PUB.

A CAIXA, CLARO

Anda por aí muita gente a tentar convencer-nos, por um lado, que a Caixa Geral de Depósitos é um banco igual aos outros. Embora, no que convém, se apressem a evidenciar as diferenças, que as há, claro. Pior ainda, esquecem as mais polémicas e que estão, a meu ver, na origem da atual polémica sobre o Banco Público.
Dizem-nos que a CGD é uma entidade financeira que opera no mercado em igualdade de condições com a restante banca da praça. Não é totalmente verdade. É de todos conhecida a inércia inerente à condição humana a que nos tempos correntes se soma o incómodo associado à necessária alteração, uma a uma as contas e rendas mensais pagas de forma automática por débito em conta. Uma base sólida de clientes, que potencia uma grande rede de balcões, é, seguramente, uma invejável mais valia. Rede que não foi angariada em condições de igualdade com os seus concorrentes. Durante dezenas de anos houve contas obrigatórias no banco do Estado, para todos os funcionários públicos, para os depósitos e cauções determinados pela justiça e para a constituição de capital social das novas empresas. Esta situação, numa altura em que o negócio do dinheiro rendia juros apetecíveis (muitos dos depósitos referidos não conferiam qualquer benefício ao depositante) deu à instituição uma invejável posição no mercado. A posição cimeira que tem na praça não lhe advém da sua qualidade enquanto agente de mercado, mas por condições impostas pelo poder político.
Há também a pretenção de querer que fazer uma equivalência entre o acionista único da caixa e o conjunto de acionistas dos outros bancos. Ora há aí uma diferença enorme. Os acionistas privados quando nomeiam administradores e definem a estratégia comercial estão a fazê-lo colocando em jogono seu dinheiro. Já quem manda na administração da avenida João XXI, jogando embora com o seu prestígio, podendo ver-se condicionado na sua carreira política, não arrisca um único cêntimo do seu património pessoal. Os verdadeiros acionistas somos nós, todos os portugueses. E se não é aceitável, por impraticável, que seja uma assembleia geral de acionistas, tal como nas outras instituições, a determinar as orientações e representações da cúpula do banco pelo menos são-nos devidas explicações quando há situações anómalas ou excecionais como o próximo aumento de capital.
Também há quem se erga contra a possibilidade de haver uma comissão de inquérito que escalpelize e publicite as causas do tamanho desastre que se anuncia. Que o prejuízo que vai causar à reputação do maior banco português é inaceitável! Pelo contrário. Prejuízo grande, enorme, ser-lhe-á causado pela desconfiança que a situação atual levanta e agita. Que se apure tudo. Que se responsabilize quem tem de ser responsabilizado. Para que no futuro quem usa o meu dinheiro e o dinheiro do leitor saiba que se o não fizer adequadamente, se o não usar com o verdadeiro intuito e determinação de serviço público, terá de prestar contas perante quem é chamado a suportar as consequências dos desmandos e dos favores feitos aos amigos e correlegionários.
 
