municipal de Turismo, Ano XXI, 1964, pp. 429 – 162.
5-ANTT, inq. Lisboa, pº 12 301, de Luís vaz.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - António Fernandes, o cortesão (n. T. Moncorvo c. 1505)

Terá nascido em Almendra, terra de Ribacôa, sendo batizado em S. Martinho, concelho medievo de Penas Roias. O crisma tê-lo-á recebido em Bragança, assentando morada em Torre de Moncorvo, onde exercia a profissão de sapateiro e onde casou com Maria Fernandes, a maravilha, de alcunha, pelo ano de 1530.
De seus familiares, sabemos que os pais foram batizados em pé e tomariam então os nomes cristãos de Fernão Chaves e Branca Nunes. E sabemos que tinha uma irmã chamada Catarina Fernandes, casada em Mirandela e outra nomeada Francisca Nunes, casada em Vila Nova de Fozcôa.
Em 1535 foi metido na cadeia da comarca de Torre de Moncorvo, num processo algo estranho, possivelmente a mando do vigário geral da comarca, concertado com o juiz de fora, acusado de ser “mau cristão” pois que, na missa de domingo, se ia colocar “ao canto do altar de Santa catarina”, em local de onde não podia ver o sacerdote, com “tenção danada e diabólica” para não ver “alevantar a Deus”. Naquela prisão estaria uns 17 meses, sendo depois mandado para a cadeia da inquisição de Évora, com mais uma acusação: enquanto esteve preso, ninguém o viu rezar. Em Évora estaria preso uns 3 ou 4 meses, saindo por efeito do perdão geral concedido aquando da fundação do próprio santo ofício. (1)
Por mais de 20 anos viveu descansado em Torre de Moncorvo, trabalhando de sapateiro e vendo crescer 2 filhos e 3 filhas. A 20 de junho de 1558, Pero Fernandes Lima, pouco antes nomeado vigário geral da comarca pelo arcebispo Baltasar Limpo, mandou publicar um édito da fé chamando os fiéis cristãos a denunciar formalmente os “crimes” de que tinham conhecimento.
E assim apareceu uma testemunha dizendo que, 10 anos antes, em uma quinta-feira de Endoenças, entrando em casa do Cortesão, viu que tinham sobre a mesa uma galinha cozida, que logo escondeu. Acrescentou que em outra ocasião lhe ouviu dizer que “não podia crer que Nossa Senhora ficara virgem parindo”.
Outra testemunha apareceu a dizer que o vira em dias de domingo albardar a besta e sair a negociar pelas aldeias, ao passo que nos dias de sábado trabalhava menos que nos outros dias. E também disse que lhe ouviu chamar cães aos cristãos velhos, que eram descendentes dos Cananeus e que nisso apenas seguia Cristo que chamara cadela à Cananeia.
No livro das denunciações do vigário estava já registada, com data de 22.12.1552, a denúncia de uma testemunha “de idade de 15 anos, jurada e ratificada”, nos seguintes termos:
- Disse que indo a casa do réu o dia de Nª Senhora que caíra ao domingo e chamando à porta cerrada, a empuxara e entrara dentro e vira ter na mão a Isabel, filha mais velha do réu (…) uma roca na mão e lhe vira enrolar o fio no fuso e a maçaroca estava presa à manta e almofada, como que acabava de fiar quando ela testemunha entrara (…) a testemunha tem para si que ela acabara de fiar e por mor da testemunha tirara a roca dali.
Finalmente, António Fernandes era acusado de ter feito um comentário suspeito acerca de um menino filho de um cristão velho e de uma cristã-nova, dizendo: “o demo que te eu dou feito em pecado mortal”. E sendo repreendido, explicou que dissera aquilo “porque é como misturar vinho branco com vermelho”.
Os autos com estas denúncias constavam de 6 folhas de papel que o vigário Lima entregou a João Gonçalves Cordeiro, morador no Felgar, para levar à inquisição de Lisboa onde o Cortesão deu entrada em 15 de março de 1560. (2)
Vista a acusação e antes de passarmos à defesa, importa dizer que este processo é muito diferente dos que temos vindo a estudar, de datas anteriores, no que respeita aos estilos inquisitoriais. Com efeito, se antes as testemunhas eram apresentadas aos réus, agora os nomes das testemunhas são “calados” e os interrogatórios são feitos de um modo muito metódico.
Sobre a defesa apresentada pelo Cortesão, diremos que ela se concentrou em provar que por detrás de todos os testemunhos se encontrava o vigário geral, Pero Fernandes Lima e que todos eram seus inimigos declarados.
As razões da inimizade declarada entre o sapateiro e o vigário prendiam-se com a vida dissoluta do vigário que andava metido de amores com a mulher de um seu criado. E a sogra do criado, a “calva” de alcunha, é que “abria a janela” para o vigário entrar. E como a mulher do réu e a calva andaram em ralhos… tudo foi publicamente posto na rua, com o criado do vigário a ser tratado por “cornudo e alcoviteiro”.
António Fernandes explicou ao inquisidor Ambrósio Campelo que durante os dias que o teve preso em Torre de Moncorvo, o vigário andou “buscando e rogando” testemunhas falsas contra ele. E apontou, um a um, todas essas testemunhas, provando que por alguma razão eram também seus inimigos. Um deles seria o porteiro do vigário a quem o réu tinha apanhado em certa ocasião “com um couro furtado em um pelame de Fernão Rois”. Outro seria Gonçalo do Rego que o réu apanhou em relações ilícitas com uma sobrinha e a quem processou por uma dívida de 1000 réis de calçado.
Facto é que os inquisidores concluíram pelo “defecto da prova das ditas culpas vistas juntamente com a contrariedade do réu”. E as acusações contra a vida escandalosa do vigário geral da comarca não terão caído em saco roto, com o inquisidor Campelo a escrever no próprio processo de António Fernandes:
- E também se tomará informação ex ofício sobre o conteúdo nos artigos com que vem ao doutor Pero Fernandes Lima, vigário que foi da Torre de Moncorvo.
E a verdade é que, ainda o cortesão não tinha cumprido os 7 meses de sua prisão e já o licenciado Sebastião Veloso ocupava a cadeira de vigário geral da comarca de torre de Moncorvo, que Pero Lima mal chegou a aquecer. Terá sido determinante a informação prestada pelo Cortesão? Ou a mudança ficou a dever-se à nomeação de Frei Bartolomeu dos Mártires para arcebispo de Braga?
Voltemos atrás, aos interrogatórios conduzidos pelo inquisidor Campelo e que começaram com o réu a dizer que era muito bom cristão. Porém… apenas soube dizer o Pai-Nosso e “na Ave-Maria acrescentou algumas palavras; não sabia o credo, nem a salve-Rainha, nem outras orações; disse que os pecados mortais eram 10 e o primeiro era amar a Deus sobre todas as coisas”. Imagine-se a cara do inquisidor!
E também a cena passada em outra audiência com o réu a jurar que ao domingo nunca faltava à missa. E o inquisidor ripando de um papel que o vigário Lima tinha enviado com o réu e lendo:
- Hoje 10 de julho de 1559. Mando ao cura da vila da Torre que assiste na igreja e ofícios divinos a António Fernandes, cortesão, pagasse 6 réis a que foi condenado, pagasse ao meirinho, por deixar esta igreja onde está obrigado aos domingos e festas, e se ir pelas aldeias a contratar e assim pagar mais 10 réis a ele meirinho, das custas que se fizeram à sua ausência.
Razão tinha o novo arcebispo de Braga ao chamar a atenção para a ignorância religiosa dos cristãos e tomar a iniciativa de escrever o primeiro catecismo que a igreja católica conheceu. Exemplar, a este respeito o processo do Cortesão que terminou com a sentença a ser lida em mesa a 19.11.1560, registando “o defecto da prova das ditas culpas vistas juntamente com a contrariedade do réu” e decretando que António Fernandes fosse solto. Porém, constatando a sua ignorância da doutrina cristã, os inquisidores ordenaram que ficasse retido nas Escolas Gerais até ser bem instruído (…) e “ com isto satisfeito, seja solto e se vá em paz”.

