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Falando de … Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira

Livro de estranho nome, este! Com o Pentateuco a ser impresso em Faro, em 1847, considerado o mais antigo da tipografia portuguesa, o país caminhava a passos largos na senda descobridora. Transposto o norte de África e a cruzada de Ceuta, ao rei de Portugal chegam-lhe notícias da passagem do Cabo da Boa Esperança, ao mesmo tempo que Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva buscam informações sobre Prestes João.

Portugal era uma nação a expandir-se, a crescer para além do mar. Navegando junto à costa, vivia da ousadia dos marinheiros e dos epígonos do Infante D. Henrique. Da arte de marear poucos sabiam. O mundo era o desconhecido. O mapa-mundi do cartógrafo alemão Henricus Martellus regista as últimas viagens de Diogo Cão e de Bartolomeu Dias. Abraão Zacuto, judeu expulso de Espanha, radicado em Portugal publica o Almanach Perpetuum, obra de grande importância para a astrologia e navegação.

Se o mar fora uma miragem, agora ele era um objectivo, havia que transpô-lo. A tarefa era árdua. Uma vontade indómita atirava-nos para o desconhecido. Num país pequeno, com o litoral a apelar à aventura, à conquista e à evangelização, só nos restava concretizar o imaginado. Recursos humanos não escasseavam. Dobrada a costa de África, era preciso avançar para o ocidente. Fechado num secretismo calculista, Espanha, ao lado, disputava-nos o conquistado e o descoberto e a descobrir… Evitando uma possível querela, recusando a conflitualidade, Fernando e Isabel, de Espanha, e D. João II, de Portugal, concertam em Tordesilhas a partilha do descoberto e do a descobrir. Reúnem em Simancas os especialistas. Duarte Pacheco Pereira é um deles.

A partir de Damião Peres, sabemo-lo cabo de guerra em terra e no mar, explorador geográfico, cosmógrafo e roteirista. Nascido em Lisboa em 1460, viverá nas estrofes de Os Lusíadas, no Canto X, a partir da estância 12, com o epíteto de Aquiles Lusitano. Com um historial de sucessos que passam pela criação da feitoria-fortaleza em São Jorge da Mina em 1482, assim como na exploração dos litorais e do interior das terras guineenses durante anos. Em 1488 encontra-se na Ilha do Príncipe impedido, por doença, de realizar trabalhos da sua especialidade para D. João II, tendo-o encontrado Bartolomeu Dias na sua viagem a terras da África do Sul e da consequente passagem para a Índia

De uma vida conquistada à ponta da espada, muito tempo lhe sobrou para escrever sobre o que viu e experienciou.

Sem que tenha sido divulgado, na altura, por razões de confidencialidade, que contrastavam com a política utilizada por Castela, é natural que Duarte Pacheco Pereira tenha estado no Brasil em 1492 e 1498, portanto, antes de Pedro Álvares Cabral, aí ter aportado em 1500. O facto de o Tratado de Tordesilhas, celebrado em 7 de Junho de 1494, ter corrigido para 370 léguas a ocidente de Cabo Verde, a linha perpendicular traçada de polo a polo, leva os estudiosos a pensar que os portugueses já sabiam da localização exacta do Brasil.

Servindo-nos da História da Cultura em Portugal, edição do Jornal do Foro, 1955, de autoria de António José Saraiva, a Universidade foi completamente estranha à náutica nos primeiros tempos das navegações, embora se fossem desenhando cartas ou colecções de cartas para a navegação, dando conta do recorte do litoral, sendo instrumento de trabalho para os pilotos, estando em constante actualização, à medida que as incursões marítimas se desenvolviam. Eram chamados portulanos que se iam adaptando a novas necessidades, nomeadamente a aspectos que tinham a ver com a astrologia, fauna, flora e habitat. A partir da altura em que os marinheiros transpõem o Equador em 1471, novos campos de visão se deparam. Para os portugueses as necessidades de orientação são cada vez mais prementes

Dos descobrimentos falara Gomes Eanes de Zurara na Crónica da Guiné, cujo manuscrito encontrado na Biblioteca de Paris, em 1837, tenta mostrar ao mundo português, aquela zona recentemente descoberta, onde não falta, em forma de prólogo, tão ao gosto da época, uma saudação ao Infante D. Henrique “Ó tu, Príncipe, pouco menos que divinal”.