Por José Mário Leite

As casas velhas a nordeste

As casas velhas das nossas povoações estão a cair numa derrocada medonha, prenúncio de tantas mortes anunciadas que paulatinamente trazem o silêncio e o abandono às antiquíssimas aldeias transmontanas.
As casas caiem como se caísse um pouco de nós e fica somente uma tristeza profunda olhando os sítios, os recantos onde fomos tão felizes.
Morremos aos poucos em cada pedra e na soleira da velha porta passam as nossas memórias vestidas de luto.
Domingo à tarde na aldeia da nossa infância. Era um dia soalheiro. Entre dois dedos de conversa e a prova do vinho, sempre o melhor do mundo, lá vamos dizendo por dizer, este ano a geada chegou anunciando um mau prenúncio e os netos não irão comer as cerejas do cedo, enquanto as nogueiras ficaram reduzidas a cinza, negando a esperança dum Verão a oferecer-se em mil frutos de infindas cores e múltiplos sabores.
- Dizem que as casas velhas ainda vão valer dinheiro!
Comentava, sem grande convicção, o idoso mais idoso da aldeia que estoicamente tem assistido à fantástica derrocada do casario que penosamente acompanha a morte dos seus donos.
Para passar o tempo fomos ver uma casa abandonada do idoso. Tem curral para cinco juntas de bois, forno, varanda sempre com sol, lá se criaram doze filhos e por lá dormiram criados e pedintes.
Depois, um longo silêncio de recordações e nem o copo bebericado entre duas azeitonas apagou memórias antigas, tempos fecundos do lavrar da horta, do apanhar as batatas, das noites de Verão cheias de lua, enquanto se esperava a água para regar a faceira.
Paramos em frente à casa. Primeiro um imenso terreno circundante. Terra funda. As silvas cresceram imponentes. De onde em onde ainda se podiam adivinhar floreiras que fizeram o encanto das mulheres da casa, zeladoras do altar da Senhora do Rosário. Depois tentamos entrar na grande cozinha transmontana que dava passagem para os quartos com grandes sobrados de castanho velho. Impossível. A casa desmoronou-se, silenciosa, sem grande espavento, não resistindo às últimas invernias.
Não houve palavras. Não se falou mais em comprar e vender. Reinou o silêncio por todo o vale habituado à gritaria dos miúdos que aproveitavam a planura da aldeia, para correr, inventar o jogo, ensaiar a liberdade num País de repressão.
As nossas aldeias são efetivamente um desencontro de culturas, onde as casas velhas contrastam, cheias de pudor, com o luxo das casas novas, bizarras, agressivas, descaradas. De onde em onde há reparações nas paredes de pedra, sobressaindo o tijolo vermelho, ou remendos nos telhados, onde a telha de canal sucumbe perante o fulgor de telas de material plastificado.
Esta “multiculturalidade” empobrece o nosso meio rural. Algumas Câmaras Municipais estão sensibilizadas para este problema. Outras resolvem o fundamental, o mais urgente, que passa pelo calcetamento das ruas, pelo saneamento e culmina com a Sede da Junta de Freguesia, ou Associação Cultural.
Mas valia a pena, apostar num plano integrado de desenvolvimento que devolvesse a dignidade perdida às nossas aldeias que reabilitasse as casas, cheias de história, documentos duma antropologia de época, explicativa dum modo de vida, duma economia, duma infinidade de relações sociais de parentesco e de vizinhança.
Todos concordam que o nosso futuro pode passar pelo turismo de habitação, pelo turismo de natureza. Então temos que criar condições para terminar com o fatalismo duma morte anunciada que passa pelo contar mórbido do próximo morador que vai falecer, ou partir para outras terras.
O nosso futuro é aqui e vale a pena apostar em nós.