NOTAS:
1-ANTT, inq. Évora, pº 7804, de António Fernandes. Em 19.4.1560, diria na inquisição de Lisboa: - Haverá mais de 25 anos o prendeu na vila de Torre de Moncorvo um juiz de fora que o mandou preso à santa inquisição à cidade de Évora onde esteve preso 3 ou 4 meses (…) e saiu livre por sentença sem pena alguma, a qual sentença tem em sua casa.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 9554, de António Fernandes.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS Gonçalo Marcos, juiz em Vila Flor (n. T. Moncorvo c. 1503)

Os anos de 1556 – 1559 foram de sobressalto para os cristãos novos de Vila Flor, com mais de dezena e meia de prisões pela inquisição. Muitos processos, especialmente os primeiros, foram abertos pelo vigário geral da comarca, Aleixo Dias Falcão. Quase todos os presos se queixaram dele, considerando-o parcial e inimigo. Também as denúncias e as testemunhas são as mesmas nos diferentes processos. Quase todos os prisioneiros acabaram absolvidos ou condenados em penas ligeiras. E em vários acórdãos os inquisidores consideram deficiente a prova da justiça.
Acusados de crimes da fé, os marranos defendem-se dizendo tratar-se de uma questão de “política local” e inveja pelos cargos municipais que ocupavam, incluindo o de juiz. O quadro foi assim expresso por uma das mulheres aprisionadas:
- Os cristãos-novos andavam sempre em eleições e requerimentos da dita vila e algumas pessoas disso se escandalizavam, tanto que com inveja difamaram deles. (1)
Este episódio de resiliência dos cristãos novos de Vila Flor à “máquina” da inquisição merece particular realce. E não seria por acaso que, em 1561, no seguimento desta “luta”, o rei D. Sebastião tenha assinado um alvará proibindo os cristãos-novos de Vila Flor de servirem em cargos públicos (2) - lei que, anos depois, seria extensiva a todo o país.
E se entre os cristãos novos de Vila Flor, podemos apontar um líder, certamente seria Gonçalo Marcos, que nasceu por 1503, em Torre de Moncorvo. Era filho de Luís Marcos, um judeu batizado em pé, e que “deixou em seu testamento dois almudes de azeite para a lâmpada que está em uma igreja da Torre” (3) e de Beatriz Álvares “que era fidalga que veio do reino de Castela”. (4)
Casou com Beatriz Fernandes, (5) de uma conhecida família de cristãos-novos de Vila Flor, onde fixou residência. Entretanto, um dos irmãos de Gonçalo, João Marcos de seu nome, abalou para a cidade de Fez, no Norte de África, fazendo-se judeu e adotando o nome de Jacob Marcos.
Mercador de sucesso, Gonçalo adquiriu propriedades e tornou-se lavrador. Homem de cabedais, ascendeu à classe dos rendeiros. Em 1545 foi eleito juiz, o que bem mostra o crédito de que gozava na terra. No decurso do mandato de juiz sucederam dois casos que iriam influenciar o curso da sua vida.
Um deles aconteceu em volta das eleições da direção da Misericórdia, protagonizadas por André Pires, Gonçalo Gonçalves e Fernão de Almendra. Este seria eleito provedor. Só que… muita gente contestou a legalidade do ato, com o juiz Marcos à frente, conseguindo que a eleição fosse nula e o “provedor” metido na prisão.
Cumpre dizer que Fernão de Almendra era um dos homens de maior fidalguia da terra e tinha uma irmã casada com Gonçalo de Seixas, homem de igual nobreza que o juiz também “prendeu e condenou em mil réis”.
Estas desavenças deixariam mágoas profundas e tratando-se de um juiz da nação hebreia, caminho fácil para a vingança era “metê-lo na inquisição”.
Outro inimigo declarado de Gonçalo era um André Pires, da aldeia do Arco, irmão de uma criada/amante daquele e que foi despedida por sua mulher “por grandes desgostos e ciúmes que dela tinha”. E também era inimigo o padre Diogo Maçulo, cura da matriz, que o juiz Diogo Marcos, sobrinho de Gonçalo, prendeu, acabando condenado por “infame e criminoso” e degredado por 4 anos.
Estes e outros “inimigos capitais” tinham fácil acolhimento junto do vigário geral da comarca, Aleixo Falcão, nomeado pelo arcebispo de Braga Frei Baltasar Limpo, e do seu “delegado” padre Amaro Gil.
Seriam crispadas as relações entre cristãos velhos e novos de Vila Flor quando, em setembro de 1556, Aleixo Dias ali foi em visitação. Choveram as denúncias contra os “judeus”, com os denunciantes aparentemente a serem “recrutados” pelo padre Maçulo.
Adivinhando tempestade, os cristãos novos não ficariam quietos, especialmente Gonçalo Marcos. Meteu-se a escrever uma carta para o rei e outra para o cardeal D. Henrique, denunciando tropelias e ilegalidades dos seus acusadores, visando particularmente o vigário geral. E com as cartas escritas, pôs-se a caminho de Lisboa a entregá-las a Suas Majestades.