Em pleno período dos descobrimentos, D. Manuel sentiu necessidade de transmitir um cunho de cientificidade ao empreendimento. Muito pouco estava escrito. Talvez o Tratado de Tordesilhas tenha posto a nu a premência do rigor. Duarte Pacheco Pereira é a pessoa indicada. Com efeito, no Prólogo é possível ler:

E porque Vossa Alteza me disse que seria nisto fiar de mim, portanto preparei fazer

 um livro de cosmografia e marinharia, cujo prólogo é este que aqui é escrito, o qual

 será   partido em cinco livros.

 

Justificando o título da obra, esclarecerá no mesmo prólogo:

 

Tudo isto (com diligência, por serviço de Vossa Alteza, farei no melhor modo que puder

 e souber) neste livro será escrito, o qual “Esmeraldo de situ orbis” será chamado.

 

Se é verdade que a obra literária levada a cabo por Duarte Pacheco Pereira, é um livro de cosmografia e de marinharia, é nele que ficamos a saber que no Brasil, já por aquelas paragens, andaram navegadores em data anterior a Pedro Álvares Cabral. No capítulo II do mesmo livro, lê-se:

Bem-aventurado Príncipe, temos sabido e visto como no terceiro ano do vosso

 reinado do ano de Nosso Senhor de mil quatrocentos e noventa e oito, donde

nos Vossa Alteza mandou descobrir a parte ocidental, passando além a grandeza do   

mar oceano, onde é, achada e navegada uma tão grande terra firme, com muitas e

 grandes ilhas adjacentes a ela, que se estende a setenta graus de ladeza da linha

equinocial.

 

O livro é constituído por cerca de duzentas páginas, com um título não absolutamente original, herdado do geógrafo latino Pomponius Mela que no século I D.C. escreveu De situ orbis libri.

Embora o título esteja em latim, o livro apresenta-se escrito em português, sendo o original desconhecido, reputando-se de perdido. Presentemente, as cópias mais antigas encontram-se na Biblioteca Pública de Évora e na Biblioteca Nacional. A primeira edição foi publicada em 1892 pela Imprensa Nacional, sendo a segunda pela Sociedade de Geografia em 1905.

Servindo-nos dos estudos levados a cabo por Joaquim Barradas de Carvalho, o maior estudioso da obra de Duarte Pacheco Pereira, e de Jorge Couto, em A Construção do Brasil, edições Cosmos, 1997, é possível decifrar o título, anagrama onde se encontram associadas as iniciais em latim dos nomes de Manuel (Emmanuel), o soberano, e Duarte (Eduardus), o cosmógrafo. “De situ orbis” pode ser traduzido pode ser traduzido como “O tratado dos novos lugares da Terra, por Manuel e Duarte”.

Na segunda metade do século XVI, a Coroa espanhola atribuiu tanta importância às obras geográficas portuguesas, cartas de marear, relações de viagens, roteiros, etc., designadamente no Esmeraldo que Filipe II encarregou Giovanini Bautista Gesio, estrategicamente colocado como auxiliar de D. João Borja, embaixador em Lisboa, de adquirir cópias das espécies mais importantes que eram necessárias para a definição das suas posições nas negociações com Portugal sobre a delimitação de fronteiras no Novo Mundo e no Oriente. O espião filipino cumpriu com êxito a missão que lhe foi confiada, tendo remetido para Espanha em 1573, um significativo número de obras entre as quais figurava o livro de cosmografia e marinharia de autoria de Duarte Pacheco Pereira, cujo rigor e mérito são sublinhados pelo cosmógrafo italiano.

A leitura de Esmeraldo de Situ Orbis deixa perpassar a ideia de um roteiro onde se patenteia uma atitude científica, baseada num saber e experiência feito, em que damos conta de preciosas informações náuticas, geográficas e económicas, dirigidas a um grupo restrito, a que o “indouto vulgo” não tem acesso, embora nem tudo corresponda à realidade e ao conhecimento que hoje possuímos, rejeitando liminarmente a localização das nascentes do Nilo, no Cabo da Boa Esperança.

Com o conceito do “visto claramente visto”, de Camões, Duarte Pacheco Pereira inicia um ciclo de conhecimento baseado na observação que começará, de pronto, a dar frutos. Assim, no Colégio dos Jesuítas de Santo Antão, funcionará uma cadeira de Matemática ou “lição de esfera” pela qual o rei se interessou, mantendo desta forma um protocolo com o Colégio, pugnando pela manutenção dessa cadeira “muito necessária para a instrução dos pilotos e mais pessoas que costumam navegar para a Índia”.

Esmeraldo de situ orbis, um livro no mundo de Quinhentos, escrito entre 1505 e 1508, por um homem dominado pela voragem do esquecimento, falecido entre 1532 e 1533. É necessário e conveniente que seja lembrado, tal como o recordou António Dinis da Cruz e Silva, autor do Hissope, nas Odes Pindáricas, publicadas postumamente em 1801.