São Pedro

De todas as observações iconográficas perscrutadas pelos meus olhos referentes ao Senhor São Pedro a mais vibrante é a da imagem colocada no altar principal da Igrejinha de Lagarelhos. Já o escrevi e volto a escrever. Sim, formidáveis pintores, escultores, gravadores, estatuários e artistas de igual talante têm-se dedicado a oferecer-nos obras de pasmar sobre o chaveiro, que não porteiro, do Céu. Basta pensar em Grão-Vasco, Carravaggio, El Greco, recordo-me da figura de Pedro em mosaico, sem esquecer toda a emanação do significado do seu nome, pedra, rocha, na monumental Basílica de Roma.
Pois bem, o São Pedro de espessa cabeleira e barba canosas, envergando túnica azul, segurando as chaves, morador no modesto templo da aldeia outrora bem composta de viúvas de vivos (a lacra da emigração na origem), agora de viúvas de mortos (a esperança de vida é diferente), recobre as referências citadas que não as esquecendo padecem de não serem de Lagarelhos. Estou a repetir-me, dirá o leitor. Diz e tem razão.
A razoabilidade no referente a afectos (dixit Professor Marcelo) é cercada, comprimida, em forte amplexo emocional resultante dos dias felizes, despreocupados, de gritante júbilo só esmorecido ao pronunciar a palavra Mãe a dirigir-me à minha saudosa Avó materna. O fragmento da perda surgia e surge inesperadamente a lembrar quão importante é fruir a felicidade do momento, a festa em louvor do Apóstolo despido de honrarias consubstanciada em missa cantada, recitação e primeiras comunhões, procissão, farta e forte refeição agora chamada almoço, bailação até as mães quererem, representava borbulhantes horas da dita felicidade. Horas de felicidade! Essas são minhas. Nem o insaciável fisco consegue retirar-mas.
A dinâmica própria da pontada feliz expressa-se no dia 29 de Junho, aguçada irrompe dias antes a impulsionar textos não em sentido figurado, sim escorados no duplo sentir a enfrentar o esquecimento quantas vezes apaziguador de angústias, desgostos, tramas e pesadelos de olhos bem abertos.
Ora, ao evocar Pedro, pedra perene, o Orago da minha aldeia, a nossa aldeia é sempre a melhor, trago à crista da onda, o Santo, o qual antes de pescar almas pescava peixes (autêntico armador), figura no altar-mor, em patamar secundário revejo o Santo Estevão. O Santo Estevão recamado de cerejas e ginjas era levado na procissão sob os ombros dos «garotos», tocavam os gaiteiros, cantavam esganiçadas as mulheres, roucos os homens ao ritmo do Padre Aurélio.
A festa profana decorria na faceira, depois dos gaiteiros vieram as grafonolas, as rebuçadeiras vendiam guloseimas, os jogos tradicionais ressuscitam bravatas e gabarolices de forças, a estupidez dos despiques dos amorios levava a vislumbres cobiçosos, a suspiros incompreendidos, a olhares gélidos das mães e avós sentinelas.
Este passado «passou», o povo está reduzido a um punhado de residentes, o carácter de novidade seria dizerem-me do regresso efectivo de descendentes dos que partiram há dezenas de anos. Como? Para fazer o quê? Estas interrogações aguçam o delírio de utopistas conhecedores do triste fim das utopias, a retoma populacional no Nordeste não é passível de construção fácil, rápida, do pé para a mão. Tenho insistido na necessidade de pensarmos o futuro daqui a quarenta anos, de olhar à nossa volta, sugiro um passeio até Sória, a leitura sobre o fim de cidades e nações, quanto mais pequenos aglomerados populacionais.
A imigração/emigração desertificou o Nordeste, o seu poder dos votos é fraco, os decisores do litoral concedem-nos a graça de sermos pitorescos, de empregarmos o bô de espanto, de consumirmos toneladas de inveja, de enxotarmos os filhos da terra, não esqueçamos: Santos da terra não fazem milagres.
Tenhamos esperança. Festejemos as Santas e os Santos. Não esqueçam; o São Pedro é o primeiro dos Apóstolos, primeiro Bispo de Roma. Padroeiro de Lagarelhos.
Os de São Pedro de Alcântara, São Pedro da Cadeira, de São Pedro da Cova, São Pedro da Marinha, São Pedro de Moel, São Pedro de Rates, São Pedro dos Serracenos, São Pedro do Sul, de São Pedro Velho, entre muitos outros façam o favor de desculpar, só que no tocante a políticos as agências de rating a Lagarelhos concedem três AAA. Percebem a diferença?

Unidade de missão virtual

Ter, 21/06/2016 - 09:53


Perante a desgraça que é o resultado da incúria relativamente ao território nacional, reflectida na concentração demográfica no corredor cada vez mais estreito da festa litoral, o primeiro ministro lançou uma unidade de missão para o desenvolvimento do interior. Uma urgência, como sabemos.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Isaac Oróbio de Castro (c.1617-1687)