Em simultâneo, Aleixo Falcão escreveu para a inquisição de Lisboa dizendo que, para não ser preso, Gonçalo Marcos fugiu de Vila Flor a embarcar para Marrocos e fazer-se judeu, tal como o seu irmão Jacob. Acrescentava que, quando foi Juiz, na semana santa, foi ter com o pregador a quem “rogou muito e lhe deu muitas razões” para não falar dos judeus e os não acusar da morte de Cristo. Mais o acusava de ter participado em reuniões na “sinagoga” de Lopo Dias, e ir a casa de João Rodrigues ouvir ler a Torah.
Andava Gonçalo por Lisboa, buscando oportunidade para entregar as cartas que trazia, quando foi preso por Brício Camelo e metido nos cárceres da inquisição, com base na carta enviada por Falcão como consta do processo:
- Aos 5 dias do mês de dezembro de 1556 anos, em Lisboa na casa do despacho desta inquisição, estando ali os senhores inquisidores, foi apresentada uma carta do senhor licenciado Aleixo Dias Falcão…
Não sabemos se as cartas de Gonçalo chegaram aos destinatários pois “tanto que ele réu foi preso, o alcaide deste santo ofício lhe tomou a petição e capítulos que trazia para mostrar ao senhor cardeal, os quais papéis os deu ele em prova ao mesmo Brício Camelo que lhos tomou, e deu como testemunha o senhor Manuel de Sampaio camareiro” de el-rei e os seus criados Monteiro, Camelo e Pero Gouveia.
Se aqueles papéis serviam para mostrar as “indignidades” de Falcão e seus acólitos, obviamente que também constituíam a sua melhor defesa, cujos pontos essenciais foram:
- Além de “muito suspeito e odioso” Aleixo Dias Falcão não poderia ser vigário geral porque era homem de menor idade e o direito canónico exige o mínimo de 40 anos. Além disso, ele era secular e a lei exige que o vigário tenha ordens religiosas.
- Como seu inimigo declarado, foi de Torre de Moncorvo a Vila Flor, à meia noite, a “tirar testemunhos” contra ele e os mais. Nisso foi ajudado pelo padre Amaro Gil a quem fez seu delegado dando-lhe poderes para ir pelas aldeias de Samões e Freixiel recolher testemunhos contra Gonçalo e os outros. E também este Amaro Gil era de menor idade e não podia ser delegado do vigário e menos ainda fazer inquirições em matéria de fé.
Da sua defesa tiramos mais uma nota interessante para dizer que a igreja matriz de Vila Flor andava então em obras e Gonçalo foi “uma das quatro cabeças” das obras. Finalmente, veja-se como terminou a defesa do réu! Um verdadeiro repto laçado aos inquisidores:
-Peço a Vossas Mercês que vejam bem isto tudo com o mais que são obrigados e me despachem com brevidade para ir trabalhar meus negócios e recuperar minha fazenda perdida.
Dias depois acordavam os inquisidores “que vistos os autos deste processo e a qualidade das culpas e o defeito das provas delas e como não é bastante para condenação, vista juntamente a defesa e abonação, se absolve o réu…”
A sentença foi lida em mesa a 14 de outubro de 1557 “e foi mandado em paz…”
Quanto ao vigário Aleixo Falcão devemos dizer que desapareceu de Moncorvo e no ano seguinte o cargo era ocupado por Pero Fernandes Lima. E as prisões efetuadas em Vila Flor pela páscoa de 1558 não foram já conduzidas pelo vigário mas pelo solicitador Luís do Rego, da inquisição de Lisboa. No entanto, Aleixo Falcão seria um comissário da inquisição muito empenhado em servi-la, homem de confiança de Baltasar Limpo e porventura do próprio inquisidor mor. Não foi posto no “olho da rua” mas enviado para o extremo oriente a instalar o tribunal da inquisição de Goa. Promoção ou castigo? ... O assunto está a ser estudado pelos autores que prometem um novo trabalho.
NOTAS
1-ANTT, inq. de Lisboa, pº 2893, de Maria Álvares.
2-MORAIS, Cristiano de – Cronologia Histórica de Vila Flor 1286 - 1986, p. 10
3-ANTT, inq. Coimbra, pº 8455, de Leonor Marcos. 4-IDEM, inq. Lisboa, pº 12801, de Gonçalo Marcos.
5-IDEM, pº 892, de Beatriz Fernandes, que foi presa em pela inquisição de Lisboa em cujos cárceres faleceu.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS Bernardo Lopes (n. Vila Flor c. 1502)

Bernardo Lopes, “homem de boa estatura e rosto largo”, nasceu em Vila Flor por 1502. Era filho de Lançarote Rodrigues e Genebra Alvim, judeus batizados em pé. Fez-se mercador de panos, em segmentos comerciais bem definidos. Em Portugal comprava “panos de estopa, linho e seda para ir vender em Castela e de lá trazia panos de cor para vender”.

