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António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais Prisão e fuga de Pedro Carvalho

Ao início da segunda década do século XVIII, o judaísmo medrava em Bragança, com a gente da nação a ganhar muita importância e a ascender na escala social, graças ao seu poder económico. E este poderio económico advinha, em boa parte do fornecimento de géneros e abono de salários aos militares estacionados na cidade, mas, sobretudo, da grande procura de tecidos de seda que então se registava no país e cujas fábricas estavam, na quase totalidade, em suas mãos. E se o judaísmo medrava, era ocasião para o santo ofício fazer boas colheitas. Só na inquisição de Coimbra, nos 4 autos realizados de 1711 a 1718, terão sido penitenciados 205 judaizantes de Bragança, conforme listas publicadas pelo Abade de Baçal.  Escaldados pelos sequestros de bens que geralmente acompanhavam as prisões, os homens e mulheres da nação entraram de seguir a estratégia de se apresentar na inquisição, antes que os prendessem. Assim evitavam o sequestro imediato dos bens. Aconteceram então verdadeiras “romarias” de gente da nação de Bragança em direção a Coimbra. No mês de Janeiro de 1713, registou-se na cidade uma onda de prisões, com uma grande “leva” para Coimbra, seguindo-se uma vaga de apresentações, cerca de uma dúzia de pessoas, ao início de Fevereiro, conforme se vê das listas disponibilizadas pelos arquivos da Torre do Tombo. Entre essa dúzia de judaizantes brigantinos encontravam-se Helena Lopes, viúva de Francisco Carvalho e seu filho Pedro Rodrigues Carvalho, que agora vamos acompanhar.  Mãe e filho tiveram a primeira audiência do tribunal em 10.2.1713 e, em 22 de Junho seguinte, Pedro Carvalho estava despachado, com ordem para regressar a casa. A mãe teria idêntico despacho 2 meses depois, não chegando então a conhecer as celas húmidas e escuras do santo ofício.  Regressaram a Bragança, mas, em Coimbra, ficaram abertos os respetivos processos. Neles iriam os inquisidores registando culpas não confessadas e outras que diferentes réus eventualmente lhe acrescentariam. Sim, que a apresentação implicava esse risco de as confissões do próprio não coincidirem com outras, ou serem diminutas. Foi isso o que aconteceu com Helena Lopes que, em Fevereiro do ano seguinte, foi mandada e levar para a inquisição de Coimbra, saindo condenada em cárcere e hábito penitencial perpétuo, no auto-da-fé de 17.5.1716. E foi também por “diminuição das mesmas culpas” confessadas, que o filho, meses depois, ao início do mês de Novembro de 1714, foi igualmente preso, juntamente com os outros 8 de que vimos tratando. Enquanto se preparava a leva para Coimbra, foi o prisioneiro entregue à guarda de Manuel Pires da Silva, depositário das sisas de Sua Majestade. Este, ao contrário dos outros depositários, não permitiu que o prisioneiro recebesse visitas, colocando à porta de casa uma sentinela. E, dois dias depois, antes de o levar à Quinta de Santa Apolónia para o entregar ao familiar do santo ofício encarregado da leva para Coimbra, mandou-lhe meter grilhões e não consentiu que pessoa alguma se aproximasse a falar com ele. O mesmo depositário, prestaria mais tarde o depoimento seguinte: - Pedro Carvalho, que foi depositado em casa dele, testemunha, saíra com grilhões e ouvira dizer publicamente que os mais saíram sem eles; e que o mesmo preso Pedro Carvalho se escandalizara disso e protestava que o havia de dizer aos senhores inquisidores.  Não acompanhamos a leva dos prisioneiros, mas vamos até Coimbra, aos cárceres da inquisição, à cela onde meteram Pedro de Carvalho, em companhia de Henrique Rodrigues Gabriel que, com ele, viera preso de Bragança. Ali, a relações entre eles terão azedado, conforme relatou Henrique aos inquisidores. Vejam as suas próprias palavras que, além de esclarecerem a cena, mostram aspetos da vivência nos cárceres: - Disse que, sendo o dito Pedro Rodrigues Carvalho companheiro do réu na mesma prisão dos cárceres desta inquisição, sucedeu que o dito Pedro Rodrigues Carvalho quebrou o cântaro da água de que se serviam; e vindo o alcaide a dar-lhe água, perguntou pelo dito cântaro e quem o quebrara; e logo o réu lhe disse que o quebrara o seu companheiro; e logo ele com o réu teve grandes dúvidas, o que foi em 27 de Setembro próximo passado (…) No outro dia seguinte chamou o dito seu companheiro pelo alcaide a quem disse que tirasse ao réu uma tesoura e uma navalha, porque, dizia, o tinha ameaçado, que com elas lhe havia de cortar a cara. E suposto que tal não dissesse, nem pretendesse, contudo logo ele entregou ao alcaide a dita tesoura e navalha. E depois disso, suposto que ambos ficassem no mesmo cárcere como dantes, contudo nunca mais comeram nem cozinharam juntos a sua ração, mas cada um apartados, e logo na mesma ocasião das ditas dúvidas, ameaçou ao réu e pediu mesa.

Que sendo na noite de 9 de Fevereiro próximo passado do corrente ano, a horas da meia- -noite, estando ele deitado na sua cama, começou o dito seu companheiro a descompô-lo com palavras injuriosas; e pegando em uma ratoeira de cepo, deu com ela uma grande pancada na testa do réu, junto à fronte, com que lhe fez uma ferida; e logo com a mesma e pau dela, já depois de quebrada, lhe deu outras pancadas e, sem dúvida, o matava, se a ratoeira não quebrara e o réu não gritasse, chamando pelo alcaide, a cujas vozes o deixou o dito seu companheiro; mas logo que o cárcere se abriu pelo alcaide, de manhã, lhe contou o réu o sucesso e mostrou o ferimento, pedindo que dali o mudasse para outro cárcere; e com efeito assim fez, ficanAo início da segunda década do século XVIII, o judaísmo medrava em Bragança, com a gente da nação a ganhar muita importância e a ascender na escala social, graças ao seu poder económico. E este poderio económico advinha, em boa parte do fornecimento de géneros e abono de salários aos militares estacionados na cidade, mas, sobretudo, da grande procura de tecidos de seda que então se registava no país e cujas fábricas estavam, na quase totalidade, em suas mãos. E se o judaísmo medrava, era ocasião para o santo ofício fazer boas colheitas. Só na inquisição de Coimbra, nos 4 autos realizados de 1711 a 1718, terão sido penitenciados 205 judaizantes de Bragança, conforme listas publicadas pelo Abade de Baçal.  Escaldados pelos sequestros de bens que geralmente acompanhavam as prisões, os homens e mulheres da nação entraram de seguir a estratégia de se apresentar na inquisição, antes que os prendessem. Assim evitavam o sequestro imediato dos bens. Aconteceram então verdadeiras “romarias” de gente da nação de Bragança em direção a Coimbra. No mês de Janeiro de 1713, registou-se na cidade uma onda de prisões, com uma grande “leva” para Coimbra, seguindo-se uma vaga de apresentações, cerca de uma dúzia de pessoas, ao início de Fevereiro, conforme se vê das listas disponibilizadas pelos arquivos da Torre do Tombo. Entre essa dúzia de judaizantes brigantinos encontravam-se Helena Lopes, viúva de Francisco Carvalho e seu filho Pedro Rodrigues Carvalho, que agora vamos acompanhar.  Mãe e filho tiveram a primeira audiência do tribunal em 10.2.1713 e, em 22 de Junho seguinte, Pedro Carvalho estava despachado, com ordem para regressar a casa. A mãe teria idêntico despacho 2 meses depois, não chegando então a conhecer as celas húmidas e escuras do santo ofício.  Regressaram a Bragança, mas, em Coimbra, ficaram abertos os respetivos processos. Neles iriam os inquisidores registando culpas não confessadas e outras que diferentes réus eventualmente lhe acresdo ainda os seus móveis no dito cárcere em que ficou o companheiro, o qual se foi aos ditos móveis e lhe fez duas rasgaduras grandes no capote, na cabaça nova três ou quatro e outras muitas em três camisas e em um lençol. Que indo o réu, a chamado do dito alcaide e dos guardas, tirar os ditos móveis que lhe tinham ficado no dito cárcere, disse o dito companheiro, diante de todos, para o réu, que Deus o levasse em bem e à sua mulher, e que ele não tinha coisa alguma que dizer deles na matéria da fé; mas dali a poucas horas, começou o mesmo companheiro, em vozes altas, a bradar para todos os presos que o acusassem; e para seu cunhado Manuel, repetindo muitas vezes dizendo: - Manuel, Manuel, vinga-te de Henrique Rodrigues Gabriel, réu, que me entregou ao braço secular, sendo ele homem relapso. Certamente que Pedro Carvalho estava com medo que o condenassem à morte, uma vez que já antes fora penitenciado. Possivelmente sentia-se como um homem relapso. A ponto de… acabar por fugir dos cárceres da inquisição. Não foi muito longe, pois que, em 20.4.1716, já estava de novo encarcerado em Coimbra. Não sabemos os pormenores da fuga nem a situação processual em que o réu ficou. Em circunstâncias normais, a fuga seria considerada um crime de extrema gravidade. Neste caso concreto, não pudemos avaliar, pois não tivemos acesso ao respetivo processo. Apenas sabemos que foi sentenciado no auto-da-fé realizado em 20 de Maio seguinte, condenado em sequestro de bens, cárcere e hábito penitencial e 5 anos de degredo para Angola. No mesmo auto saiu também sua mãe, como atrás se disse e mais uns 59 judaizantes de Bragança. 