Iniciamos uma série de biografias de Trasmontanos de origem hebreia que ganharam celebridade. Começamos por Baltasar Oróbio de Castro. E desde logo uma constatação, algo embaraçosa: O principal estudioso deste médico não é trasmontano, nem sequer português, mas um estrangeiro que sobre ele fez a sua tese de doutoramento: Yosef Kaplan. 
Desde o início que a força da inquisição se abateu sobre a cidade de Bragança e, à entrada da última década do século de 500, isso ficou patente na condenação à morte de 17 brigantinos pelo tribunal de Coimbra. Entrou-se então num processo de denúncias em série e o tribunal ficou “entupido” com tantos processos e tantos prisioneiros, operação que foi brilhantemente tratada por Elvira Mea como o “caso dos falsários de Bragança”.
Neste movimento de prisões foram apanhados os avós e bisavós de Baltasar e foi em meio dessa tragédia que seus pais nasceram: Manuel Álvares Oróbio em 1590 e Mência Fernandes Nunes, em 1596. Em 1617 nasceu Baltasar Álvares e tinha uns 5 anos quando os seus pais abandonaram a cidade e se meteram por Castela adentro, certamente receosos de nova investida da inquisição.
A família fixou residência em Málaga, onde nasceram outros filhos: Ana (c.1624), Leonor (c.1626), Melchior (c.1627), Violante (c.1628) e Clara (c.1632). Chegaram pobres, mas tinham a proteção de Mateus Rodrigues Nunes, tio materno de Baltasar, que era ali administrador dos “millones” (imposto lançado sobre os bens de consumo: carne, vinho, azeite…).
Seria o mesmo tio a pagar os estudos de Baltasar quando este se matriculou no curso de medicina em 1633, na “medíocre” universidade de Osuna, passando em 1635 para a prestigiada universidade de Alcala de Henares. Certamente que o tio também abriu os cordões à bolsa para “comprar” a indispensável prova de limpeza de sangue. Nesta universidade tirou o bacharelato em Artes, mas não consta que tenha feito o exame final para ser diplomado em medicina. Na primavera de 1640 desapareceu, pura e simplesmente. É que, entretanto, os seus pais e uma dezena de outros membros da família foram denunciados à inquisição de Espanha.
O processo dos pais não impediu o Dr. Baltasar Oróbio de entrar na universidade de Sevilha como professor de medicina, em finais de 1642. Terá falsificado o diploma, como escreve o investigador francês Jacques Blamont? 
Dois anos mais tarde pediu a demissão para entrar ao serviço do duque de Medinaceli e, em 1651 casou com Isabel de Pena, filha de um rico comerciante, levando um dote de 6000 sólidos. O “grande doutor” vivia então numa luxuosa casa, servido por 3 escravos e muitos criados. Com ele ou ao lado, viviam os pais e os irmãos, que entretanto casaram e estabeleceram redes de negócio, nomeadamente na área de importação e comércio de chocolate. O tio Mateus é que não estava. Depois de uma curta passagem pela inquisição, fugiu para a Itália, em 1648 e ali aderiu ao judaísmo. Terá sido ele que enviou a Baltasar um livro de orações judaicas, “encadernado em badana negra, com umas raias douradas e com umas cintas para assinalar, do tamanho de umas Horas de Nossa Senhora, de 3 dedos de alto, impresso em língua castelhana”, como testemunhou na inquisição de Valladolid um tal Duarte Rodrigues?
Adivinhando tempestade, o pai, o irmão Mechior e o cunhado Pascoal deixaram Espanha e fugiram para Bayonne, enquanto Baltasar, a mãe, o cunhado Simão e as irmãs Leonor, Violante e Clara eram presas pela inquisição de Sevilha. Saíram reconciliados com sequestro de bens, cárcere e hábito perpétuo no auto de fé de 11 de Junho de 1656. Da pena constava ainda a proibição de se aproximarem de qualquer porto e das cidades de Madrid, Sevilha e Cádis. Incrível: em fevereiro seguinte o nosso médico foi encontrado a passear pelas ruas de Sevilha sem o sambenito!
Sigamos para Bayonne, em França, onde toda a família se encontrava já reunida em 24 de junho de 1660. Em setembro desse mesmo ano entrou o Dr. Baltasar Oróbio de Castro como professor na “medíocre faculdade” de medicina de Toulouse, ganhando “o miserável salário de 290 L”, no dizer de Blamont, que atesta também a falsidade do diploma apresentado. Foi ali professor por 2 anos e ao final de 1662 toda a família se encontrava já em Amesterdão, fazendo-se circuncidar, tomando nomes judaicos e abraçando abertamente o judaísmo. Na Jerusalém do Norte viverá Isaac Oróbio de Castro (nome que ali tomou – “4ª metamorfose”) os seus dias de glória, respeitado e admirado como “um dos mais fecundos apologistas do judaísmo ortodoxo” contra as ideias deístas panteístas e ateístas que ganhavam terreno entre os pensadores judeus, muito em especial os de origem sefardita, com destaque para Baruch Espinosa, João do Prado e Uriel da Costa. Desse combate pela ortodoxia ficaram as seguintes obras de Oróbio de Castro:
. Certamen Philosophicum Propugnatæ Veritatis Divinæ ac Naturalis Adversus J. Bredenburgi Principia was published at Amsterdam, 1684.
. Prevenciones Divinas Contra la Vana Ydolatria de las Gentes (Libro ii, Contra los Falsos Misterios de las Gentes Advertidas a Ysrael en los Escritos Propheticos).
. Explicação Paraphrastica sobre o Capitulo 53 do Propheta Isahias. Feito por hum Curiozo da Nação Hebrea em Amsterdam, em o mez de Tisry anno 5433.
. Tratado em que se Explica la Prophesia de las 70 Semanas de Daniel. Em Amsterdam à 6 Febrero anno 1675.
Se o perfil mental de Oróbio foi moldado na base do terror da inquisição, e as metamorfoses do nome testemunham a sua evolução intelectual, os seus livros são a expressão articulada da comunidade judaica ortodoxa contra o perigo ideológico de pensadores livres. Faleceu em 7 de novembro de 1687 (01 Lislev 5448) e foi enterrado no Beth Haim Cemetery ouder Kerk aan de Amstel, Amsterdam.