Casou com Maria Álvares, natural de Bragança. (1) O casal morava na praça de Vila Flor, mesmo junto da igreja matriz. Em 1554, entrou ao serviço de Manuel Sampaio, senhor de Vila Flor e de muitos foros concedidos pelos reis em várias partes. E como feitor que era na Casa Sampaio, (2) competia-lhe a arrecadação dos ditos foros. Em tal função, fazia-se geralmente acompanhar pelo “porteiro” do concelho que detinha o poder de penhorar os bens das pessoas que não queriam pagar.

Seria no verão daquele mesmo ano. Andaria o feitor na cobrança dos foros na aldeia de Candoso, acompanhado do porteiro João Gonçalves. E indo a casa de uma viúva a cobrar o foro devido, ela disse que não tinha cereal e pagaria em dinheiro, pelo preço a que o pão estava taxado. O feitor respondeu que por aquele preço não recebia e queria mais dinheiro ou o cereal, conforme estabelecido. E como a viúva não esteve de acordo, o porteiro procedeu à hipoteca dos bens necessários. Aí a viúva terá dito para o feitor:

- Como Nossa Senhora fora virgem antes e depois do parto, assim sejais vós destruído, por me tirar o pão de meus filhos!

Ao que Bernardo Lopes terá respondido:

- Virgem Maria… virgem Maria… virgem como a minha mãe quando me pariu!...

Obviamente que o caso chegou logo ao conhecimento do vigário geral da comarca, o licenciado Aleixo Dias Falcão. Tal como chegou a informação do padre Diogo Maçulo, capelão em Vila Flor, dizendo que Bernardo Lopes e Maria Álvares, raramente iam à missa dominical, apesar de viverem mesmo junto da igreja. E também lhe contaram que andando com operários em uma vinha “a lançar cepas de cabeça” viria a falar-se de judeus. E um dos operários, que era cristão-velho, terá feito alguma insinuação, a que Bernardo Lopes respondeu nos termos seguintes:

- Quando ele fosse bom judeu, ele réu seria bom cristão.

Claro que todos os depoimentos foram judicialmente autuados e o despacho do vigário-geral não surpreenderia: mandou recolher Bartolomeu na cadeia da comarca, em Torre de Moncorvo, ao findar da primavera de 1556. E estando preso na cadeia da Torre, com outros mais “criminosos”, imagine-se que 3 distintos companheiros ali teve: o padre Diogo Maçulo, cura em Vila Flor; o padre Amador Rodrigues, “capelão que foi em Bruçó” e o padre António Rodrigues que depois foi rezar missa para Mogadouro.

Não sabemos como os 3 clérigos foram ali parar mas sabemos que eram extremamente zelosos da fé e vigilantes. E cada um deles compareceu a denunciar novos “crimes” de Bernardo Lopes. Os três testemunhos foram idênticos e por isso transcrevemos apenas o do padre Amador Rodrigues que disse:

- Que ele esteve preso na cadeia desta vila durante 6 semanas e nesse tempo o dito Bernardo Lopes estava também preso, como está, e dormia junto a ele testemunha e nunca nesse tempo viu ele testemunha o dito Bernardo Lopes benzer-se nem rezar, nem fazer acto de cristão, e nesse tempo estivera doente 2 ou 3 dias e nunca chamara por Nosso Senhor nem Nossa Senhora, nem outro santo, e por ele testemunha e os mais padres que ali estavam presos, que eram o dito Diogo Maçulo e António Rois o tinham por mau cristão.

Outras culpas foram ainda acrescentadas e o vigário-geral decidiu enviar o prisioneiro e o respetivo processo para o arcebispo de Braga, frei Baltasar Limpo, que o remeteu para o tribunal da inquisição de Lisboa onde deu entrada em 10 de fevereiro de 1557. (3)

Entretanto e estando o prisioneiro em Braga, o vigário Aleixo Falcão, mandou também prender a sua mulher. As acusações eram em parte as mesmas do marido, dizendo que guardava o sábado e não o domingo como dia de descanso semanal e nele vestia camisa lavada; que, morando junto à igreja, não ia à missa… e as testemunhas eram semelhantes, incluindo os ditos padres. Acresceu um outro crime e que vamos contar… (4)

Dois anos e meio atrás, em um sábado, apareceu à porta de Maria Álvares um tendeiro de Chaves. E a casa de Maria Álvares tinha um “balcão ou alpendre” suportado por esteios. E o tendeiro preparava-se para armar a sua tenda debaixo do alpendre, como aliás costumava ele e outros tendeiros que ali vinham. Mas veja-se o que aconteceu, tal como ficou escrito no processo:

- Ela ré chegou à porta e tanto que viu armar a tenda (…) disse ao dito tendeiro que desarmasse a tenda e não vendesse porque era sábado e por vida dos meus filhos que não haveis hoje de armá-la e se a armardes não venhais mais aqui e fazei conta que nunca mais aqui haveis de armar. E por ela ré assim o dizer, o dito tendeiro tornou a desarmar a tenda e se foi. E ao outro dia, que era domingo, a armou no próprio lugar e ela ré (…) deixou armar a tenda no dito dia, o que ela fazia por guardar e venerar o sábado, como judia.

Uma derradeira culpa lhe imputaram no cárcere de Lisboa, ao cabo de um ano de prisão, assim formulada pelo promotor:

- Acresceu à ré agora a culpa de Isabel Dias, de Braga, que diz que cantava diante dela coisas de judia, e ela ré folgava e chorava, que é grande sinal de quem tem ainda lembrança daquelas coisas. E diz mais a testemunha que lhe dizia a ré que o Messias havia de vir e que a havia de livrar… (5)

Voltemos a Bernardo Lopes e à sua defesa. Antes de mais cumpre elogiar o comportamento do seu procurador, que atuou como um verdadeiro advogado de defesa. Veja-se, a título de exemplo, uma simples frase:

- Não curo do descrédito que o clérigo Amaro Gil, em seus testemunhos, lhe quis dar; e outros que quiseram tomar ofício do senhor Deus… (6)

Referia-se, obviamente aos padres (e aos inquisidores?) que tinham Bernardo Lopes por mau cristão.