Se Duarte Pacheco Pereira esteve no Brasil em 1498, em livro recentemente publicado, A Confissão do Navegador, de Duarte Nuno Braga coloca-o no Brasil em 1493.

Do que foi escrito, há uma clarificação que deve ser feita: antes de Pedro Álvares Cabral no Brasil, Duarte Pacheco Pereira por lá andou. Acrescente-se, ainda, que Duarte Leite, na História da Colonização Portuguesa, publicada no Rio de Janeiro em 1921, dedicou muito do seu saber à descoberta do Brasil, desmistificou Os Falsos Precursores de Álvares Cabral, onde não cabe Duarte Pacheco Pereira. Acrescente-se que em Castela as descobertas ou as pseudo-descobertas eram publicitadas, ao contrário do que acontecia em Portugal, devido à política de secretismo adoptada pelos monarcas lusos. Afonso de Hojeda, Vicente Eanes Pinzon, Diogo de Lepe e Afonso Vellez de Mendonça são nomes apontados como falsos precursores de Cabral.

Em forma de conclusão e respondendo à questão – A quem se deve atribuir a descoberta do Brasil? Responde Duarte Leite – “ A descoberta do Brasil, como quer que entendamos o termo, cabe a Álvares Cabral; os quatro castelhanos a quem comummente a atribuem, não passam de falsos precursores”.

Sendo assim, não serão mais que percursores. Um fenómeno de metátese, que relega castelhanos para um segundo plano do achamento de terras de Santa Cruz.

O desejo de sabermos mais, para além do vulgarmente conhecido acerca do feito de Pedro Álvares Cabral, levou-nos ao Esmeraldo de situ orbis. O mundo aí era mais conhecido. Não perdemos o nosso tempo. Como o saber não ocupa lugar, ficámos satisfeitos por colaborarmos no constante interrogar neste universo dos porquês. O cepticismo e o dogmatismo lado a lado nas nossas vidas…

 

Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico 

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - João Rodrigues, vereador e juiz (n. Vila Flor c. 1507)

Nasceu em Vila Flor, por 1507, sendo filho de Lançarote Rodrigues e Genebra Alvim. Foi mercador e ascendeu à categoria de rendeiro. Muito considerado entre os seus conterrâneos, foi chamado a desempenhar cargos importantes como: juiz ordinário, vereador da câmara e almotacé. Membro de várias confrarias, foi nomeado mamposteiro dos cativos, competindo-lhe arrecadar os dinheiros de esmolas, doações, testamentos… para comprar a liberdade de cristãos cativos de mouros e árabes.

Casado com Filipa Rodrigues, o casal teve 2 filhos e 3 filhas. Uma das filhas chamou-se Genebra Alvim, como a avó e foi casar em Escarigo. Este casamento foi muito comentado no seio da comunidade marrana de Vila Flor. É que Genebra terá sido pedida ao pai para casar com um escudeiro, membro de uma família da maior nobreza de V. Flor. João Rodrigues recusou, preferindo casá-la com Diogo Mendes, um cristão-novo, morador em Escarigo, o qual, anos depois, seria processado pelo santo ofício juntamente com 2 filhas. (1)

Quem falou dos comentários a este casamento por parte dos marranos de Vila Flor foi Vasco Fernandes, o Pataranha, que prestou o seguinte depoimento:

- Que lhe dissera o dito João Rodrigues que trouxera uma bíblia de Salamanca; dizendo-lhe mais que todos os trabalhos que o dito João Rodrigues tivera fora porque lhe pedira um escudeiro de Vila Flor sua filha em casamento para um seu filho e que ele não quisera dar (…) e que muito melhor fora passar os trabalhos que casá-la com um cristão-velho. (2)

Não seriam, no entanto, as denúncias de Vasco Fernandes que levaram João Rodrigues a ser preso pela inquisição de Lisboa, já que aquele só entrou na mesma cadeia depois que este saiu penitenciado e andava cumprindo sua penitência no colégio da doutrina da fé. Na base da sua prisão estariam dois outros denunciantes, cristãos-velhos. Um deles era padre, natural de Mirandela, capelão em Vilas Boas, Francisco Pimentel, de seu nome. Entre outras coisas de “mau cristão” foram 3 as acusações apresentadas contra ele, a saber:

Que punha em dúvida a virgindade de Nª Senhora, dizendo que lhe parecia impossível uma mulher parir e ficar virgem.