“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Mariana de Castro entre Agrochão e Bragança

Agrochão é uma freguesia do concelho de Vinhais, situada no limite sul do concelho, confinante com o de Mirandela. Nesta freguesia, no século de 600, havia 2 importantes famílias da gente da nação, ligadas entre si: a dos Almeida- -Castro e a dos Pimentel-Albuquerque. De modo algo simplista, pois que a gente da nação agarrava-se sempre ao que podia, atrevemo-nos a dizer que os primeiros eram, sobretudo, empresários agrícolas e mercadores e que, entre os segundos, ganhavam destaque os “ourives do ouro e da prata”. Só na família direta de Fernando Fonseca Chaves, um membro desta família cujo processo os autores estudaram e se preparam para publicar, contava- -se uma dúzia destes profissionais. (1) Obviamente que numa pequena aldeia como Agrochão não podiam sobreviver tantos ourives e que a generalidade deles nasceu já em Bragança, espalhando-se pelo país. E também os filhos e netos de um lavrador, por mais abastado que fosse, não ficariam numa pequena aldeia, limitados ao amanho da terra. A gente da nação dedicava-se a uma agricultura virada para o comércio mais do que uma agricultura de subsistência. O apelo da cidade, Bragança, era mais forte, pois havia ali empregos públicos e profissões mais atraentes e rentáveis, ligadas ao fabrico das sedas, nomeadamente. Situemo-nos em Agrochão, no mês de Junho de 1662, quando ali chegou o braço da inquisição e arrastou para as cadeias de Coimbra João Vaz Castro, a sua mulher, Pascoela de Santiago e os seus filhos António Almeida Castro e Manuel de Santiago. Vamos, antes de mais, apresentar esta gente. João Vaz Castro, (2) nascera na vizinha aldeia de Quintela, mas há mais de 30 anos que morava em Agrochão onde fora casar com Mariana da Paz, da família Albuquerque E foi deste casamento que nasceram António Almeida Castro, atrás citado, e Pascoal de Castro que, aos 20 anos, era alferes do corpo de auxiliares (milícias) do município e que depois se foi para Castela. Falecendo Mariana, João Vaz Castro, casou de novo, por 1645, com Pascoela de Santiago, nascida em Bragança, no seio de uma família muito ilustrada, de tabeliães / notários que, há 3 gerações, andava acertando contas com o santo ofício e que nem ela nem os seus descendentes acabariam por saldar, como se um trágico destino os guiasse. (3) João e Pascoela tiveram vários filhos e filhas, o mais velho dos quais se chamava Manuel de Santiago, (4) que contava 16 anos quando o levaram preso. Segundo confessou, foi doutrinado no judaísmo, em Bragança, em casa de sua parenta, Catarina Laines, onde vivera quando para ali foi enviado a frequentar a escola (dos jesuítas, certamente). Manuel de Santiago terá casado com Catarina Nunes e estes seriam os pais de Francisco de Almeida, que foi meirinho do assento e por 1730 se foi para Génova, segundo informações de sua tia, Mariana de Almeida, relaxada em 1708. (5) Voltemos atrás, a António Almeida Castro, filho de João Vaz Castro e Mariana da Paz, o qual nasceu em Agrochão, por 1632. (6) Quando o prenderam era já viúvo de Isabel Pereira, filha de Manuel Dias de Castro e sua mulher, Luísa Laines. Vivia em Agrochão e dizia-se lavrador. Depois, casou segunda vez, com Mariana de Almeida que, entre outros, lhe deu um filho, batizado com o nome de João de Castro, que viveu em Bragança, dedicando-se ao fabrico de sedas e exercendo também o cargo de meirinho do assento, ou seja: por ele passava o controlo do pão que era fornecido às tropas acantonadas em Trás-os-Montes e onde, em algum tempo, o assentista foi o primo de sua mulher, Fernando da Fonseca Chaves, atrás citado. Preso em Coimbra, António Almeida Castro confessou que efetivamente andara errado na lei de Moisés e que fora doutrinado “em casa de sua avó, Leonor Albuquerque, que era viúva de Francisco Serrão, e com Mariana da Paz, meia cristã-nova, mãe dele, defunta”. Tal como o pai e o avô, o meirinho do assento, João de Castro, foi preso pela inquisição de Coimbra, em Junho de 1711. Nessa altura era já casado com Josefa Henriques, oriunda de uma família de ourives e prateiros, como referimos. (7) Vamos olhar. Manuel de Santiago Pimentel se chamou o pai de Josefa e Isabel de Faro a mãe. Ambos se apresentaram em Bragança, em Março de 1661, perante o inquisidor Manuel Pimentel de Sousa, confessando culpas de judaísmo. Autuadas as suas confissões, ficaram os processos em aberto. 9 anos depois, foram chamados a Coimbra para serem sentenciados, no auto-da-fé de 26.4.1670. (8) Estamos então em Bragança, em 5 de Novembro de 1714, em casa de João de Castro, meirinho do assento e Josefa Henriques, sua mulher, ambos reconciliados pela inquisição de Coimbra, no auto- -da-fé de 6.8.1713, aquele condenado em sequestro de bens, cárcere e hábito perpétuo. Desta vez, o governador militar da cidade, em nome da inquisição, apresentou-se ali para levar presa a filha mais velha de João e Josefa, chamada Mariana de Santiago, de 22 anos. No mês seguinte haveriam de levar também preso o filho Manuel de Santiago e, 2 anos depois, seria a filha Filipa Henriques que iria voluntariamente apresentar-se em Coimbra. (9) Feita prisioneira, enquanto se organizava a leva para Coimbra, Mariana Santiago foi depositada em casa de Bento da Cunha, guarda da alfândega de Bragança. Durante os dois dias que ali esteve, Mariana foi visitada por seu pai, sua mãe e vários outros cristãos-novos que haviam estagiado nas cadeias da inquisição, naturalmente combinando com ela as pessoas que deveria denunciar, o comportamento e atitudes que devia adotar na prisão e a estratégia de defesa no decurso do processo.

“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais Os comissários e o rol dos livros

Os comissários eram recrutados entre os membros do clero e, geralmente, licenciados em Teologia e Cânones pela universidade de Coimbra. Deviam cumprir com todo o rigor e cuidado as ordens recebidas dos inquisidores e a estes deviam comunicar todas as informações referentes aos casos da fé. Os comissários constituíam o braço da inquisição nas terras onde não havia tribunal. Aos comissários eram dirigidos os mandatos de prisão, ficando eles responsáveis pela execução das mesmas, se bem que delegando em familiares e na autoridade civil essas tarefas. A eles deviam também apresentar-se os condenados que nas terras iam cumprir as suas penitências, depois de sair dos cárceres. Eram-lhe igualmente cometidas as devassas e inquirições sobre limpeza de sangue. E este era um poder de dimensão extraordinária, que, por vezes, imprimia verdadeiro terror aos que precisavam de semelhante atestado. Por todas estas razões, constituía coroa de glória para qualquer família ter um membro comissário, já que, assim, toda ela ganhava estatuto de nobreza e qualidade de sangue, automática e publicamente comprovado. Tudo isto consta dos regimentos da inquisição, nomeadamente no regimento de D. Francisco de Castro, em vigor na época que estamos tratando e que, no título XI, nº 7, explicitava: - Falecendo, nas terras em que vivem, alguma pessoa que tenha livraria, mandarão fazer rol dos livros e papéis de mão que nela houver e notificar aos herdeiros do defunto que não disponham deles sem aviso seu e avisarão à Mesa do Santo Ofício com toda a brevidade, enviando o rol dos livros e papéis e seguirão a ordem que dela lhes for dada. (1) Imagine-se! Borges Coelho comenta que os inquisidores tinham medo ao livro. Nós diremos que, para além disso, era uma arma de terrível poder, colocada nas mãos dos comissários, que sempre poderiam argumentar que o falecido teria uns livros ou “papéis de mão” para revistar a casa de qualquer cidadão mais evoluído, em termos de literacia. Vamos então para a cidade de Bragança, a casa do prior da colegiada da igreja de Santa Maria e beneficiado na igreja de S. Nicolau, de Lisboa, natural da vila de Caminha, Bartolomeu Gomes da Cruz, comissário do santo ofício, por carta de Agosto de 1689. Terá sido no dia 5 de Novembro de 1714 que o comissário Cruz recebeu de Coimbra um correio contendo um maço de mandatos para prender cidadãos de Bragança, acusados de judaísmo, cujos nomes constavam dos respetivos mandatos. Também aqui o regimento é claro: no caso de algum ser morto, ou fugido… o mandato devia ser devolvido com informação do sucedido. Não temos, por isso, informação precisa de quantos mandatos seriam. Na verdade, no dia seguinte, procedeu-se à execução das ordens vindas da inquisição de Coimbra, sendo presos 8 “judeus” da cidade. As prisões deviam realizar- -se com o maior segredo e cautela e, cada preso ser de imediato conduzido para casa de um cristão-velho, de reconhecida influência e cabedais, homem da nobreza ou do clero, geralmente, não deixando o preso contactar com familiares e amigos. À prisão seguia-se o arresto dos seus bens, fazendo-se o respetivo inventário e, no próprio mandato vinha anotado o montante de dinheiro (geralmente andava nos 40 mil réis) que o prisioneiro devia proporcionar para pagar os grilhões com que o prendiam, a alimentação e as despesas de transporte para a cadeia, nomeadamente as jornas de quem os levava presos e o aluguer de bestas para o transportar a ele com sua roupa, cama, e cozinha. Se o réu ou a Família não apresentavam dinheiro líquido, vendiam-se os bens necessários, começando, naturalmente, pelos bens móveis e perecíveis. Feito o inventário e leiloados os bens, fechava-se a casa e entregava-se a chave a algum cristão-velho de confiança e cabedais que garantisse o depósito dos bens móveis e imóveis inventariados. Os filhos e o cônjuge que procurassem onde ficar. Em simultâneo, metiam-se grilhões nos pés dos prisioneiros. Nisto se gastaram 2 dias. Ao terceiro, cada preso foi levado pelo seu depositário até fora da cidade, ao campo de Santa Apolónia, hoje integrado na Escola Superior Agrária, onde foram confiados ao familiar do santo ofício Domingos Pires Malheiro, destacado para conduzir a leva dos 8 prisioneiros para Coimbra. Obviamente, era acompanhado por vários homens, criados seus ou por si recrutados, conduzindo uns quantos animais onde iam montados os presos e a sua “tralha”. Deixemos a comitiva de prisioneiros seguir até Coimbra, para apresentarmos o responsável pela leva, o familiar Domingos Malheiro. Estranhamente, sabemos as datas de nascimento e casamento de seus pais, mulher e sogros, mas não foi encontrado o registo do seu nascimento nos livros da paroquial igreja de Ervedosa, onde as testemunhas afiançaram que ele terá nascido por volta de 1654. António Pires, seu pai, era lavrador, um dos principais da terra, nascido na quinta de Sendim. Sua mãe, Margarida Malheiro transportava uma história de vida, então muito frequente, de nobreza e servidão, misturadas. Vamos contar. António Malheiro da Cunha era um homem da nobreza de Bragança, fidalgo-cavaleiro por alvará de 18.4.1694. De uma rapariga solteira, criada da casa, Ana Vaz de seu nome, natural da vila de Ervedosa, teve uma filha que nasceu em 1634 e foi batizada na igreja de S. Martinho “e se lhe deu por pai António Malheiro, de Bragança”, conforme reza a certidão de batismo. O pai não estaria presente ao batizado mas nunca desprezou a filha. Antes a confiou a seu irmão, padre Bento da Cunha, então cura de Penhas Juntas e mais tarde abade de Rebordãos, “que a amasse por sua filha”, o qual “fez sempre caso dela, como sua irmã e por tal a estimou e lhe dava os passais de sua igreja para neles se sustentar ela e o marido”. Temos então os pais de Domingos Pires Malheiro (António Pires e Margarida Malheiro) a casar em Ervedosa, por 1650 e a ser apoiados pelo padre Bento da Cunha, seu tio- -avô materno. E certamente foi com o apoio da família materna que Domingos ganhou os empregos de corretor da alfândega de Bragança e tabelião da vila de Ervedosa. Era ainda capitão de ordenanças de Moimenta mas “isto não lhe rende coisa alguma”. Domingos casou em Bragança, em 1.12.1706, com Maria do Espírito Santo, nascida na mesma cidade em 1680, filha de Martinho Diegues (2) e Catarina Fernandes. Martinho era natural de Seixas/Vinhais e “foi para Bragança para o estudo e, sendo soldado, casou e de presente é ajudante de auxiliares”. Catarina nasceu em Casares/Bragança, filha de lavradores, “os principais da terra”, e depois que os pais morreram, foi para Bragança, servir em casa de D. Violante Ferreira. Conforme vimos, dada a falta de familiares que se verificava na região de Bragança para executar as prisões do santo ofício e levar os presos a Coimbra, “os inquisidores mandaram ao comissário que nomeie aqueles que parecerem mais suficientes para familiares (…) e o dito comissário nomeou alguns, entre os quais foi o pretendente Domingos Pires Malheiro”. (3) Apresentado o requerimento, foi entregue ao comissário António Gomes do Vale, (4) abade de Mofreita, Vinhais, o encargo de proceder às investigações sobre a limpeza de sangue do candidato e seus ascendentes, assim como de sua mulher, o que atrás ficou já especificado. A concluir, o comissário Vale deu a sua informação dizendo que o pretendente era cristão-velho dos 4 costados e tinha poucos bens. Muito embora a sua mãe tivesse entrada em casa de seu pai natural, dele não herdara título de nobreza, nem propriedades. Vejam: - É bem procedido e capaz de se lhe fiarem negócios de importância e segredo, como são os do santo ofício, porque a todos os que lhe forem encarregados dará inteira satisfação, e vive limpamente, sem embargo de não ser muito rico. (5) Resta dizer que Domingos Pires Malheiro recebeu carta de familiar da inquisição em15 de Maio de 1714 e que faleceu por 1719, ano em que o seu irmão inteiro, António Malheiro da Cunha, se candidatou também ao cargo de familiar do santo ofício, vindo a obter carta em 28.7.1721. Na sua petição, entre outros argumentos, António Malheiro dizia que “foi ocupado em outras vezes para fazer prisões de cristãos-novos e muitas vezes teve presos em casa, antes de irem para o santo ofício de Coimbra.” Ou seja: mesmo não o sendo já fazia serviço de familiar. Se as origens de António Malheiro eram humildes, deve dizer-que que, em 1719, quando se candidatou ao cargo de familiar do santo ofício, era já um senhor de muito respeito em Bragança onde tinha casa montada, se bem que ele se encontrasse destacado na vila de Chaves, na ocupação de sargento-mor da praça, um posto militar bem elevado. Em outra ocasião haveremos de falar dos seus casamentos e da sua ascensão social.