Notas e Bibliografia:
1 –  KAPLAN, Yosef, Isaac Orobio de Castro and his Circle, Hebrew University of Jerusalem, 1978.
Yosef Kaplan – From Christianity to Judaism: Isaac Orobio de Castro, translated from Hebrew by Raphael Loewe, Oxford University Press, 1989; Do Cristianismo ao Judaísmo: A História de Isaac Oróbio de Castro, trad. De Henrique Araújo Mesquita, Imago, Rio de Janeiro, 2000.
2 – MEA, Elvira Cunha de Azevedo, A Inquisição de Coimbra no Século XVI. A Instituição, os Homens e a Sociedade, pp. 474-480, Porto, 1977.
3 – BLAMONT, Jacques, Le Lion et le Moucheron: histoire des marranes de Toulouse, editions Odile Jacob, Paris, 2000.
4 – CALDAS, Victoria Gonzáles de, Judíos o Cristianos? El Processo de Fe Sancta Inquisitio, Universidad de Sevilla, Secretariado de Publicaciones, Sevilla, 2004
ANDRADE e GUIMARÃES, Isaac Oróbio  de Castro: o rigor da Lei, in: jornal Terra Quente, de 1.6.2001; IDEM, Isaac Oróbio de Castro e a Academia dos Floridos, in: T.Q. de 15.6.2001.

Por António J. Andrade / Maria F. Guimarães

O DEUS DO FUTEBOL

Dentro de alguns dias, os primeiros jogos do europeu vão começar. Conhecer-se-á então melhor o valor respetivo dos favoritos e dos outsiders desta competição tão esperada pelo nosso povo; já só restaria a final da liga dos campeões para salvar este longo período estival.
Para me preparar melhor - minto, para preparar uma aula, sim… – vi o filme de Kusturica sobre Diego Maradona. Muitos desses documentos são já conhecidos do grande público e sobretudo dos jovens habitados pela paixão do futebol: “ El Pibe de Oro”, criança malabarista da bola, prodígio, que proclama um duplo desejo: jogar o Mundial, e ganhá-lo. Finalmente, só o terá ganho uma única vez, em 1986 no México   ( teatro, no mesmo jogo contra a Inglaterra, o seu golo com a mão, seguidamente, o “golo do século”). Vimo-lo em lágrimas em 1990, aquando da sua derrota contra a Alemanha, e com os olhos flamejantes de cocaína nos Estados- Unidos em 1994. 
Maradona debruça-se sobre o seu passado, com uma lucidez que o torna patético. Sob o efeito da cocaína, só falava com ele mesmo, e ninguém respondia. Parece ter aprendido a ouvir os outros a começar pela sua esposa. Mas vê-se também como o ator da sua própria vida, um ator que não precisa de ler ou recitar o seu próprio texto, mas cujo texto é a sua própria vida.
Autonomia orgulhosa e demente, escravatura por vezes delirante, vulnerabilidade à flor da pele.
O miúdo que se tornou demasiado rico é um pobre herói. Toca-nos pela sua fragilidade. Receamos pela sua desmedida narcísica. Parece-se connosco, no fundo.

Kusturica mostra-nos uma Igreja maradoniana, abençoando os casamentos em nome do Deus Diego e oferecendo-lhes, em vez duma Bíblia, uma bola imaculada. Porque a bola nunca suja, repete Maradona, na procura da pureza e do absoluto.
Sim, verdadeiramente o futebol pode tornar-se uma quase religião, um ópio, a saber, “uma peste emocional”.
Quando vemos a beleza e a inocência da infância dos filhos dos jogadores, como do Ronaldo, não podemos senão desejar para eles, como para todas as estrelas do sistema futebol, que fujam aos destinos dos miúdos que são enganados e contaminados por esta mundialização cínica. Mas tememos por eles, e por todos os jovens cegos por esta glória efémera e enganadora.  