Que a lei de Moisés era melhor que a lei dos cristãos-velhos e que em prova, contara que, em tempos, sobrevindo uma grande seca, os cristãos-velhos saíram com procissões e rezas pedindo água a Deus, mas que Deus não ouviu os seus rogos. E então disseram aos cristãos-novos que rogassem também pela chuva. E saíram estes para os campos onde fizeram suas rezas e cerimónias. E regressando a suas casas, com eles veio também a chuva em abundância, concluindo então que os seus rogos eram mais aceites por Deus. E acrescentaria que eles eram apenas 20, entre um grande número de “lobos, que eram os cristãos-velhos”.

Finalmente era acusado de ter colocado um colar de ferro no pescoço de um escravo forro, que assim morreu, com os açoites e pancadas que lhe deu, porque o escravo andou publicamente dizendo que ele tinha uma bíblia e que em sua casa se faziam ajuntamentos de judeus e outras mais judiarias.

Tais denúncias foram levadas ao conhecimento do vigário-geral de Torre de Moncorvo, o famigerado Aleixo Dias Falcão, que logo mandou prendê-lo e se meteu a organizar o consequente processo que enviou para a inquisição de Lisboa, (3) em cujas masmorras deu entrada João Rodrigues em 10 de abril de 1557.

Na prisão teve dois bígamos por companheiros e na cela de cima um padre António de Gouveia, especialista em “tirar nabos da púcara” dos outros para os ir denunciar perante os inquisidores. Com eles terá João comentado as razões de sua prisão, nos seguintes termos:

- Dizem que tinha uma Toura em minha casa e que se faziam ali ajuntamentos, não declarando quem eram os que se ajuntavam.

E aconselhando-o aqueles a que confessasse suas culpas, ele terá respondido:

- Que diabo hei de eu confessar; se começo nunca hei de acabar.

E terá também dito aos mesmos “espias” e estes aos inquisidores que “só quando visse o caso mal parado ele confessaria seus pecados e pediria misericórdia”.

Foi bem estruturada a defesa. Desde logo apresentando como testemunhas de seu bom comportamento cristão uma impressionante lista de escudeiros e padres de Vila Flor. Em segundo lugar conseguindo que a inquisição de Lisboa nomeasse o reitor de Bornes, comarca de Bragança, para inquirir as testemunhas e não o comissário local do santo ofício Aleixo Dias Falcão, de quem “tinha pejo” por ser “inimigo capital dele réu e por assim ser lhe é muito suspeito e por assim ser requeiro neste santo ofício que nas inquirições de sua abonação não fossem tiradas por ele e que as tirasse o reitor de Bornes, de nome Diogo Borges”.

Imagine-se: o local escolhido por Diogo Borges para inquirição das testemunhas foi a casa de Manuel de Sampaio onde um irmão do réu era feitor e toda a família de Lançarote Rodrigues entrava e saía muito à vontade. Acresce que os procuradores do réu (filho e genro) estariam presentes e conheciam as testemunhas, adivinhando-se intensas pressões e subornos. Alguma razão teria o advogado de acusação ao prevenir a mesa de que “a justiça fique frustrada e o réu haver de ficar sem castigo” devido às “manhas e provas e negócios forjados e negociados”, apontando o caso de um Rui Dias que se desdisse e “estava tornado, como pessoa que estava subornada e não dizia a verdade”. As queixas e alertas do promotor iam mesmo ao ponto de acusar o comissário Diogo Borges de “inadvertência e descuido”. Vejam:

- Não obsta as contraditas e provas com que o réu veio às testemunhas da justiça, porque as causas das contraditas são fingidas e a prova assim negociada na terra pelo filho do réu e seus parentes. E que também interveio a inadvertência e descuido do juiz comissário que fez a inquirição e lhe deixou saber das testemunhas da justiça e contraditas fossem chamadas e trazidas pelos requerentes das partes, de onde tiveram tempo de as perverterem (…) e meterem medo e intimidarem as testemunhas da justiça…

Testemunha essencial era o padre Francisco Pimentel que denunciou João Rodrigues por dizer heresias sobre Nª Senhora, sobre a Santíssima Trindade e sobre o Santo sacramento do altar. Veja-se como o seu testemunho foi completamente anulado e até ridicularizado:

Desde logo porque a testemunha que estaria com ele a ouvir tais coisas da boca de João Rodrigues acabou por dizer que nunca ouviu nada disso. Depois porque João conseguiu provar que ele tinha escrito cartas falsas para mandar para o santo ofício e só as não enviou porque ele réu lhas “achou e sobre isso lhe chamou dentro do sprital de falsário e passou com ele palavras de muito escândalo, remetendo a ele, levantando-o pelo cabeção e levantando de um punhal para lhe dar com ele”. E agora vejam a qualidade das pessoas que testemunharam a cena: D. Inês, irmã de Manuel Sampaio, o cura de Vila Flor e o padre capelão do hospital!