“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Ascensão social de António Mendes Madureira

A lista enviada pelo comissário Bartolomeu Cruz contava 18 nomes de homens que poderiam ser familiares da inquisição: 12 moradores em Bragança e 6 em aldeias do termo. Vejamos os nomes e alguma identificação: Bento de Varge – Não sendo homem da nobreza, foi o primeiro administrador de um morgadio instituído por dois tios paternos, que eram padres, com cabeça na capela da Sª da Penha de França, na aldeia de Rabal, em 1696. Para além disso, era “capitão de uma tropa de ordenanças” na cidade. (1) António Malheiro da Cunha – Igualmente capitão de ordenanças em Bragança. Dele falaremos em próxima ocasião. Brás de Sousa – Pintor, era filho do padre Alexandre de Sousa Capitão e sua mulher Mariana Ferreira, ambos de Bragança. (2) Francisco Correia - Escrivão do fisco, já falámos dele, no primeiro artigo desta série. António Gomes – Sapateiro. Pedro Sanches – Ferrador. Filipe Correia – Morador em Bragança. Bento de Morais Castro – Licenciado, cavaleiro-fidalgo, por alvará de 1690. Foi-lhe concedido o hábito de Cristo. No entanto, ele terá renunciado a honras e mordomias, fazendo-se frade no convento de S. Francisco, para onde entrou, tomando o nome de frei Eusébio de Castro e ali faleceu. (3) Manuel d´Antas – Morador em Bragança. Francisco Gomes – Morador em Bragança. Francisco Pires – Ferrador. António Mendes Madureira – Sapateiro. Gaspar Buíça de Morais – Natural e morador no Outeiro, em cuja igreja está uma lápide de granito com os dizeres:- Sepultura de Gaspar Morais Buíça para si e seus descendentes. (4) Manuel de Morais Buíça – Também do Outeiro, certamente da família do anterior, filho de Domingos Pires de Morais. António Pinto de Salselas. António Mendes – Capitão de ordenanças, morador em Samil, termo de Bragança. Sebastião Sobrinho – Alferes de ordenanças, morador na Mofreita. António Ferreira – Capitão de ordenanças da mesma companhia de Mofreita. Como de vê, nenhum pertencia à classe da nobreza tradicional de Bragança. Bento de Morais Castro era fidalgo-cavaleiro, sim, mas de fresca data. E era também o único licenciado da lista, que incluía 5 militares, (5) 2 sapateiros, 2 ferradores, 1 pintor e 1 escrivão do fisco. Isto reforça a ideia de que havia em Bragança e na região muita falta de familiares para prender e levar os prisioneiros a Coimbra e que era necessário recrutar familiares “de segunda condição”, como dizia o comissário. Tanto quanto mostram as informações fornecidas pelos ANTT, apenas um deles conseguiu então ser aprovado e ascender ao cargo de familiar do santo ofício: o sapateiro António Mendes de Madureira. Outro, o capitão António Malheiro da Cunha só mais tarde o conseguiu, ocupando já o posto de sargento-mor em Chaves. Vamos então olhar para o processo de candidatura de António Mendes Madureira a familiar. (6) Gonçalo Mendes se chamou seu pai. Era natural e morador em Ancede, Baião, “assistente em casa de Manuel Campelo da Cunha”. Assistente é forma suave de dizer: “criado de servir”. E seria um criado muito especial e para todo o serviço já que, a pedido do patrão, ele até matou um homem. E então, para não ser preso e julgado, fugiu para Bragança. Era o tempo da Guerra da Restauração e Bragança uma cidade completamente militarizada. Assim, foi fácil a Gonçalo alistar-se como soldado, na companhia do capitão António Figueiredo Sarmento. Na mesma companhia, militava também o soldado Domingos Pires, que tinha uma filha chamada Maria Pires Asifontes. Tudo gente pobre e humilde. A mulher de Domingos era lavadeira e a filha “vivia de fazer meias”. E foi com esta que Gonçalo Mendes veio a casar, em 5.2.1674. Para o casamento, Asifontes ia grávida e logo depois lhe nasceu um filho, que foi batizado com o nome de António Mendes de Madureira, sendo padrinho o capitão António Figueiredo Sarmento. António Mendes Madureira tinha 32 anos quando se candidatou ao cargo de familiar do santo ofício, em Fevereiro de 1707, “inculcado” pelo comissário Bartolomeu. E estava casado, há dois anos, com Joana Maria, filha de outro soldado da companhia do capitão Figueiredo Sarmento. Passaram dois anos e… de Coimbra, não vinha resposta. Madureira resolveu então “meter uma cunha” a um José da Silveira, que era compadre do notário da inquisição, o licenciado, padre Manuel Soares de Carvalho, escrevendo-lhe uma carta. A missiva apenas interessa por mostrar que a letra e escrita gramatical do Madureira era rudimentar e patenteia o quanto ele se humilhava para conseguir o favor. Veja-se: - Meu senhor José da Silveira que V. Mercê por sua boa saúde sabereis estimar, da minha pode V. Mercê dispor o que for de mais seu gosto, em muitas ocasiões ao que não faltarei como devo. Meu senhor confiando em Deus me parece que o senhor seu compadre o licenciado Manuel Soares de Carvalho estava com melhora e que lhe peço a V. Mercê me faça favor de lhe encomendar as minhas diligências que não esqueçam pelo amor de Deus (…) E pondo-me V. Mercê aos pés do senhor meirinho da santa casa, que lhe não escrevo, por não lhe saber o nome e V. mercê me faça este favor de me aplicar este negócio… Não sabemos se a carta surtiu efeito. Caso é que foi anexada ao processo de habilitação e logo depois foram dadas ordens ao comissário da inquisição de Fontelas, concelho de S. Marta de Penaguião para investigar em Ancede as origens e limpeza de sangue de António Madureira; ao comissário António Gomes do Vale, abade de Mofreita, Vinhais, para investigar na região as raízes cristãs das Asifontes e ao comissário António Pais Teixeira, natural e morador em Pinhel, para averiguar da limpeza de sangue dos avós maternos de Joana Maria, naturais e moradores em Pena Verde, concelho de Aguiar da Beira. Não vamos seguir os interrogatórios das testemunhas, uma dezena em cada uma das seguintes localidades, onde viveram os ascendentes de Madureira e da mulher: Ancede, Nozedo, Mofreita, Bragança, Parada e Pena Verde. Também não sabemos que dinheiro pagaria o candidato, ou alguém por ele, que era pobre, pagaria por estas diligências. Apenas como exemplo, veja-se a fatura do comissário Gomes do Vale: Ao comissário – 7 200 réis; ao escrivão – 4 811 réis; das notificações – 600 réis. Total – 12 611. (7) Vejamos as inquirições, começando por Ancede onde, as testemunhas confirmaram a identidade da família, informando que o avô paterno era serrador e faleceu vindo de uma serragem. Todos atestaram o assassínio e fuga do pai para Bragança. Em Nozedo/Vinhais, provou- -se que o avô materno era jornaleiro e foi solteiro para Bragança onde se fez soldado. Para além disso, ganhou a alcunha de “asiouco” quando casou. Sobre Maria Asifontes, provou-se que era “moça de servir” antes de casar e depois fazia serviço de “lavadeira”. Da naturalidade, nada se apurou, desconfiando nós que trouxe o sobrenome agarrado às origens: Asifontes uma localidade espanhola. Quanto à filha, Maria Pires Asifontes, mãe do pretendente “vivia de fazer meias”. Igualmente pobres e humildes eram os familiares de Joana Maria, mulher de António Mendes Madureira. A avó paterna era “lavadeira” e havia fama de andar amancebada com um cristão-novo, antes de casar, dele tendo um filho. O mais “elevado” dos seus familiares seria o avô materno, com a profissão de carpinteiro, na aldeia de Parada. Como se vê, exigindo o Regimento um “viver à lei da nobreza”, nada, na ascendência de António Mendes de Madureira, favorecia a sua nomeação para familiar. Exigia também o Regimento que os familiares fossem “abonados de bens”. Neste caso, verifica- -se que apenas tinha uma pequena casa, que valeria 30 mil réis, uma ninharia! Importava, finalmente, a posição social do pretendente. Também aqui, nada de favorável: a profissão de António Madureira era a de sapateiro. Mas, se tudo apontava para uma recusada, a verdade é que António Mendes Madureira foi admitido como familiar do santo ofício. Vejamos o argumento usado pelos inquisidores, na apreciação final: - Não lhe prejudica ser de poucos cabedais e de segunda condição, por ser inculcado pelo comissário para servir ao santo ofício. (8) E menos prejudicava o facto de ser filho de um assassino. Para o santo ofício era bem pior ter um quarto ou quinto avô, com ¼ ou 1/8 de judeu, do que ser filho de um assassino! Com a carta de familiar, António Madureira rapidamente ascendeu na escala social de Bragança, logo sendo nomeado tesoureiro do fisco real nesta cidade, confiando-se-lhe quantias inimagináveis, de contos de réis, para quem, pouco antes, não tinha mais uma miserável casa de 30 mil réis. Mas disso trataremos em próxima oportunidade, em trabalho que estamos ultimando, baseado no “Livro de Receita dos Depositários Gonçalo Pires, Miguel Rodrigues e António Mendes Madureira – Agentes em Bragança”. E também passou a “viver à lei da nobreza” e em nobreza viveram e casaram os seus descendentes. Seria o caso da filha, D. Francisca Doroteia de Madureira, mãe de Manuel António Madureira Cirne, abade de Carrazedo, licenciado em cânones, protonotário apostólico vigário capitular da diocese de Bragança, a quem foi concedido brasão de armas em 29.5.1782, registado no Cartório da Nobreza, livro 3º fl. 54. (9) Voltando à habilitação de Madureira, diremos que nela ficaram registadas as certidões de nascimento e casamento do habilitando e seus ascendentes. Exceto dos que nasceram ou casaram em Nozedo “porquanto os livros que havia na igreja do dito lugar se queimaram na entrada que o inimigo fez no dito lugar e o queimou no tempo das guerras passadas”, conforme certificou o comissário Vale.