Em segundo lugar, diga-se que nesta época ainda era permitido aos prisioneiros nomear um ou mais procuradores para acompanhar a audição das testemunhas de acusação. E assim, Bernardo nomeou o seu filho Lançarote, o amigo João da Rosa (cristão velho), ou o irmão Jorge Fernandes. Este procedimento levaria o promotor a dizer que tais procuradores pressionavam e subornavam as testemunhas e até levavam algumas a desdizer-se.

Finalmente refira-se o levantamento de suspeições sobre o Aleixo Falcão, que era seu inimigo, conseguindo que a audição das testemunhas fosse feita pelo licenciado Francisco Dias, provedor e contador da comarca e não pelo vigário-geral. Aliás, até o arcebispo lhe seria, de algum modo, suspeito, conforme se depreende deste item da sua defesa:

- Entende provar que António Fernandes, porteiro diante do vigário da Torre, é oficial ante ele e do arcebispo, os quais são inimigos de Manuel Sampaio e assim dele réu…

No processo de Bernardo, como no de sua mulher e outros mais de Vila Flor naquela época, é notória uma subterrânea “perseguição” política aos cristãos-novos que então ocupavam influentes cargos municipais, nomeadamente de notários, vereadores, almotacés, juízes… Como diria o advogado de defesa de Maria Álvares:

- Entende provar que na dita vila os cristãos-novos andavam sempre nas eleições e requerimentos da dita vila e algumas pessoas disso se escandalizavam tanto que, com inveja, difamavam deles…

Resta dizer que não demorou muito a ser publicada uma lei proibindo os cristãos-novos de ocupar cargos municipais em Vila Flor, lei que depois se estendeu a todo o país. Quanto a Bernardo Lopes, terminou condenado em cárcere por 2 anos e abjuração veemente de seus erros em auto público da fé celebrado em 15.5.1558. Um pouco mais leve a sentença ditada no mesmo auto a sua mulher.

 

NOTAS:

1-A família de Maria Álvares era bastante conceituada em Bragança e um dos seus irmãos chamado Garcia Álvares, era médico em Vila Flor, viúvo de Benta Dias. E estes foram os pais do advogado Francisco Rodrigues da Silva que foi martirizado pela inquisição e do médico Luís Álvares da Silva, morador em Foz Lima, terra de sua avó Benta, ambos casados em Torre de Moncorvo com duas filhas do famoso advogado Dr. André Nunes.

2-A ligação da nobre família Sampaio à gente da nação hebreia era muito estreita e o feitor Bernardo Lopes não era o único cristão-novo que frequentava a “casa grande de Vila Flor”.

3-ANTT, inq. Lisboa, pº 5157, de Bernardo Lopes.

4-IDEM, pº 2893, de Maria Álvares.

5- IDEM, pº 1330, de Isabel Dias. Esta era mulher de 75 anos, apresentada como “judia e rabina e muito sabida nas coisas da lei de Moisés”, dizia perante os inquisidores que “ela ensinava as coisas dos judeus a todos os cristãos-novos de Entre Douro e Minho”. Era também parteira e foi acusada que “tinha circuncidado muitas infindas crianças”. Sabia orações e cantigas em hebraico, explicando-as depois em português. Negou-se a prestar juramento sobre o livro dos Evangelhos que tinha desenhada uma cruz e jurou apenas pelo Deus todopoderoso que fez o céu e a terra.

6- Mais incisivo ainda seria o defensor de Maria Álvares que, entre outros, apresentou o argumento seguinte: - O testemunho de Diogo Maçulo não lhe prejudica, por muitos defeitos que tem, que é homem muito criminoso e arrastado e preso por os mais crimes, e é degredado e infame (…) pelo que ainda que fosse verdade o que as testemunhas dizem, não se há de presumir que o fazia como judia, quanto mais que nunca tal fez.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - João Rodrigues, vereador e juiz (n. Vila Flor c. 1507)

Nasceu em Vila Flor, por 1507, sendo filho de Lançarote Rodrigues e Genebra Alvim. Foi mercador e ascendeu à categoria de rendeiro. Muito considerado entre os seus conterrâneos, foi chamado a desempenhar cargos importantes como: juiz ordinário, vereador da câmara e almotacé. Membro de várias confrarias, foi nomeado mamposteiro dos cativos, competindo-lhe arrecadar os dinheiros de esmolas, doações, testamentos… para comprar a liberdade de cristãos cativos de mouros e árabes.

Casado com Filipa Rodrigues, o casal teve 2 filhos e 3 filhas. Uma das filhas chamou-se Genebra Alvim, como a avó e foi casar em Escarigo. Este casamento foi muito comentado no seio da comunidade marrana de Vila Flor. É que Genebra terá sido pedida ao pai para casar com um escudeiro, membro de uma família da maior nobreza de V. Flor. João Rodrigues recusou, preferindo casá-la com Diogo Mendes, um cristão-novo, morador em Escarigo, o qual, anos depois, seria processado pelo santo ofício juntamente com 2 filhas. (1)

Quem falou dos comentários a este casamento por parte dos marranos de Vila Flor foi Vasco Fernandes, o Pataranha, que prestou o seguinte depoimento:

- Que lhe dissera o dito João Rodrigues que trouxera uma bíblia de Salamanca; dizendo-lhe mais que todos os trabalhos que o dito João Rodrigues tivera fora porque lhe pedira um escudeiro de Vila Flor sua filha em casamento para um seu filho e que ele não quisera dar (…) e que muito melhor fora passar os trabalhos que casá-la com um cristão-velho. (2)

Não seriam, no entanto, as denúncias de Vasco Fernandes que levaram João Rodrigues a ser preso pela inquisição de Lisboa, já que aquele só entrou na mesma cadeia depois que este saiu penitenciado e andava cumprindo sua penitência no colégio da doutrina da fé. Na base da sua prisão estariam dois outros denunciantes, cristãos-velhos. Um deles era padre, natural de Mirandela, capelão em Vilas Boas, Francisco Pimentel, de seu nome. Entre outras coisas de “mau cristão” foram 3 as acusações apresentadas contra ele, a saber:

Que punha em dúvida a virgindade de Nª Senhora, dizendo que lhe parecia impossível uma mulher parir e ficar virgem.