Tudo parecia correr de feição ao prisioneiro, mas… antes de o mandar em paz e encerrar o processo com defeito da prova, decidiram os inquisidores submete-lo a tormento. E então… o nosso biografado acabou por confessar seus pecados e pedir perdão… sendo reconciliado com cárcere e hábito penitencial perpétuo.

 

NOTAS:

 

1-ANTT, inq. Lisboa, pº3263, de Diogo Mendes. Deste processo extratamos o seguinte texto da acusação: - Provará que pregando um frei Francisco frade do mosteiro de S. João de Latrão, na igreja do lugar de Escarigo, onde ele réu é morador, no dia de Nossa Senhora da Anunciação, que foi dia 25 de Março de 1565 ,onde estava o réu  e o povo  junto,  por o dito pregador  dizer que o Messias  era vindo,  e que se algum do povo  da tribo de Israel duvidasse  disso  que não tivesse dúvida,  porque já era vindo, e também  que nosso  senhor  encarnara no ventre  de Nossa Senhora e parira ficando sempre virgem, antes do parto  e depois do parto, e confirmando isto  por autoridades e razões  da sagrada escritura; e o  réu por ser cristão-novo  se escandalizou e murmurou disso, e estando o dito pregador para  jantar em casa  de Simão Fernandes,   do mesmo lugar,  depois da gente ida da igreja,  ele réu se ajuntou  com outros cristãos novos  e com armas foram , ele réu e os mais  de assuada a buscar o dito frade  para o matar. E polo acharem em casa do dito Simão Fernandes, o réu com os mais entraram dentro em casa e chamando ao frade ladrão Lutero, que não pregava senão mentiras e falsidades e velhacarias, que saísse fora,  o quiseram matar e afrontar . Ao que acudiu o dito Simão Fernandes e com uma chuça deitou ao réu e aos mais fora de sua casa, chamando a voz d’ el rei, que queriam matar o frade pregador por pregar a palavra de deus; e acudiu muita gente, e ele réu com os mais ainda da rua disse que saísse o dito frade  fora, Lutero  ladrão,  que não pregava senão mentiras  e falsidades  e velhacarias,  que ali o haviam de matar  ás punhaladas; em que o réu e os mais cristãos novos, que com ele foram, fizeram grande afronta  e injúrias  ao dito pregador  e alvoroço  no povo todo, e todos  ficaram escandalizados  e diziam  que se  a isto não acudia  com justiça que  faria grande mal,  por ser  dito  contra a honra de deus  e sua santa fé.

 

2-ANTT, inq. de Lisboa, pº 7078, de Vasco Fernandes.

3-IDEM, pº 12463, de João Rodrigues.