“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais Os familiares devem “viver à lei da nobreza”.

Minguando em Bragança familiares do santo ofício para executar as prisões, os inquisidores escreveram ao comissário Bartolomeu Gomes da Cruz que indicasse possíveis candidatos. Em resposta, o comissário fez um retrato bem estranho da situação: por um lado, os familiares que há, escusam-se a fazer prisões e a conduzir levas a Coimbra. Por outro, face à penúria de familiares, olhando para a sua lista de potenciais candidatos, verificamos que nenhum deles parece “viver à lei da nobreza”. Vejamos então a resposta do comissário: - Nomeei sujeitos assim nesta cidade como nos arredores capazes de serem familiares. E que não ocupe nelas ao familiar Francisco Perestrelo de Morais, já eu tinha essa intenção (…) porque, além de não querer ir nestas últimas prisões, me tirou a fala e começou a publicar que era seu inimigo, por o mandar com a leva, sendo que não tinha causa alguma de não ir, sem embargo de se querer valer de uns acidentes que há anos lhe davam; e não faltou quem lhe passasse certidão; e assim este, como os demais da cidade, estão aliviados das levas, por causa de seus achaques e ocupações… Vai o rol dos que me parecem capazes de serem familiares e de segunda condição; não meto Chacim, aonde se necessita muito haver um ou dois familiares, por V. Senhorias me ordenarem, haverá 6 anos, nomeasse dois e eu o fiz em Domingos Gonçalves Peredo e António da Fonseca Padamarro e antes que os nomeasse, tinha informado em uma petição de Miguel Luís da Corredoura e até aqui não sei que tenha saído nenhum dos sobreditos. Também em Vinhais se necessitava haver um familiar, por só haver um e o que há é governador da dita praça e já velho. Um Francisco Rodrigues Pereira queria ser, e tinha já mandado depositar há 2 anos e não sei se está já corrente ou não. Queixam-se os que vão com as levas que as estalagens estão muito caras e lhe não chega o ordenado que se lhe dá para a sua passagem, e por isso muitos recusam a jornada. Em Rebordelo, tenho mandado pôr uma ou duas pessoas capazes de serem familiares. (1) Recebida a carta, os inquisidores escreveram de novo ao comissário, dizendo que ele devia nomear os mais capazes e dizer- -lhe que requeressem a nomeação para familiares. Vejamos a resposta do comissário e as pinceladas que acrescentou ao quadro negro da falta de familiares na região: - Na forma da carta acima de Vs Ss, avisei aquelas pessoas que me pareciam capazes de serem familiares, que, se fizessem petições, poderiam ser admitidos, os quais mas trouxeram e são as que remeto. Vai a petição de António de Salselas, que teve um cunhado familiar e fica distante uma légua de Chacim, para poder fazer as diligências que houver na dita vila, visto nela não haver familiar algum e duas pessoas que há lá capazes de serem, terem há já tempos feito petições. Vai também outra de Mirandela, que também não há por aquelas partes, familiares… (2) Atente-se no desabafo do comissário: - Assim este (Francisco Perestrelo) como os demais da cidade, estão aliviados das levas… Queria ele dizer que não contava com os familiares existentes (os tais que “viviam à lei da nobreza”) para as levas dos presos. Compreende-se, assim, que, no rol de possíveis familiares que enviou, não conste nenhum homem da nobreza, sendo todos de “segunda condição”. Vejamos o caso de Chacim, onde não existia qualquer familiar e onde a inquisição estava então particularmente ativa, lançando vagas sucessivas de prisões. Uma dessas vagas foi em 3.4.1697, com a prisão de “22 judeus”. Esta operação foi planeada e conduzida de modo muito estranho. (3) O normal seria que os inquisidores enviassem os mandatos de prisão ao comissário de Chacim, Manuel Gouveia de Vasconcelos, que chamaria os familiares do santo ofício e as autoridades civis e militares que entendesse necessárias para o bom desempenho da ação. A tarefa, porém, foi entregue ao comissário Bartolomeu Gomes da Cruz, abade de S. Maria, em Bragança, sem qualquer informação a Manuel Gouveia. De Bragança, o comissário fez-se acompanhar de uma força militar, chefiada pelo comandante das tropas de Trás-os- -Montes, general Sebastião da Veiga Cabral. E veio também de Bragança o familiar da inquisição Manuel Cardoso de Matos, com um grupo de quadrilheiros assalariados para a leva dos presos a Coimbra. De entre os “caçadores de judeus” que participaram nesta operação, o mais ativo era o boticário, grande proprietário rural e homem da nobreza Pedro Ferreira de Sá Sarmento, então morador em Chacim e que depois encontraremos a viver em Bragança, na vida militar. Tão ativo que mereceu dos inquisidores de Coimbra o seguinte louvor, transmitido por carta enviada ao comissário Manuel Gouveia: - O comissário Bartolomeu Gomes da Cruz e o general Sebastião da Veiga Cabral (…) nos deram notícia do cuidado com que Pedro Ferreira de Sá, morador nessa vila, obrou nas mesmas com muito zelo. Vossa Mercê, da nossa parte, lhe fará presente o nosso agradecimento. (4) Embora os documentos o não citem, certamente que nestas prisões também andou metido Domingos Gonçalves Peredo, natural de Bragança, morador em Chacim, casado com Ana Lopes, o qual, em Março de 1706 escrevia para Conselho Geral da Inquisição dizendo: - Ele fez petição para ser familiar do santo ofício, haverá 4 para 5 anos (…) servindo ao santo ofício com toda a satisfação há 10 para 12 anos, como constará no tribunal de Coimbra, onde tem levado 4 levas de presos… (5) Na verdade ele terá comandado 4 levas de prisioneiros de Chacim, a primeira pelo ano de 1697, assim desempenhando tarefas próprias dos familiares do santo ofício. Aliás, na informação que o comissário Manuel Matos Botelho deu sobre a sua pretensão, depois de informar que era cristão-velho, de sangue limpo e puro, conclui, dizendo: - O dito Domingos Gonçalves Peredo é tido por familiar do santo ofício, em razão de o haver visto muitas vezes trazer presos dos lugares de fora desta cidade. (6) Como se vê, já era “tido por familiar da inquisição” e fazia serviço próprio dos familiares. Para além disso e das boas informações dadas pelos comissários Bartolomeu Gomes e Manuel Botelho, deve dizer-se que Domingos Gonçalves tinha um filho padre, habilitado pelo bispo de Miranda por limpo e puro de sangue, sem qualquer gota da infeta nação. Apesar disso, os inquisidores recusaram provê-lo no lugar de familiar da inquisição. António Fernandes da Fonseca se chamava outro dos homens apontados pelo comissário de Bragança para ser nomeado familiar do santo ofício, como atrás se viu. Apontado por duas vezes pelo comissário, apresentou o seu requerimento, com a seguinte justificação: - O suplicante deseja servir o santo ofício na ocupação de familiar, pelo não haver na dita vila, aonde o tem sempre ocupado nas prisões que se têm feito. (7) Tal como Domingos Peredo, António Fonseca desde há muitos anos que desempenhava as funções de familiar, executando prisões e conduzindo levas para Coimbra. Só não gozava das regalias inerentes ao cargo. Não apresentando título de nobreza e fidalguia, tinha, no entanto, bons pergaminhos familiares. Seu avô paterno era licenciado, “o mais rico da terra, assim de fazenda como de dinheiro” e Capitão da companhia de ordenanças do concelho. Também ele se empenhou na execução de tarefas próprias dos familiares da inquisição, quando a vila de Chacim foi tomada pela primeira vaga de prisões, em 1641. E também ele, apresentou a sua candidatura ao mesmo cargo, argumentando: - Na vila de Chacim vive muita gente da nação e no lugar de Sambade, dali a 2 léguas e em Quintela de Lampaças, que são outras 2, e em Izeda, que são 3, e na vila de Mirandela, que são 4 e em Vila Flor, que são 5; em todas estas partes, nem junto a elas há familiar e ele suplicante, de 9 prisões que se têm feito na vila de Chacim de há um ano a esta parte, fez 6 e nas demais deu ao vigário-geral da Torre toda a força, favor e ajuda que para elas foi necessário. (8) O licenciado Arruda Pacheco veria chumbada a sua pretensão, pelo facto de ser casado com Joana Teixeira, filha de Francisco do Sil (9) e Catarina Cardosa, e “havia um rumorinho” de que tinha algum sangue judeu. Até o comissário que tratou das diligências de habilitação, o Dr. Paulo Castelino de Freitas, vigário-geral da comarca de Torre de Moncorvo, ficou desolado com este “rumorinho”, escrevendo no relatório: - É pena sentir o que se descobriu da geração da mulher, porque no lugar onde ele vive só a ele, seguramente, se podia encomendar qualquer diligência do santo ofício. Este problema, porém, não afetava a candidatura de António Fernandes Fonseca, dado que a sua mãe nascera fora do casamento. Clara da Fonseca, sua mãe, era filha do licenciado Arruda e de uma moça solteira, cristã-velha, chamada Catarina Pires. Tudo parecia correr bem na diligência de habilitação de António Fonseca quando rebentou a bomba do “diz que disse” que a sua mãe, Clara Fonseca, não era filha do licenciado Arruda Pacheco mas de um cristão-novo, o Redondo, (10) de alcunha! Esta infâmia, porém, verdadeira ou falsa, foi lavada anos depois, quando um sobrinho de António Fernandes Fonseca, seu homónimo, obteve carta de familiar do santo ofício, em 6.11.1753.

“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais Faltam familiares para as levas dos presos.