Que a lei de Moisés era melhor que a lei dos cristãos-velhos e que em prova, contara que, em tempos, sobrevindo uma grande seca, os cristãos-velhos saíram com procissões e rezas pedindo água a Deus, mas que Deus não ouviu os seus rogos. E então disseram aos cristãos-novos que rogassem também pela chuva. E saíram estes para os campos onde fizeram suas rezas e cerimónias. E regressando a suas casas, com eles veio também a chuva em abundância, concluindo então que os seus rogos eram mais aceites por Deus. E acrescentaria que eles eram apenas 20, entre um grande número de “lobos, que eram os cristãos-velhos”.

Finalmente era acusado de ter colocado um colar de ferro no pescoço de um escravo forro, que assim morreu, com os açoites e pancadas que lhe deu, porque o escravo andou publicamente dizendo que ele tinha uma bíblia e que em sua casa se faziam ajuntamentos de judeus e outras mais judiarias.

Tais denúncias foram levadas ao conhecimento do vigário-geral de Torre de Moncorvo, o famigerado Aleixo Dias Falcão, que logo mandou prendê-lo e se meteu a organizar o consequente processo que enviou para a inquisição de Lisboa, (3) em cujas masmorras deu entrada João Rodrigues em 10 de abril de 1557.

Na prisão teve dois bígamos por companheiros e na cela de cima um padre António de Gouveia, especialista em “tirar nabos da púcara” dos outros para os ir denunciar perante os inquisidores. Com eles terá João comentado as razões de sua prisão, nos seguintes termos:

- Dizem que tinha uma Toura em minha casa e que se faziam ali ajuntamentos, não declarando quem eram os que se ajuntavam.

E aconselhando-o aqueles a que confessasse suas culpas, ele terá respondido:

- Que diabo hei de eu confessar; se começo nunca hei de acabar.

E terá também dito aos mesmos “espias” e estes aos inquisidores que “só quando visse o caso mal parado ele confessaria seus pecados e pediria misericórdia”.

Foi bem estruturada a defesa. Desde logo apresentando como testemunhas de seu bom comportamento cristão uma impressionante lista de escudeiros e padres de Vila Flor. Em segundo lugar conseguindo que a inquisição de Lisboa nomeasse o reitor de Bornes, comarca de Bragança, para inquirir as testemunhas e não o comissário local do santo ofício Aleixo Dias Falcão, de quem “tinha pejo” por ser “inimigo capital dele réu e por assim ser lhe é muito suspeito e por assim ser requeiro neste santo ofício que nas inquirições de sua abonação não fossem tiradas por ele e que as tirasse o reitor de Bornes, de nome Diogo Borges”.

Imagine-se: o local escolhido por Diogo Borges para inquirição das testemunhas foi a casa de Manuel de Sampaio onde um irmão do réu era feitor e toda a família de Lançarote Rodrigues entrava e saía muito à vontade. Acresce que os procuradores do réu (filho e genro) estariam presentes e conheciam as testemunhas, adivinhando-se intensas pressões e subornos. Alguma razão teria o advogado de acusação ao prevenir a mesa de que “a justiça fique frustrada e o réu haver de ficar sem castigo” devido às “manhas e provas e negócios forjados e negociados”, apontando o caso de um Rui Dias que se desdisse e “estava tornado, como pessoa que estava subornada e não dizia a verdade”. As queixas e alertas do promotor iam mesmo ao ponto de acusar o comissário Diogo Borges de “inadvertência e descuido”. Vejam:

- Não obsta as contraditas e provas com que o réu veio às testemunhas da justiça, porque as causas das contraditas são fingidas e a prova assim negociada na terra pelo filho do réu e seus parentes. E que também interveio a inadvertência e descuido do juiz comissário que fez a inquirição e lhe deixou saber das testemunhas da justiça e contraditas fossem chamadas e trazidas pelos requerentes das partes, de onde tiveram tempo de as perverterem (…) e meterem medo e intimidarem as testemunhas da justiça…

Testemunha essencial era o padre Francisco Pimentel que denunciou João Rodrigues por dizer heresias sobre Nª Senhora, sobre a Santíssima Trindade e sobre o Santo sacramento do altar. Veja-se como o seu testemunho foi completamente anulado e até ridicularizado:

Desde logo porque a testemunha que estaria com ele a ouvir tais coisas da boca de João Rodrigues acabou por dizer que nunca ouviu nada disso. Depois porque João conseguiu provar que ele tinha escrito cartas falsas para mandar para o santo ofício e só as não enviou porque ele réu lhas “achou e sobre isso lhe chamou dentro do sprital de falsário e passou com ele palavras de muito escândalo, remetendo a ele, levantando-o pelo cabeção e levantando de um punhal para lhe dar com ele”. E agora vejam a qualidade das pessoas que testemunharam a cena: D. Inês, irmã de Manuel Sampaio, o cura de Vila Flor e o padre capelão do hospital!

Tudo parecia correr de feição ao prisioneiro, mas… antes de o mandar em paz e encerrar o processo com defeito da prova, decidiram os inquisidores submete-lo a tormento. E então… o nosso biografado acabou por confessar seus pecados e pedir perdão… sendo reconciliado com cárcere e hábito penitencial perpétuo.