Os cidónios

Meus caros, como têm passado? Hoje venho falar-vos de um “curioso personagem”, mas não é Jeremias, o fora-da-lei. Trata-se do ou dos cidónios. Ora bem, os cidónios são um contraponto dos campónios. Sobre estes últimos muito se caricatura, toda a gente conhece a figura, cai sempre bem no imaginário galhofeiro de qualquer país. Os primeiros, os cidónios, são espécimes absolutamente convencidos da sua condição superior e distintiva pelo simples e pasmável facto de terem nascido ou sido criados numa cidade, arrabaldes incluídos. Aliás, certa vez ouvi da boca de uma cidónia assumida “Ah e tal para mim é diferente porque eu sou mêmo de Lisboa, não sou como muitos que andam por aí e vêm dos arredores…” (?!) Tendo em conta que Lisboa não é a Cidade do México em que alguém depois de 4h no trânsito para atravessar a cidade chega a uma ponta e está em Castro Verde ou chega à outra e está em Aveiro… E mesmo não tendo em conta o disposto anteriormente, não entendo que diferenças abissais possam ter duas pessoas que nasceram nestes espaços geográfica e socioculturalmente tão longínquos e alienados. Mas, bem entendido, esta afirmação não tem nada de ridículo. Nem pura estupidez. Talvez uma dose de vaidade, cartão amarelo-alaranjado a roçar a bazófia cidónia, sim senhor, mas tudo dentro da legalidade do conceito. E este episódio passou-se em Macau, revelador de que ser cidónio é uma condição e uma presunção que se leva na bagagem pela vida fora e além-fronteiras, como um par de postas de bacalhau ou aquela adorada e rafada camisola velha que nunca mais vamos chegar a usar. Todas as cidades têm os seus cidónios, independentemente da dimensão, mesmo nas pequenas cidades do interior se encontram cidónios com uma perspectiva ligeiramente superior em relação aos habitantes das vilas e aldeias limítrofes. Contudo, para os cidónios das cidades do litoral os cidónios do interior não passam de campónios, embora um nadinha mais apresentáveis. A respeito destas particularidades dos tipos de cidónios trata-se de diferentes características e tipologias entre os mesmos, aquilo a que os académicos e estudiosos da área definem como contextos microcidónios. Os cidónios por norma desconhecem os territórios da área que está para lá do que eles próprios definem como cidade, e se por ventura se aventuram a dela sair, fazem-no com a certeza cidónia de quem começa o jogo sempre a ganhar por 3-0. No contacto com o outro, leia-se o não-cidónio, a goleada muda aos 5 e acaba aos 10. O cidónio só treme com o citadino. Perante este último põe sempre o autocarro à frente da baliza para ver se não perde por muitos. Por isso é espécime a evitar. Com todos os outros o cidónio é sempre a aviar, está ganho, não é preciso mexer uma palha, a camisola de cidónio vence jogos sozinha. É esta a principal condição do cidónio, única e simplesmente ser cidónio é vantagem, sinal mais. Assim como o verdadeiro campónio, o cidónio tem um certo défice cultural/formativo e é precisamente desse vazio que nasce a fonte cidónia (e campónia). A diferença é que o cidónio acha que essa insuficiência fica perfeitamente colmatada pelo facto de ser… cidónio. O cidónio não tenta, talvez não consiga, compreender o outro, o infeliz, às vezes aparentemente conformado e até satisfeito com a sua condição de não-cidónio, nem citadino, o pobre coitado… O cidónio por norma não tem uma referência, um espaço que sinta como seu onde possa sentir refúgio ou sentir-se bem vindo, não sabe ou nunca soube o que isso é. Muitas vezes o cidónio não tem nada, sequer onde cair morto. Inclusive não poucas vezes o cidónio vem de lugares tristes, deslavados com pouco ou nada de cidade. Mas não interessa como nem de onde. Todos invejam a sua sorte, é natural. Ser cidónio é ser mais alto, é ser maior do que os homens. Estive no Porto, muito menos tempo do que gostaria, e soube pela boca de gente amiga da minha geração que cidónios portuenses estranham vincada e cidoniamente tradições, vivências e hábitos culturais trasmontanos (inclusive enchidos como o botelo). Alguns até passaram a acreditar que as abóboras vêm de árvores às quais se põem estacas para não vergarem ao seu peso. Como é possível ser-se tão cidónio? Em pleno séc. XXI e dentro de um espaço TÃO pequeno?! Eu que vivo numa cidade com quase 5 milhões (M) de pessoas, a 100km de uma com 15M numa província com 80M e num país com 1.400.000.000M, onde os do Norte são mais altos que os do Sul, há oito diferentes tipos de gastronomias, gente que conheço demora 3 ou 4 dias de comboio para chegar à terra natal, depois de um longo etcecetera, pergunto: mas que raio de diferenças culturais, de mundos desconhecidos e inexplorados, de criaturas monstruosas e aterradoras, e de mares inavegáveis e intransponíveis poderão existir para lá de uma hora ou duas de boas auto-estradas?! Cidónios de Portugal, francamente…

 

Vendavais - Uma punhalada nas costas

Como tudo o que acontece na vida, há momentos elevados e dignos de menção e outros que são mesmo para esquecer. Na perspicácia analítica de cada um pode-se salientar o bom e o mau de tudo quanto se faz ou de quem faz. E como diz o povo, é mais difícil subir do que descer.

Exemplos, temos às dezenas e quando pensamos que se vão esfumando por entre as cogitações mundanas, eis que surgem de novo para acicatar a perspicácia de quem se sente atingido. Ou não! A verdade é que é vulgar dizer-se que somos apunhalados pelas costas por quem se diz mais amigo e isto acontece frequentemente e quando menos se espera. 

Quando Passos Coelho ganhou as eleições e se guindou a primeiro-ministro, todos diziam e afirmavam que o deveu a Miguel Relvas. Nunca foi desmentida esta influência dentro do PSD e de tal modo que o número dois de Passos Coelho era efetivamente Miguel Relvas, de tal modo que Passos parecia uma autêntica marioneta nas mãos de Relvas. Chegou uma altura em que o partido se sentiu muito incomodado com essa influência e criticou mesmo Passos Coelho de se deixar manipular tanto.