Os familiares do santo ofício serão pessoas de bom procedimento e de confiança e capacidade reconhecida. Terão fazenda de que possam viver abastadamente.  Assim estatuía o Regimento que lhes impunha a obrigação de cumprir escrupulosamente as ordens dos inquisidores ou dos comissários da sua região. De qualquer caso conhecido, atinente à defesa da fé, eles deveriam avisar o comissário ou escrever para a inquisição. Os familiares tinham direito a usar hábito e colar próprio, mas apenas o usariam no dia de S. Pedro Mártir, quando participarem nos autos-da-fé e quando “forem prender alguma pessoa ou a trouxerem presa para os cárceres”. Ser familiar da inquisição era coisa de muito prestígio e procurada por gente da maior nobreza, condes e duques, incluídos. Aliás, eles deviam “viver à lei da nobreza” e as próprias Cortes chegariam a ser dominadas por familiares da inquisição, como foi o caso das que reuniram em Lisboa em 1668, para retirar o trono a D. Afonso VI e entregá-lo a seu irmão D. Pedro II. Na prática e, falando uma linguagem menos técnica, diremos que os familiares da inquisição eram uma espécie de criados a quem os comissários mandavam fazer as prisões e conduzir os presos para as cadeias da inquisição. E eram também os “polícias”, que tinham o dever de espreitar os comportamentos das pessoas e denunciar os crimes contra a fé. De qualquer modo, podemos dizer que os familiares constituíam o braço civil, ou, no dizer de Borges Coelho, “a milícia da inquisição”. Por outro lado, tinham muitos privilégios e garantias, como o de não pagarem impostos nem multas e nem sequer serem julgados em ações criminais pelos juízes das terras mas pelos inquisidores, salvo em crimes de lesa-majestade e outros bem especificados.Para ser familiar da inquisição era necessário organizar um delicado processo, que começava pelo requerimento do pretendente que logo tinha de fazer um depósito monetário de 12 000 réis. De seguida os inquisidores mandavam a um ou mais comissários da região fazer investigações particulares sobre a limpeza de sangue, a categoria social, os recursos económicos e financeiros e as capacidades intelectuais e de carácter do candidato. Caso as informações fossem positivas, ordenava-se uma investigação judicial, nomeando-se um comissário que escolheria um escrivão e ambos iriam ouvir cerca de 10 testemunhas que melhor conheciam o candidato, os seus pais, os avós paternos e maternos. Por vezes, o comissário tinha de se deslocar a várias terras e ouvir dezenas de testemunhas, de acordo com o nascimento e morada do candidato e de cada um dos seus ascendentes. Obviamente que tudo isso custava dinheiro, muito dinheiro, que a “jorna” do comissário e do escrivão era umas 4 vezes maior que a de um trabalhador normal. Por vezes as investigações prolongavam-se por anos e dezenas de anos, com recursos e mais diligências e mais despesas do pretendente.  Outras vezes terminavam logo, bastando uma ou duas testemunhas dizer que havia rumores de um dos ascendentes ser tido por hebreu, de raça. Requerer a admissão como familiar e não ser aceite era uma infâmia, era como lançar lama não apenas sobre o candidato, mas sobre toda a sua família, pois ficava a ser tida como infetada pelo sangue judeu. Por vezes uma família da nobreza estendia-se por muitas terras e a fama judaica ficava cobrindo a todos. Olhemos agora a inserção dos Familiares da inquisição na paisagem social da cidade de Bragança, na época que estamos estudando, ou seja, nas primeiras décadas do século XVIII. Cidade extremamente militarizada, logicamente que a inquisição gostava sobremodo de recrutar os seus familiares entre as chefias militares. Aliás, os chefes militares eram, em geral, homens da nobreza. De certo modo, pode até afirmar-se que a Nobreza de uma família se media pela patente militar dos seus membros e pelos familiares da inquisição que ostentava como ramalhete. Naqueles anos, de 1700 a 1714, desenrolou-se a chamada Guerra da Sucessão de Espanha, com Portugal a alinhar ao lado da Inglaterra, Áustria, Holanda, enquanto a Espanha era apoiada pela França. Em Trás-os-Montes aconteceram várias incursões das tropas castelhanas, com a tomada da praça de Miranda do Douro e o saque nas localidades de entre Douro e Sabor, particularmente a Torre de Moncorvo.  Saqueadas foram também muitas aldeias dos termos de Vinhais, Chaves e Bragança, chegando os invasores às proximidades desta última cidade.  Obviamente que, estando os chefes militares que eram familiares da inquisição empenhados na guerra, sentia-se em Bragança uma enorme falta de familiares para espiar e prender os judeus e conduzir as levas de prisioneiros para as cadeias de Coimbra. E logo naqueles anos em que se assistiu a uma grande vaga de prisões! E essa falta não era apenas em Bragança, mas por todo o Nordeste Trasmontano, de Vinhais a Chacim, Vimioso, Mirandela, Vila Flor, Miranda do Douro… Não faltam documentos de prova, como o requerimento de Domingos Pires Malheiro, dizendo: - Ele suplicante deseja servir o santo ofício na ocupação de familiar porque na dita cidade e seus arredores há muito poucos familiares e os que há estão impedidos com alguns postos de guerra.  Com vista a colmatar essa falta, os inquisidores de Coimbra escreviam ao comissário Bartolomeu Gomes da Cruz, abade da igreja de Santa Maria, pedindo-lhe que indicasse candidatos a familiares. Veja-se uma dessas cartas, datada de 16.2.1707: - Suposta a falta de familiares que há nessa cidade e arredores para efeito das diligências do santo ofício se fazerem como convém, nomeie V. Mercê alguns sujeitos capazes de servirem o santo ofício na ocupação de familiares e que possam vir com os presos quando houver ocasião e para isso forem mandados; e para este ministério fica escuso o familiar Francisco Perestrelo de Morais. Assim o tenha V. M. entendido e nos avise acerca dos sujeitos capazes a familiares, se os houver.Antes de vermos a lista enviada pelo comissário Bartolomeu Gomes da Cruz, analisemos aquela referência ao familiar Francisco Perestrelo de Morais. Este é exemplo perfeito de um homem da nobreza que se faz familiar da inquisição, apenas por uma questão de prestígio. Importante era ostentar o hábito de familiar e gozar das regalias inerentes ao cargo. Fazer prisões, conduzir levas de presos a Coimbra era coisa que em Bragança só trazia problemas. Por isso procurou e conseguiu esquivar-se a cumprir essas tarefas do seu ofício. Aliás, na sua família abundaram os homens da inquisição. Para além de seu irmão, Miguel Ferreira Perestrelo, que era comissário, e dele próprio, contaram-se mais 5 familiares, a saber: Estêvão Perestrelo, seu avô paterno. António Mendes Dantas, marido de sua tia paterna, Maria Perestrelo, juiz dos órfãos em Bragança, justificando-se a sua candidatura por falecimento do sogro, “do qual está vago o lugar de familiar em Bragança”. Vasco Pegado Borralho, casado com sua tia materna, Maria de Morais, morador em Alfândega da Fé, onde tinha o cargo de capitão-mor. Baltasar Morais Sarmento, marido de sua tia materna, Francisca Ozores. António Pimentel de Morais, seu cunhado, marido de sua irmã Isabel Ferreira da Cunha, aliás, Mónica da Cunha Ozores Albuquerque, morador na vila de Algoso, filho do alcaide-mor da mesma vila e sobrinho do inquisidor Manuel Pimentel de Sousa. Era, na verdade, um grande ramalhete de familiares da inquisição que a família Perestrelo apresentava. Mas em Bragança havia outras famílias igualmente nobres e que apresentavam ramalhetes semelhantes de familiares, que também procuravam esquivar-se ao cumprimento das tarefas menos agradáveis do ofício que deviam desempenhar. Acrescentando esta realidade ao estado de guerra, como atrás se disse, fica mais clara a necessidade que havia de familiares do santo ofício. 

“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Prender judeus parece caça de coelhos