 

NOTAS:

 

1-ANTT, inq. Lisboa, pº3263, de Diogo Mendes. Deste processo extratamos o seguinte texto da acusação: - Provará que pregando um frei Francisco frade do mosteiro de S. João de Latrão, na igreja do lugar de Escarigo, onde ele réu é morador, no dia de Nossa Senhora da Anunciação, que foi dia 25 de Março de 1565 ,onde estava o réu  e o povo  junto,  por o dito pregador  dizer que o Messias  era vindo,  e que se algum do povo  da tribo de Israel duvidasse  disso  que não tivesse dúvida,  porque já era vindo, e também  que nosso  senhor  encarnara no ventre  de Nossa Senhora e parira ficando sempre virgem, antes do parto  e depois do parto, e confirmando isto  por autoridades e razões  da sagrada escritura; e o  réu por ser cristão-novo  se escandalizou e murmurou disso, e estando o dito pregador para  jantar em casa  de Simão Fernandes,   do mesmo lugar,  depois da gente ida da igreja,  ele réu se ajuntou  com outros cristãos novos  e com armas foram , ele réu e os mais  de assuada a buscar o dito frade  para o matar. E polo acharem em casa do dito Simão Fernandes, o réu com os mais entraram dentro em casa e chamando ao frade ladrão Lutero, que não pregava senão mentiras e falsidades e velhacarias, que saísse fora,  o quiseram matar e afrontar . Ao que acudiu o dito Simão Fernandes e com uma chuça deitou ao réu e aos mais fora de sua casa, chamando a voz d’ el rei, que queriam matar o frade pregador por pregar a palavra de deus; e acudiu muita gente, e ele réu com os mais ainda da rua disse que saísse o dito frade  fora, Lutero  ladrão,  que não pregava senão mentiras  e falsidades  e velhacarias,  que ali o haviam de matar  ás punhaladas; em que o réu e os mais cristãos novos, que com ele foram, fizeram grande afronta  e injúrias  ao dito pregador  e alvoroço  no povo todo, e todos  ficaram escandalizados  e diziam  que se  a isto não acudia  com justiça que  faria grande mal,  por ser  dito  contra a honra de deus  e sua santa fé.

 

2-ANTT, inq. de Lisboa, pº 7078, de Vasco Fernandes.

3-IDEM, pº 12463, de João Rodrigues.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Lopo Dias, mercador e juiz ordinário (n. Vila Flor c. 1502)

Nasceu em Vila Flor por 1502. Os seus pais foram batizados em pé e “faleceram cristãos”. Ele foi batizado em criança, “como os filhos dos cristãos-velhos” e foi seu padrinho Diogo Lopes, castelhano. Fez-se mercador e “granjeava a sua vida a tratar em Castela”. Casou com uma filha de Violante Fernandes, esta também batizada em pé e “que se gabava e dizia abertamente que era judia” e rezava “as orações do Shemá Israel Baruch”. (1)

Era homem influente e respeitado em Vila Flor, só assim se explicando que fosse eleito por alguns anos para ocupar o cargo de juiz. A outra face do honroso cargo seria a criação de inimizades, da parte dos condenados pela justiça.

Um dos casos mais badalados foi a condenação de André Pires, cristão-velho, homem considerado da aldeia do Arco e que deveria recolher de cada casa da terra um alqueire de trigo, em pagamento da avença ao médico do partido. Como ele não cumpriu o dever, o juiz Lopo exigiu que pagasse ele a avença de todos os outros. E parece que para dar cumprimento à sentença do juiz, André teve mesmo que vender uma vaca.

Outro caso sério aconteceu no ano de 1555. Sendo ele juiz, levantou-se na vila um movimento popular contra o cura da igreja, padre Diogo Maçulo, escrevendo-se “capítulos” contra ele, que foram enviados ao arcebispo de Braga, dizendo que era “muito vicioso, tendo mancebas e dormindo com mulheres casadas, com que escandalizava muito o povo”. Neste processo teria também andado Lopo Dias e a verdade é que o cura foi acusado, preso e condenado.

A essa altura era já viúvo, pois sua mulher, Isabel Pires, faleceu por 1551, contando apenas uns 37 anos, deixando-lhe 2 filhas e 2 filhos, todos já crescidos e apenas um se mantinha solteiro. Para tratar dos assuntos da casa contratou então uma moça cristã-velha. E tudo parecia correr bem na vida de Lopo e do filho mas... André Pires, o lavrador do Arco e o padre Maçulo é que não esqueceriam as afrontas e um e outro juraram vingar-se.

E assim, no dia 11 de Outubro de 1556, André Pires apresentou-se em Torre de Moncorvo, perante o vigário-geral, o licenciado Aleixo Dias Falcão e contou uma história muito interessante. Disse que, no tempo das malhadas de 1555, um dia, ao anoitecer, foi a casa de Lopo Dias comprar vinho. E entrando na sala, não viu ninguém mas escutou vozes que vinham de outra dependência, parecendo-lhe que eram várias pessoas e respondiam umas às outras. De repente, na loja, um “mulato” ter-se-á soltado e meteu-se em barulho com um cavalo que também ali estava. E fazendo as bestas um tremendo barulho, saiu o dono da casa e os outros que com ele estavam na “câmara escusa” a apartá-los. Aproveitou ele a confusão para entrar na dependência suspeita e ficou de boca aberta com o que viu: uma espécie de altar, com almofadas, castiçais acesos e “uma figura do tamanho de uma raposa, a qual parecia ser de ouro e prata, porque em partes era branca e em partes dourada, a qual tinha pernas como de cabra e unha fendida como cabra e na cabeça um corno são e outro quebrado e a cabeça era também de feição de cabra...” Acrescentou que no local estava Diogo da Mesquita, o filho solteiro de Lopo Dias, que com ele vivia e que o recebeu com estas palavras: - “Não tereis vós tanto ouro nem tanta prata!” E ele terá retorquido: - “Pois esse é o Deus que vós adorais?!”

Isto seria música para o vigário-geral e comissário do santo ofício na região, que, na figura da raposa vislumbrou uma “Torá” e logo se meteu a organizar o competente processo, com o escrivão do eclesiástico Pero Botelho.