O problema que surgiu com a falsa licenciatura de Relvas e que levou ao seu afastamento do governo e até do partido, marcou o divórcio entre os dois grandes amigos. Relvas saiu, afastou-se da política direta e foi para o Brasil. País que parece predestinado a receber os políticos portugueses e não só. Parecia que Passos Coelho ficava órfão do amigo íntimo e meio desorientado e não era mentira. Muito se disse então e muito se viu depois. Facto é a perda de maioria que lhe permitisse novamente assumir o governo. E nessa altura alguém culpou Relvas por razões diversas. Ou porque fez o que não devia e deu mau nome ao partido, ou porque sem ele o partido e Passos Coelho não conseguiram renovar o mandato governativo. Ficou marcado.

Agora, e quando Passos Coelho continua a sua senda de ex-primeiro-ministro, muito à deriva e sem rumo certo por este Portugal de geringonça, o amigo Relvas vem apunhalá-lo quando menos se esperava. Do Brasil mandou recados ao partido e vem propor uma nova forma de eleição dentro do partido, imitando as diretas do partido socialista, numa alusão lógica ao modo como foi afastado José Seguro. Pois deste modo, Passos seria afastado dando lugar a nova figura de proa. Resta saber quem.

Como a amizade entre Relvas e Coelho está fortemente beliscada e não é seguramente com Passos que Relvas volta à política, é necessário arranjar outro escadote que lhe permita subir e abrir uma porta nesse setor, o mais depressa possível. Face a algumas alusões do próprio Relvas, podemos concluir que tanto Montenegro como Rui Rio seriam hipóteses sérias e ganhadoras e que afastariam definitivamente Passos Coelho da liderança do partido. Facada mais certeira ele não poderia inventar. Resta saber se Passos estaria à espera dela ou não, mas quem tem amigos destes, não precisa de inimigos.

Mas Relvas vai mais longe ao não concordar com a escolha de Teresa Leal Coelho como candidata à Câmara de Lisboa, indo de encontro a muitos notáveis do PSD a esse respeito, o que vale dizer contra Passos Coelho já que a escolha foi imposição sua e não do partido. Relvas tem muitos contactos dentro do partido e domina ainda um setor bastante alargado no aparelho o que lhe permite recolher muitos apoios que decerto poderão desmontar o que o seu ex-amigo Coelho anda a tramar. A verdade é que este sai muito beliscado de tudo isto. Parece que as asneiras não são só do outro lado do Atlântico! De facto seria muito mais apoiado e tiraria mais proventos políticos se tivesse optado por apoiar Cristas na candidatura contra Medina, mantendo uma união lógica e possivelmente muito mais ganhadora. Enfim!

Mas Relvas está à espera. E a derrota em Lisboa, deve ser, segundo ele, o passaporte para Passos Coelho abandonar definitivamente o partido. E segundo outros, já vai tarde, pois com alguma demora, desfaz o partido por inteiro! As punhaladas sucedem-se. Cuidado.

O Arquitecto

Este jornal trouxe-me a má notícia da morte do arquitecto Manuel Ferreira. Vou-lhe render preito, sentido, dentro das minhas possibilidades, confiado na memória. Assim o consiga. Ele merece-o. Inteiramente.

O carro pintado a amarelo periquito estava estacionado na reentrância em frente à barbearia do benquisto Sr. César Barata. Em redor do automóvel homens gesticulavam e vozeavam gargalhadas, palavras vernáculas, exclamações de espanto. Interessado, aproximei-me, de imediato percebi o espanto estampado nos rostos e no soltar de línguas. O popó ostentava faixa roxa paixão no lado esquerdo, de para-choques a para-choques.

Na porta da barbearia, o Sr. César de tesoura enfiada no polegar e no indicador da mão direita e o pente na mão esquerda esbracejava ao ritmo das piadas em catadupa vindas da boca do Sr. Zé Fernandes, de bigode oxigenado, sempre a rir. Depressa se formou um magote, o Arquitecto continuava sorridente, sereno, na Mulher, bonita Senhora luziam os olhos. De alegria, nunca de receio.