Ser Tabelião do público, judicial e notas, era, em tempos de outrora, emprego de muita importância e responsabilidade, concedido por mercê d´el-Rei. Ainda de maior responsabilidade, importância e proveito era o cargo de Correio. Pois, na cidade de Bragança, pelos anos de 1700, Francisco Correia acumulava estes dois empregos. E ainda um terceiro, menos remunerado e de menor visibilidade, mas para o qual se exigia muita confiança e seriedade – o de escrivão do Fisco. Competia-lhe fazer o registo de todos os bens, móveis e imóveis sequestrados às pessoas, nos respetivos termos, que eram mandadas prender pela inquisição. Para além desses empregos, Francisco Correia tinha uma fazenda avaliada em 4 mil cruzados. Homem de elevado estatuto social, por todos considerado cristão-velho, quis ascender ao reduzido círculo dos Familiares da inquisição que, na área do concelho de Bragança, o decreto regimental publicado em 1693,  limitava a 8 titulares. Não o atingiu, porque não conseguiu provar que Maria da Rocha, sua avó materna, era cristã-velha. Sabia-se apenas que era filha de uma mulher que tinha vindo da Galiza para Soeira, Bragança, dizendo alguns que esta viera como criada de servir e o patrão, Francisco da Rocha, lhe arranjara a tal filha, que casou com Francisco Vilela, do Porto, fixando o casal a morada em Soeira.  A acrescentar suspeitas, apareceram testemunhas a dizer que ele era parente de Maria Teixeira,  que morava na Rua Direita de Bragança e foi presa pela inquisição, bem como o seu filho, José Correia. Vejamos agora como devia proceder-se ao sequestro dos bens, socorrendo-nos do Professor António Borges Coelho que escreve: - Ao recado por escrito dos inquisidores, anunciando que se vai proceder à prisão de fulano com sequestro de bens, o juiz e escrivão do Fisco comparecerão “com muita diligência” chamando à sua mão “todas as chaves das tais casas, e das arcas e escritórios” para que se não possa sonegar nem esconder cousa alguma. Estará presente, além do escrivão e do juiz do Fisco, um outro escrivão ou tabelião, para dar fé do inventário.  Resulta, assim, que a presença de Francisco Correia era indispensável quando em Bragança se prendiam os “hereges” com sequestro de bens, para fazer o registo de tudo, incluindo os que o juiz do Fisco mandava vender em “pública almoeda”. A propósito destes leilões de bens sequestrados (nomeadamente os bens perecíveis, como o pão, o vinho e outros géneros alimentícios), deve dizer-se que, em 5.2.1622, o inquisidor-geral Fernão Martins Mascarenhas concedeu autorização aos próprios funcionários e agentes da inquisição para neles licitar. Está-se mesmo a ver… como os homens do santo ofício e os seus amigos devoravam os bens dos presos. Por outro lado, os que eram presos, ou desconfiavam que o poderiam ser, procuravam maneira de os esconder, ou, em conluio com parentes e amigos, dizer que determinados bens eram destes e não deles e combinar dívidas e créditos, que lhe devolveriam mais tarde, ou entregariam a seus familiares. Todos os meios que a imaginação permite utilizariam para salvar o máximo de seus bens. Por seu turno, as prisões eram efetuadas com todo o segredo, muitas vezes ao domingo, à saída da missa, de modo a evitar que os réus fugissem ou oferecessem resistência. Sim, que às vezes resistiam, como aconteceu com João Oliveira, de Carção, que lutou e esfaqueou com uma navalha o padre que o ia prender, armado com uma catana, quando aquele vinha por um caminho com uma carga de folha de amoreira.  Ainda sobre prisões e sequestro de bens, será oportuno transcrever das “Notícias Recônditas” o seguinte excerto: - Na mesma hora que o prendem, lhe poem na rua sua mulher e filhos. Atravessam-lhe as portas. Fazem inventário de todos os bens. E como se a mulher não tivera parte neles, fica despojada de tudo, sem nenhum remédio. E quando são marido e mulher ambos presos, ficam os filhos em tal desamparo que, em muitas ocasiões, meninos e meninas de 3 e 4 anos se escondem nos alpendres das igrejas e nos fornos (…) pedindo pelas portas. Situemo-nos agora em Bragança, no ano de 1713, ano que começou com mais uma vaga de prisões, logo no mês de Janeiro. Com efeito, foram então presas umas duas dezenas de pessoas, acusadas de judaísmo, entre elas, Miguel da Silva, um homem “riquíssimo de mais de 15 mil cruzados”. Não sabemos quanto rendeu a “caça” (o termo é de Francisco Correia) para o Fisco e que bens terão sido leiloados em “pública almoeda”. Muito poucos e bem pouco renderiam, a crer nas queixas daquele escrivão do Fisco. A razão é que, em Bragança, naquela época, porque não havia segredo, antes se anunciava as prisões, com “4 badaladas”. Depois, as prisões eram feitas pelo comandante militar, que era de fora e não conhecia as pessoas e ia com os soldados pelas ruas, perguntando por fulano e sicrano. Efetuadas as prisões, cada soldado procurava abotoar-se ao que podia, se bem que, entretanto, na generalidade dos casos, as casas fossem “limpas” de bens móveis pelo próprio e seus familiares e amigos, como já se disse. De tudo isto, melhor que nós, deu conta aos inquisidores de Coimbra o escrivão Francisco Correia, em carta de 3.7.1713. É um documento interessantíssimo, revelador do ambiente que rodeava as prisões, em nome da inquisição. Vejam: - Muitas vezes tenho dobrado papel para fazer a V. Senhorias esta queixa e nunca me resolvi a fazê-la, com os receios de que fosse menos aceite. A causa é que, como sou escrivão das execuções do fisco e juntamente pretender, há muitos anos, para ser familiar, entendi sempre ser menos querido de V. Senhorias. Mas como vejo as prisões serem feitas cada vez pior, com tão má forma e disposição que os bens dos presos os furtam ou lhe ficam outra vez em casa, por isso me decidi fazer este aviso, levado do zelo do santo ofício e dos bens do fisco. (…) E peço a V. Senhorias segredo, que isto bate com um pároco e com um general de armas, que me podem deter desgraças no sertão da terra; porém pode haver outros meios e caminhos para tudo se segurar. Este comissário, assim que vem ordens desse santo tribunal para prender, as entrega ao general das armas para que as dê execução, e é certo que cada um deles quer acertar, porém como este fidalgo não conhece a gente da terra, se fia em cabos, maiores e menores, de maneira que para prenderem Fulano, vão 3 ou 4 e vão a diversas ruas, perguntando por Fulano. E para este efeito, para avisar-se para as prisões, dão 4 badaladas em um sino, aviso total para o judaísmo se levantar da cama e se pôr em fugida. Este é o desacerto para as prisões e outros muitos que, por não ser molesto, não relato. Só digo que, no dia de qualquer prisão, parece caça de coelhos. E por esta causa, os soldados furtam os bens, e outras muitas pessoas e talvez os mesmos de casa, como foi a prisão feita a António Mendes, sapateiro, que foi preso em 6 de Junho passado, e 4 horas depois de preso, se deu parte á justiça, tempo que, quando eu entrei em casa, não havia outra coisa nela senão 1370 (réis) de inventário, tendo ele feito 100 000 3 dias antes, em coiros bezerros e sapataria. Um homem com tanto trato e cabedal, se não lhe achou mais, e desta sorte se têm sumido os bens dos outros presos, (…) e a que teve maior descaminho foi o de Miguel da Silva, que sendo riquíssimo, de mais de 15 mil cruzados, se lhe não sequestraram 100 mil réis. E a causa foi que lhe deram assalto em casa para o prender, e como não o achassem, o foram prender 5 léguas desta cidade, e entretanto os de casa a limparam. E ultimamente nem um preso tem ido sem haver roubo na casa em seus bens, ou seja feito pelos da casa ou pelos guardas militares que se lhe põem, de que se tem tirado devassas, mas com isso o fisco perde o seu e as prisões vão como vão. Esta mesma presa que leva o portador desta, romperam a parede da casa para lhe furtar vinte e tantas formas de fazer sapatos que se acharam em outra casa, já vendidas. O mesmo que foi nesta e em todas as mais. E por isso, seus sequestros não chegam para os alimentos e fica o santo ofício leso e o fisco grandemente prejudicado. V. Senhoria porá remédio nisto como melhor lhe parecer que, se não fora em mim os muitos anos que tenho de idade, havia de ser eu o portador deste aviso e não havia de ser por papel, a respeito do segredo… 

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: Gaspar Cardoso Monteiro

Voltemos ao patriarca António Ledesma e à sua segunda mulher, Maria Ferreira de Carvalho. É que, para além dos filhos que em Bragança viveram e usaram o sobrenome Ledesma, de que falamos, tiveram um outro filho que deu origem ao ramo familiar dos Monteiro Cardoso que viveram no Porto e se passaram a Lisboa, de onde fugiram para Londres. Vamos ver. João António Monteiro se chamou aquele filho de António Ledesma e Maria Ferreira Carvalho. Nascido no Porto, ali se criou, tornando-se um homem de negócio. Casou com Brites Ana, nascida no Porto, no seio de uma importante família originária de Torre de Moncorvo, que vamos apresentar. Gaspar Rodrigues e Ana Rodrigues, terão casado em Torre de Moncorvo, pelos anos de 1640. Tiveram uma filha que batizaram com o nome de Isabel Cardoso e que casou com Francisco Lopes, de Chacim. Na sequência de uma vaga de prisões da inquisição que assolou Moncorvo, o casal internou-se por Castela. Regressaram a Portugal, fixando residência em Freixo de Numão de onde passaram ao Porto, terra onde nasceu Brites Ana. Leonor Pereira foi outra filha de Gaspar e Ana Rodrigues, a qual foi casar em Almendra, terra de Ribacôa, com António Rodrigues Cardoso. Um filho deste casal chamou-se Luís Cardoso Pereira, (1) que, por 1685, casou com uma irmã de Brites Ana, chamada Isabel Cardoso, como a sua mãe, nascida em Málaga, por 1665. Josefa Micaela, uma filha de Luís Pereira e Isabel Cardoso, casaria com um filho de João Monteiro e Brites Ana, chamado Gaspar Cardoso Monteiro, que vamos acompanhar. Nascido na Invicta cidade, por 1695, Gaspar tornou-se mercador de feiras, ou mercador ambulante, comprando e vendendo o que lhe aparecia e que pudesse dar lucro, coisas tão diversas como: resmas de papel (fino e de embrulhar), fitas de cadarço, pentes de tabanica, tesouras com suas bainhas, meadas de retrós… Mas não hesitava em receber de uma freira um anel em penhora de 970 réis ou comprar uma carga de tecidos para vender em tenda sua, montada em qualquer feira. Sim, também se apresentava como profissional tendeiro e como homem que vivia de sua agência, ou de seu expediente. Repare-se que, na própria ordem de prisão, os inquisidores escreveram: - Gaspar, casado, que vendia algum dia fitas em caixas pelos conventos das freiras na cidade do Porto. (2) Era solteiro ainda, quando os pais se mudaram do Porto para Lisboa e o levaram a ele e aos irmãos. Mudança semelhante aconteceu com a família de Luís Cardoso Pereira e Isabel Cardoso, os sogros de Gaspar. De modo que o casamento deste com Josefa Micaela se realizou já em Lisboa. Para o casamento, Josefa levaria um dote de 150 mil réis que ficou de pagar um Fulano Miranda, médico, morador na Baía, que os devia ao pai da noiva, que no mesmo investiu, pagando-lhe o embarque e, possivelmente, mercadorias que levou para negociar no Brasil. Veja-se, a propósito como ele foi referenciado por Manuel Lopes, um judeu nascido em Torre de Moncorvo e circuncidado em Livorno, que o conheceu em Lisboa, por 1700: - Sinais de Luís Lopes Cardoso: alto, não muito gordo, seco, de cara larga e moreno, barba não muito farta, com brancas, olhos negros, cabelo negro com brancas, crespo e comprido, de 65 anos. E ouviu dizer que havia sido tratante muito rico e então estava pobre, que havia perdido tudo numa embarcação. (3) Falando do sogro e explicando a questão do dote, Gaspar disse que aquele “foi homem de grande negócio na cidade do Porto, onde quebrou e veio para esta de Lisboa”, no outono de 1698. E foi certamente já em Lisboa que nasceu Josefa Micaela, filha de Luís e Isabel, mulher de Gaspar Cardoso Pereira. Situemo-nos agora em Lisboa, ao findar do mês de Julho de 1725, quando a inquisição de Lisboa prendeu Gaspar Cardoso Monteiro, “por encobrir hereges”. Na verdade, os hereges em referência seriam os seus irmãos, (4) Rafael Cardoso (5) e Gabriel Lopes, e respetivas consortes, Micaela dos Anjos e Grácia Caetana, bem como a sua mulher Josefa Micaela e familiares desta, que todos tinham fugido para a Inglaterra, levando os filhos pequeninos. Metido no cárcere, logo na primeira sessão, Gaspar começou a contar que aos 15/16 anos, fora doutrinado na lei mosaica, por uma Leonor Soares que vivia no Porto, a S. João Novo e que a partir daí vivera como judeu, fazendo as cerimónias possíveis. Repetiu duas orações que Leonor Soares lhe ensinara e que são as seguintes: I - Desde onde nasce o sol Até onde se vai Bendito e louvado seja O nome do Senhor. II - Da boca de todo o nado Seja o Senhor bendito e louvado Da boca de todo o vivo Seja o Senhor engrandecido. (6) De suas confissões, transcrevemos apenas um extrato que nos refere a celebração do Kipur de 1716, em ajuntamento familiar: - Haverá 9 anos, em Lisboa, em casa de João António Monteiro, seu pai, viúvo de sua mãe, Brites Ana, natural do Porto e morador em Lisboa, onde faleceu, se achou com ele e com Micaela dos Anjos, casada com Rafael Cardoso, seu irmão dele confitente, natural do lugar de Mouta Velha, de onde se ausentou, não sabe para que terra; e com António Monteiro, irmão inteiro da dita Micaela dos Anjos, médico, que também se ausentou; e com seu irmão Gabriel Lopes; e com Brites, solteira, irmã inteira de Micaela dos Anjos; e com Josefa Micaela, mulher dele confitente, moradora em Lisboa, de onde, com a dita Brites, se ausentou deste reino (…) e estando todos 7, juntos fizeram o Kipur. (7) Como já se disse, logo que se viu preso, Gaspar começou a confessar suas culpas. Isso não impediu que fosse submetido a tormento, no decorrer do qual “gritou que Nossa Senhora lhe acudisse”. Saiu penitenciado em cárcere e hábito, no auto-da-fé celebrado na igreja de S. Domingos em 13.10.1726. Saído da inquisição, “granjeando a sua vida em vender algum papel por conventos”, com a mulher, o filho e quase todos os parentes estabelecidos em Inglaterra, naturalmente que Gaspar Cardoso apenas buscaria uma oportunidade para fugir também para aquele reino. Encontrou-a em uma terça- -feira de Maio de 1727, quando um castelhano, morador em Lisboa, chamado João Alonso, contactado por judeus portugueses estabelecidos em Londres para fazer embarcar familiares seus, de Portugal para Inglaterra, a partir de Lisboa, o meteu num barco, no porto de Santarém, com destino a um navio inglês que esperava no mar, fora da barra do Tejo. Entre os fugitivos, seguia a mulher e uma filha de Francisco de Campos, originárias de Vila Nova de Fozcôa. Vejam o relato feito pela filha, Violante Campos: - Passado algum tempo, he deu o dito castelhano parte de que se preparassem porque tinham navio pronto para Inglaterra; e lhe entregaram o seu fato, que o dito João Alonso fez embarcar no dito navio e na terça-feira seguinte se meteram em um barco, para dele se passarem ao dito navio; porém, por estar o mar muito bravo, o não puderam abordar, sem embargo de que foram até fora da barra no dito barco e nele voltaram para a dita cidade no dia seguinte e o dito navio se foi, levando-lhe o dito fato. E declara que no dito barco iam também para embarcarem no dito navio várias pessoas (…) outro chamado Gaspar e outro cujo nome não se lembra, Brites Lopes… (8) O Gaspar referido por Violante era o nosso homem que, preso em 5 de Junho seguinte na inquisição de Lisboa, por “tentar fugir para Inglaterra”, inventou uma desculpa bem esfarrapada. Vejamos: - Disse que quando embarcou, se persuadiu que as ditas pessoas iam fazer alguma galhofa ou romaria; e neste conceito esteve até que, com as mesmas, chegou a Porto Brandão aonde, perguntando ao dito João Alonso que galhofa era aquela e para onde iam, o mesmo lhe disse que aquelas pessoas iam para uns parentes, sem lhe declarar para que parte; o que ouvindo ele declarante, se queixou (…) e desejou achar barco para voltar logo para esta cidade… (9) Claro que os inquisidores não acreditaram, observando-lhe que certamente iria para junto da mulher e do filho. Aí ele respondeu que não, que “à dita sua mulher lhe faltara fé no matrimónio e por a dita culpa e mau procedimento fora para o dito reino, fugindo dele declarante (…) e de nenhuma sorte havia de ir para a sua companhia”.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: Inácio Borges, a defesa impossível