No processo assentou depois outra denúncia contra Lopo Dias, também de extrema gravidade. Foi feita pelo padre Maçulo que contou uma cena acontecida por 1550, na semana santa. Como sempre acontecia, para pregar os sermões da semana santa, foi contratado um pregador de fama, que veio de fora. E então o juiz Lopo Dias terá ido ter com o pregador a pedir-lhe que nos sermões não falasse da morte de Cristo nem dos judeus para evitar que os rústicos lavradores interpretassem mal as coisas e julgassem que foram os judeus que mataram Cristo.

Eram duas denúncias muito graves e o vigário-geral não teve dúvidas em prender Lopo Dias e o filho Diogo da Mesquita, que remeteu para a inquisição de Lisboa juntamente com o processo, (2) ali dando entrada no dia 10.4.1557. 

Foi muito vigorosa a defesa apresentada por Lopo Dias, com testemunhas de muito crédito, na lista entrando toda a gente cristã-velha, nobre e fidalga de Vila Flor e de outras terras em redor. E não se contentou em narrar os factos e mostrar as provas das inimizades e intuitos de vingança por parte do lavrador do Arco e do cura de Vila Flor. Antes apresentou queixa do próprio vigário-geral, (3) que era seu inimigo e distorceria os testemunhos nos autos do processo. Pedia, por isso para não ser ele nomeado para ouvir as testemunhas. Apontava antes o licenciado Diogo Borges, reitor da igreja de Bornes.

Aceitaram o pedido os inquisidores Diogo de Azambuja e Ambrósio Campelo, terminando a carta da maneira seguinte:

-E porquanto, ao passar desta carta, o réu Lopo Dias disse que Vossa mercê lhe era suspeito e também seu escrivão, por brevidade e escusar inconvenientes, mandamos que se louvassem em pessoa que fizesse a dita diligência. E o promotor e o réu se louvaram em o licenciado Diogo Borges, reitor da igreja de Bornes...

Logo que a notícia correu, André Pires apresentou-se em Bornes a repetir a denúncia. E em Bornes foram recolhidos os depoimentos de algumas testemunhas. Depois foi o comissário e o escrivão a Vila Flor, no cumprimento da diligência ordenada. E ali ficaram instalados em casa do conde Manuel de Sampaio, senhor da terra e homem da simpatia dos cristãos-novos, muito em particular do Dr. André Nunes, seu advogado morador em Torre de Moncorvo, genro e procurador de Lopo Dias, o qual entrava e saía de casa do Conde e encaminhava as testemunhas. (4)

Executada a diligências e enviados os autos, prosseguiu em Lisboa o processo. E em Lisboa se apresentou também o denunciante André Pires, narrando pessoalmente o acontecido anos atrás, com todos os pormenores, alguns bem pouco credíveis, como no processo ficou escrito o parecer do deputado do santo ofício frei Francisco do Porto:

- Tinha escrúpulo de algumas circunstâncias do caso por lhe parecer que era muito descuido do réu a Toura e adorarem tendo as portas abertas.

E também parece que há muito de humor e ironia em algumas perguntas dos inquisidores. Como esta, feita a Diogo da Mesquita:

- Em casa de seu pai andava alguma raposa ou coelho manco ou figura de algum animal?

Com semelhantes perguntas dá a impressão de que a principal testemunha de acusação estava completamente desacreditada. E o procurador do réu fez questão de sublinhar:

- André Pires, tanto que lá soube que a contradita era recebida ao réu (…) se veio a esta cidade a confirmar seu testemunho, dando informação ao dito promotor como que temendo-se que o acusassem em falsidade...

Tal não aconteceu, André Pires não foi acusado de inventar a denúncia e jurar falso. Mas “os inquisidores, ordinário e deputados da santa inquisição, vistos estes autos deste processo e a qualidade das culpas do réu Lopo Dias, de defeito da prova da justiça e como não é bastante para condenação (…) absolvem o réu (…) e mandam que seja solto e se vá em paz...”

Igual sentença foi dada no processo de seu filho Diogo da Mesquita. Quanto ao Dr. André Nunes, diremos que por mais 25 anos continuou exercendo a advocacia e seria porventura o mais famoso advogado da comarca. Acabou, no entanto, por ser também ele prisioneiro da inquisição, em 1583, juntamente com os familiares. A sua mulher, Leonor da Mesquita, filha de Lopo Dias é que não conheceu a estalagem do santo ofício porque faleceu em 1581 e foi enterrada, em Torre de Moncorvo. Mas como o marido e as filhas a denunciaram por judaizante, foi-lhe também instaurado um processo pela inquisição de Coimbra, o qual terminou com a seguinte sentença:

-(…) Em detestação de tão grave débito, seus ossos sejam desenterrados (...) e serão entregues à justiça secular e assim sua estátua, para se fazer cumprimento da justiça.(5)

A sentença foi cumprida no auto da fé celebrado em Coimbra em 9.11.1596. Imagine-se a impressão que o evento causaria entre o povo cristão que assistiu ao desenterrar das ossadas 15 anos depois da morte e à colocação da “estátua” em lugar bem visível no interior da igreja matriz da vila, tudo acompanhado, certamente com sermões inflamados de algum frade.

 

 

 

 

 

 

NOTAS

1-IANTT, inq. de Évora, pº 9678, de Violante Fernandes.

2-IDEM, inq. Lisboa, pº 2174, de Lopo Dias; pº 236, de Diogo da Mesquita.

3-Lopo Dias não foi o único prisioneiro de Vila Flor a apresentar contraditas e embargos contra o comissário Aleixo Dias Falcão.

4-O promotor queixar-se-ia destas “diligências do licenciado André Nunes, seu genro, que viu por ele jurar as testemunhas e as chamou e falou com elas antes de testemunharem” E pela facilidade do comissário juiz (o Reitor de Bornes) que tal lhe consentiu e o deixou espantar as testemunhas” contrárias ao réu.

ANTT, inq. Coimbra, pº 3710, de Leonor da Mesquita.