O rosário de gente ganhava contas, um graduado e um guarda da PSP aproximaram-se em passo pachorrento, queriam saber a causa do ajuntamento, tramaram-se. O sagaz Sr. Zé Fernandes incessantemente incentivado pelo Sr. Álvaro do Flórida, e o Sr. Cândido Casão, tratou de chamar a atenção dos cívicos apontando a faixa perversa, pecaminosa, a infringir, segundo ele a lei do ordenamento das pinturas dos automóveis. Na dele a falta não podia passar em claro. E, clamava contra o escândalo, o abuso, o desajuste. E, pedia insistentemente, que os agentes de autoridade verificassem os documentos, aquela alteração no semblante do carro não podia ter sido feita, estava-se ante transgressão da grossa. Ele transgredia porque era professor no Liceu, pintor e rico, concluiu o amigo, também dado às caçadas e patuscadas onde entrava o Sr. Júlio Lopes, todo-poderoso gerente do BNU, paredes meias com a Barbearia, quase de certeza a ouvir o alarido.

O subchefe da Polícia dirigiu-se ao suposto infractor e pediu-lhe os documentos do álacre carro. Porquê? Perguntou cerimonioso, em tom rumoroso, o Arquitecto. O graduado respondeu polidamente, ele sabia quão maliciosos cavalheiros tinha à sua frente, além de apreciarem pregar partidas uns aos outros detinham conhecimentos, logo influência social.

O Arquitecto encenou um acto digno da comédia del arte (hoje sei que género teatral é), acabado de se pentear, de bigode aparado estilo Errol Flynn, colarinho da camisa aberto, calça justa e botas de tacão nos pés, avança até ficar rente ao veículo transgressor, exalta-lhe as virtudes, explica o seu funcionamento, detalha as razões de ter escolhido a vivaz cor e o sentimento da faixa. Sempre num tom entre o alegre e o sisudo.

Sendo rapazola habituado, por óbvias razões, a não levantar a voz aos polícias, ouvi-lo falar daquela forma provocou-me surpresa espantada.

A fluência incisiva do Arquitecto durou alguns minutos, a prosódia artística não aquietou os risonhos contraditores as quais se juntaram o irrequieto Sr. Queiroz, e o Sr. Liberal, a intimá-lo a exibir os documentos. Os cívicos emaranhados entre o receio e o desejo de serem façanhudos preferiram fechar os carões e o subchefe reclamou ver o livrete. Recebeu-o ante o olhar perscrutador dos mais chegados. Sornamente o abriu, folheou-o repetidamente. Fechou-o e entregou-o sem proferir uma palavra. Vamos embora, disse ao polícia. Desandaram silenciosos.

No livrete estava assinalada a barra pomo da inusitada cena na qual o Arquitecto a esticou demonstrando (agora o julgo) talento na sua concepção e representação bem intonada e entonada escorado na humorada malícia sem maldade dos destros amigos companheiros e participantes noutros hilariantes actos.

Flamante chamou a Mulher, galante abriu-lhe a porta do lado direito, rodeou a traseira do carro, sentou-se ao volante e ligou o motor, acenou-nos e lentamente abandonou o espaço da representação no mo meio de toda a espécie de comentários. Tão nítida impressão me deixou que ao longo dos anos quando nos encontrávamos ao mínimo pretexto o levava a evoca-la. Prontamente anuía ao pedido, por isso fiquei a saber do facto de durante algum tempo volta que não volta a autoridade mandava-o parar, lesto estendia os documentos, sempre poupava tempo. Uma das repetições do acontecido foi acompanhada de comentários tecidos pelo seu grande amigo Manuel Reis. Foi um começo, um ponto de partida para jubilosos minutos de garrida alegria.

 

PS. À família, ao João, à Emília, sentidos pesares.

A Primavera chegou e o Inverno atacou

Ter, 28/03/2017 - 10:52


Já muitos tinham feito as sementeiras e muitos escritórios agrícolas estavam repletos de trabalho mas, agora, estão fechados devido a uma avaria no ar condicionado que só funciona no frio, gelo e neve… Há também aqueles que já temem que este tempo tenham afectado a produção de cereja, batata e a vinha, porque podem ter apanhado “chumbo”.
 

No reino do absurdo

Ter, 28/03/2017 - 10:44


Todos os dias nos damos conta de que o funcionamento das instituições está condicionado por interesses que não são assumidos com a necessária frontalidade, para que todos saibamos as linhas que nos cosem o presente e o futuro.

Modernizar Bragança é a proposta da Câmara Municipal

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Qua, 22/03/2017 - 17:30


O PEDU subdivide-se em três áreas distintas, o Plano de Acção de Regeneração Urbana (PARU), o Plano de Acção Integrado para as Comunidades Desfavorecidas (PAICD) e o Plano de Acção de Mobilidade Urbana Sustentável (PAMUS).