Na década de 1740, os Borges apresentavam-se como uma típica família da “nação judaica” de Bragança: 4 dos 5 filhos de Pedro Borges e Maria Mendes viviam de fabricar sedas. O outro filho, António Mendes Borges, era advogado, tendo-se formado pela universidade de Coimbra. Na verdade esta seria a imagem compósita de uma família normal da “nação brigantina” da época. Na pátria lusa, com a Corte do Rei e o aparelho do Estado assentes no ouro que vinha do Brasil e com a gente da nobreza e do clero habituada ao luxo, os tecidos de seda tinham grande procura e os preços subiam, naturalmente. E Bragança era então a grande fábrica de sedas do país, fábrica essencialmente tida e governada pela gente da nação. Por seu turno, esta endinheirada gente da nação, procurava ascender socialmente. E nesse processo de ascensão social, o passo mais lógico era ter na família um filho médico ou advogado, por vezes um padre ou um casamento com alguém da nobreza. E também no campo da cultura se via a “gente da nação” de Bragança em nítida ascensão. Já não bastava ensinar os filhos a ler, escrever e contar. Grande parte deles, eram postos a estudar gramática, latim e filosofia no Colégio da Companhia de Jesus. Exemplo extraordinário desta vontade de promoção cultural seria dado por Jerónimo José Ramos, um judeu de Vinhais que se deslocou propositadamente a Bragança com o objetivo de assistir à representação de uma ópera, “que na festividade de Santo António se fez”. Tratar-se-á da ópera apresentada no verão de 1743, em casa do administrador do morgadio dos Figueiredo, na receção ao novo bispo da diocese de Miranda, D. Diogo Mourato e que tanto deu que falar?  Voltando aos Borges, diremos que os 4 irmãos homens foram presos pela inquisição de Coimbra, em 1747. Dois deles estavam casados na família Ledesma, que vimos tratando e, por isso, a inclusão neste trabalho: o já citado António Mendes Borges, advogado, que casou com Beatriz de Sória Montes, filha do Dr. Gabriel Rodrigues Ledesma, médico, enquanto o seu irmão Inácio Borges casou com Luísa Maria Brites, filha de João Rodrigues Franco e neta de Jerónima Ledesma.  Vamos olhar um pouco para o processo de Inácio, um processo verdadeiramente exemplar, tanto pelas informações que nos dá sobre a sociedade brigantina da época, como pelas notas que podemos tomar para análise dos métodos inquisitoriais e vivências dentro dos cárceres. Pelas 6 horas da manhã, passava o alcaide pelo corredor “a dar os bons dias” aos presos. Inácio levantava-se “em camisa”, ia junto à porta, enxaguava a boca com água, que lançava fora e voltava a deitar-se por mais uma hora. Então se levantava, vestia, lavava e punha o capote pelos ombros e o chapéu na cabeça. Dirigia-se para a porta do cárcere, pois daquele lado vinha a luz da manhã. Por 3 vezes levava o dedo polegar até à testa e descia até ao peito, “sem fazer cruz alguma”. Metia depois os braços pela grade, com “as palmas das mãos viradas para cima e com a cara levantada, olhando para fora, como que beijava a luz ou o sol” – conforme contou ao inquisidor Manuel Varejão de Távora um familiar do santo ofício, que foi colocado de vigia. Outro vigia disse que se punha “voltado para a luz, com os olhos postos no céu e as mãos fora da grade”, acrescentando que “abrindo as mãos, fazia o oferecimento para o ar”. Naturalmente que estes ritos foram descritos por pessoas que os inquisidores colocavam a vigiar por buracos, durante todo o dia, para ver se o preso fazia jejuns à maneira judaica, estando todo o dia sem comer nem beber, senão à noite e coisas que não eram de carne. Comprovaram que fez 3 desses jejuns, que ficaram descritos no processo, com todos os pormenores. Cumprida assim “a reza” da manhã, Inácio tirava o capote e o chapéu e matava o tempo passeando pelo cárcere ou deitando-se sobre a cama, até que lhe traziam o jantar (almoço), que ele recebia em uma palangana. Vinha carne e ele cortava- -a e deitava-a para o chão, a um canto da cela, que logo um gato aparecia e lhe dava sumiço. As couves, espremia-as e guardava-as para a ceia. Havia também uma talhada de melão, que, talvez por estar já muito maduro e se estava desfazendo, ele “a cheirou e a foi deitar nos vasos imundos”. Para a ceia tinha também melancia e uvas, que guardara. Não vamos descrever as enfadonhas rotinas do prisioneiro para cumprir as longas tardes. Ao escurecer, vinham trazer-lhe a luz, que ele recebia pela “ministra”, uma pequena abertura na grade da porta. Punha novamente o capote pelos ombros e o chapéu na cabeça e metia os braços pela grade, certamente em oração. Entretanto tocaram às Trindades “e ele não fez caso, nem tirou o chapéu da cabeça”. Depois, deitava água em um púcaro, enxaguava a boca por 3 vezes, lançando a água fora. Sentava-se no tanho e, “olhando para o jantar, com algum suspiro, com algum sofrimento”… lá ceava: pão, melancia, ou melão, e uvas - uma ceia bem frugal para um judeu encerrado numa cela da inquisição, que jejua para que o Deus do Céu o livre daquele tormento. Mas, um homem, por mais crente que seja, também desespera. E ocasiões havia em que Inácio se chegava à porta e metia a mão pela grade, “buscava a fechadura pelas juntas, querendo arrancá-la; e como não pôde, despiu a camisa dos ombros para baixo e metendo a cabeça juntamente com os braços pela parte por onde recebeu o jantar, fez diligência para ver se saía o corpo”. Claro que a “ministra” não foi feita para deixar os presos fugir da cadeia. E, em desespero de não poder sair, Inácio punha-se aos “empuxões” à porta. Deve dizer-se que todas estas ações e comportamentos descritos se desenrolaram na inquisição de Lisboa para onde Inácio foi transferido de Coimbra, em Março de 1749, ao cabo de 2 anos de prisão em que negou todas as acusações e se defendeu dizendo que “a acusação nasceu mais do ódio e vingança, que do zelo da justiça, porquanto foi uma maleada que se armou contra ele”. Para além do mais, as contraditas que apresentou constituem um verdadeiro retrato do quotidiano da cidade de Bragança. Transferido para Lisboa, logo Inácio Borges começou a confessar suas culpas. Veja-se apenas uma curta confissão feita em 18.10.1749: - Disse que faziam o jejum do dia grande estando sem comer de estrela a estrela e ceavam coisas que não eram de carne e rezavam o padre-nosso sem dizer Jesus no final, estando com os pés juntos e a cabeça coberta e virada para o nascente e antes lavavam as mãos e as limpavam com uma toalha em folha, e quando fizessem o dito jejum se haviam de lavar por todo o corpo com água e sabão e vestir camisa em folha e não haviam de tomar tabaco nesse dia. E da mesma forma haviam de fazer o jejum da Rainha Ester e outro chamado da Sentença, no mês de Julho…  Não obstante as confissões e pedidos de misericórdia, foi notificado, 15 dias antes do auto-da-fé, que estava condenado à morte. A razão consta do processo: “deixou de dizer de 3 jejuns que fez no cárcere desta inquisição”. Verdadeiramente dramáticos foram aqueles 15 dias e extraordinária foi a defesa feita por Inácio Borges e que levou o inquisidor Manuel Varejão de Távora a expressar o seguinte juízo sobre o réu: - É um dos mais espertos e simulados que têm entrado nestes cárceres do santo ofício. Esperto e simulado? Ou um idealista apaixonado? No dia do auto, pelas 4 horas da tarde, pediu para ser ouvido e começou a sua confissão desta forma: - Quer acabar de confessar as suas culpas; que se houver de perder o seu corpo, não quer perder também a sua alma!  Confessou então que, por o terem metido numa cela escura e húmida, ficou entendendo que aquilo era a condenação a cárcere perpétuo e então “levado pela paixão e cegueira deixara de comer por vários dias, com o fim de, por este meio, se matar e oferecer juntamente as ditas penitências a Deus Nosso Senhor pela lei de Moisés (…) até chegou a entrar em pensamento de se matar na grade do mesmo cárcere”. A razão por que foi metido na cela “escura e húmida” prendia-se com o facto de o terem apanhado a conversar com um primo que estava em outra cela. Também dessa culpa ele pediu perdão e quebrou o jejum “por conhecer que ia desfalecendo de forças e juntamente pela consideração que fez que Deus Nosso Senhor o mataria por lhe haver pedido várias vezes que lhe desse o sono da morte”. Consequente no discurso e confiante na força da sua fé na lei de Moisés, Inácio esclareceu ainda: - Esteve 3 dias sucessivos sem comer nem beber, nem mesmo ainda à noite, os quais ofereceu a Deus Nosso Senhor que, assim como tinha abrandado o coração d´el-rei Assuero, para bem de Mardoqueu e de todo o seu povo que estava para padecer por mor de Hamã, assim ele abrandasse também o coração dos ministros desta mesa, para que se compadecessem dele e lhe não dessem o cárcere perpétuo.  Não se compadeceram os inquisidores, nem quando confessou que “de ontem para cá se abriu de todo os olhos e desenganado quer dar a vida pela lei de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Nem ainda quando, numa derradeira vez, despejou uma torrente de confissões e pedidos de clemência, perante o inquisidor Varejão Távora, estando já no cadafalso. A sentença foi implacável: Relaxado à justiça secular!

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: António Gabriel, relaxado em carne

Celebrar o Kipur é condição essencial para ser judeu. E assim o entendiam e praticavam os cristãos-novos de Bragança, ao fim de dois séculos de perseguição inquisitorial e vivência religiosa clandestina. E celebravam-no de forma não muito recatada, juntando-se “em sinagoga” em casas particulares uma dezena e mais de pessoas. Vejamos, por exemplo, uma dessas reuniões, acontecida no Kipur de 1637, contada por Bernardo Lopes de Castro, de 23 anos, solteiro, tecelão de seda: - Há 10 anos, em Bragança, em casa de seu parente Jerónimo Álvares Ramos, tecelão de sedas (…) se achou com (…) e estando todos 16, a saber: ele confitente e os ditos Jerónimo Álvares Ramos, a mulher deste, Bárbara Ferreira, Miguel Cardoso Penha, João Cardoso Penha, José Mendes Borges, Luís Álvares Sá Leão, Laureano de Sá Leão, Alonso Rodrigues Álvares, António Gabriel Pissarro, António Gabriel Ledesma, Manuel Mendes Furtado, Manuel da Costa Carvalho, Gabriel da Paz, Rafael Rodrigues Furtado e seu tio Sebastião Lopes Pereira, tio dele confitente e autor do seu ensino e entre práticas que tiveram se declararam e deram conta como viviam na lei de Moisés e disseram que guardavam os sábados como dias santos, vestindo camisa lavada na sexta-feira à tarde, estando com a cabeça coberta e voltados para o nascente e não comiam carne de porco, lebre, coelho, nem peixe de pele, nem também sangue de animal de qualquer casta que fosse, e faziam o jejum do dia grande que vem no mês de Setembro, aos 10 dias da lua do mesmo mês, estando sem comer nem beber desde o pôr-do-sol até ao outro dia às mesmas horas e então ceavam coisas que não fossem de carne (…) e que quando davam a bênção a algum afilhado seu, por nenhum caso lha davam em cruz e só abrindo a mão lhe corriam o rosto com ela, e na sexta-feira à tarde concertavam as candeias com azeite limpo e torcidas novas e varriam sempre as casas às avessas e quando lhe morria alguma pessoa parenta ou vizinha e conhecida, não comiam naquele dia e vazavam logo a água que tinham nos cântaros e lhe lançavam outra nova, e que assistindo em casa aonde se amortalhasse algum defunto, faziam muito porque fosse amortalhado em pano novo, e lavado todo o corpo com água e sabão, cortando muito bem as unhas dos pés e mãos, e querendo fazer algum sufrágio pelas almas dos tais defuntos, faziam jejuns judaicos dando algumas esmolas pelas ditas almas contanto que não fossem de coisa que não levasse carne e além do padre- -nosso se encomendam ao Deus dos Céus com a oração seguinte: Alto Deus e grande Deus E Senhor do Mundo todo, Senhor de toda a verdade A minha alma Vos clama Meu coração por Vós alaba E que como servo Vos sirva Em vosso serviço acabe. Amen. A qual oração rezavam todos os dias e com efeito fizeram todos juntos na forma sobredita o jejum do dia grande e se ficaram tratando e comunicando todos dali por diante... Escusado será dizer que todos os referidos participantes na celebração acabaram perseguidos pelo santo ofício e muitos confirmaram a confissão de Bernardo, acrescentando alguns pormenores, como, por exemplo, Laureano de Leão, a dizer que “antes de rezarem lavavam as mãos e na véspera do Kipur lavavam todo o corpo”. Antes de prosseguirmos, uma nota sobre aqueles 16 judeus brigantinos para dizer que todos eles estavam ligados por laços familiares mais ou menos estreitos, oscilando a sua idade entre os 20 e tal e os 40 anos, quase todos fabricantes de sedas. Aqui entra o conceito de nação, com o significado de família alargada, cujos membros rezavam em conjunto, casavam na família e trabalhavam em rede familiar. Membro desta “família-nação” era também Gaspar Dias de Castro, que fez a seguinte confissão perante os inquisidores: - Haverá 12 anos, em Bragança, em casa de seu primo direito, António Gabriel Ledesma (…) para fazer o jejum do dia grande, no qual dia não haviam de tomar tabaco e antes de entrar a fazer o dito jejum se havia de lavar todo o corpo e nesta forma faziam o jejum da Rainha Ester, no princípio do mês de Março (…) também havia de fazer no mês de Junho outro jejum chamado da Sentença, em memória da revogação da sentença de morte que se tinha dado contra os judeus e de que eles, depois, ficaram livres… Outras muitas denúncias foram feitas contra António Gabriel Ledesma, 31 anos, solteiro, tecelão de sedas, natural e morador em Bragança, filho de João Rodrigues Ledesma e Francisca Rosa, o qual foi preso em 22.3.1747 pela inquisição de Coimbra onde, em 31.8.1748 foi submetido a tormento, dando-se-lhe “um trato esperto que durou meia hora, no decurso do qual gritou muito, chamando por Jesus e que não tinha culpas”. O processo transitou para Lisboa e prolongou-se até 8 de Novembro de 1750. Trata-se de um processo do maior interesse, a vários níveis. Antes de mais porque, pelas contraditas apresentadas por António Gabriel, ficamos sabendo como estava organizada a venda e distribuição do tabaco, em Trás-os-Montes, nos anos anteriores à sua prisão. Assim, o contrato de toda a província estava arrematado “in totum” pelo contratador Manuel Rodrigues Gabriel, natural de Bragança. Como tal contrato exigia muito capital disponível, o contratador contava com apoios de retaguarda, nos quais substabelecia o arrendamento. E aqui surge novamente a família- -nação como célula fundamental. Assim, a venda de tabaco na comarca de Torre de Moncorvo ficou entregue a João Gonçalves Gabriel, com o pai de António Gabriel (João Rodrigues Ledesma) no cargo de administrador. Na comarca de Chaves ficou José Rodrigues Peinado, cunhado de João Gabriel e na comarca de Vila Real o monopólio do tabaco foi entregue a Francisco Fernandes Gabriel. Na rede familiar deste negócio estava também o brigantino José de Sá Vargas, possivelmente responsável pela distribuição na comarca de Miranda do Douro que incluía a região de Bragança. E em Bragança, o próprio réu, António Gabriel Ledesma vendia tabaco a retalho, pertencente ao mesmo contrato. O contratador teria já então mudado a sua morada para Lamego, prosseguindo certamente outros contratos e negócios. Também no que respeita ao monopólio do sabão, este processo dá informações interessantes que a escassez de espaço nos impede agora de tratar. Por 3 anos de prisão, o réu manteve-se negativo, dizendo-se católico e repetindo que todas as acusações eram motivadas por ódio e vingança de seus inimigos, que apontava, assim como as testemunhas que podiam fazer prova. Isso fez multiplicar as diligências a Bragança, com as respetivas custas, pois que o comissário local, o escrivão e o notário não trabalhavam de graça. Neste ponto, o processo ganha mais interesse, por mostrar a teia de relações, por vezes contraditórias, entre a comunidade cristã-velha de Bragança, em ralação aos cristãos-novos. O comissário, abade José de Morais Antas, natural de Vimioso não hesitou em dar crédito a testemunhas cristãs-novas e desacreditar cristãos-velhos. Veja-se: - Todas as pessoas cristãs-velhas nomeadas na comissão e artigo supra lhe parece a ele testemunha que presume inimigos dos cristãos-novos são inatendíveis os seu depoimentos, no que respeita a dizer ele testemunha e julgar que são inimigos dos cristãos- -novos é por saber que, em certa ocasião, em um jubileu, antes de ser preso Francisco Furtado Mendonça andaram observando os ditos cristãos-velhos se se confessava antes de comungar; e se persuadiram que não se tinha confessado, vendo-o pôr à mesa da comunhão; e depois se averiguou que se confessara ao padre Francisco Xavier de Sousa Pereira, de cuja observação ficou ele testemunha entendendo que a faziam por inimigos dos cristãos-novos e não por zelo da santa fé católica… Trágicos foram os últimos dias de António Gabriel. Quando o informaram que estava condenado à morte, ele começou a confessar e a pedir perdão, o que levou o tribunal, a aprovar o seguinte despacho, proposto pelo inquisidor Manuel Varejão de Távora: - Pareceu a todos que o assento estava alterado visto dizer de suas irmãs e outras pessoas conjuntas, que não estavam indiciadas, com mostras de arrependimento, mas está diminuto por não dizer de 2 sobrinhos segundos e de outras muitas testemunhas da justiça, e ser útil à justiça a sua confissão no que respeita às irmãs, que ainda não foram presas. E vá ao auto-da-fé e abjure em forma e hábito com insígnias de fogo. Não entendeu assim o Conselho Geral que manteve a condenação à morte. No decurso do auto, António Gabriel pediu para ser ouvido, desdobrando-se em confissões. A sentença foi reavaliada por 3 vezes, mantendo o Conselho Geral a sua decisão. E, estando já no cadafalso, quando a sentença final ia ser lida, pelas 3 horas da tarde, António Gabriel, em alta voz e de desespero, continuou fazendo confissão pública e pedindo misericórdia. Vários membros do tribunal opinaram que o réu deveria ser reservado, para o caso ser melhor analisado. Porém, o Conselho Geral manteve a sentença. Veja-se o teor: - Foram vistas pela quarta vez em Mesa estes autos (…) por que foi mandado relaxar e o mais que disse no cadafalso pelas 3 horas da tarde e a confissão que fez pelas 8 horas da noite (…) que se lhe não poderão tomar judicialmente pela penúria do tempo e hora que o fez (…) nem ser verosímil o que diz no cadafalso à vista de todos os mais réus de Bragança…