Por Adriano Valadar

Estamos diferentes

Desde a entrada de Portugal para o club Europeu que vivemos de uma forma em que tudo urge, uma forma febril até. A Europa, lenta mas inexoravelmente moldou-nos, formatou-nos para o que hoje somos. O dinheiro a rodos numa fase, a escassez do mesmo na crise e todos os dias ouvir que o nosso futuro depende do relatório A, do parecer B ou de classificações feitas por comissões, correctoras e outros que nos são estranhos, fazem-nos sentir acossados, tornaram-nos muito mais individualistas, menos solidários e onde o único lema consensual é o do desenrasca. Tudo isto fruto das três coisas que a Europa nos trouxe. Uma boa, que são os subsídios; outra má, que são os subsídios; e outra péssima, perversa até, que são os subsídios. Boa, pelos investimentos que proporciona; má, pelas expectativas enganadoras que gera, parecendo, não raras vezes um presente envenenado (40% de subsidio só faz pensar que arrecado 40% do investimento. Não faz pensar que tenho de por os 60% que faltam); péssima e perversa porque nos conduziu a um estado de espirito com o qual ninguém cria, inova ou empreende senão houver subsídio no horizonte do investimento. (lembram-se daquela história em que dois políticos comentando um elenco governativo recém empossado, um pergunta a outro sobre o Ministro da Agricultura: “mas ele sabe alguma coisa de agricultura?” O outro responde: “não, mas sabe muito de subsídios.”) Ao cheiro desta “canela” o País ensandece.
Vem isto a propósito da polémica gerada em torno das Escolas Com Contracto de Associação porque de subsídio se trata. Alguns, por falta de argumentos, querem, à viva força, transformar esta polémica numa guerra entre o ensino público e o privado. Mas não, não é de forma alguma, o tema em discussão. Como é sabido, por imperativo constitucional, o Estado obriga-se à criação duma rede escolar com cobertura Nacional a fim de implementar a escolaridade obrigatória. Mas face à dificuldade em criar a rede Nacional em tempo útil, o Estado socorreu-se de parcerias público-privadas (vulgo Escolas Com Contractos de Associação que não são mais que escolas privadas mas financiadas pelo Estado) a fim de colmatar as falhas da rede. Daqui resulta que só têm razão de existir Escolas Com Contracto de Associação em espaços geográficos que a rede pública não conseguiu incorporar. Mas sucessivos desmandos de vários Governos, uns por clientelismo, outros por compadrio, também por despesismo ou ainda por motivações ideológicos subverteram a ideia inicial. Então surgiram Escolas Com Contracto de Associação em lugares onde nada as justificava. O que agora se questiona é o facto de estas escolas receberem subvenções estatais sendo suplectivas, isto é, existe rede pública no espaço geográfico onde estas escolas estão implantadas. E onde existe rede pública as escolas privadas devem providenciar o seu financiamento fora da esfera do Estado e quem, por qualquer motivo, as deseje frequentar deverá fazê-lo a expensas próprias. Mal se entenderia que tendo o Estado uma escola num espaço geográfico, aí mesmo financiasse uma outra privada para fazer o mesmo que a pública faz. E também não se entenderia que, como consequência da diminuição da população estudantil, o Estado fechasse as suas escolas para manter abertas as privadas por si financiadas. Era a manutenção da lógica das parcerias público-privadas que alguns, que tão acaloradamente as denunciaram por terem sempre do lado do privado os lucros e do outro lado os riscos, pretendem ver concretizadas nessas escolas. Não tem, assim, razão o Governo anterior nas críticas pois fez, e bem, coisa parecida na Saúde. Deixou de comparticipar as análises clinicas dos utentes do SNS feitas fora dos laboratórios do Estado. Não têm, também, razão o homens dos Colégios quando acusam o Governo de querer denunciar unilateralmente os contractos em vigor. O Governo já disse e redisse que os contractos em vigor seriam respeitados escrupulosamente mas que não haveria novos contractos. E foi rigorosamente isso que os homens dos Colégios entenderam. Que os contractos eram para cumprir, sabiam-no eles. Aliás, qualquer Tribunal lhes daria razão. O que eles querem são novos contractos e outros e outros e outros de forma a perpetuar uma renda a que eles entendem ter direito.
Surpreende-me e entristece-me que a Igreja Católica junte a sua voz a este coro de protestos porque este não é o seu patamar. Portugal tem uma dívida de gratidão à Igreja Católica pela sua quota na literacia Nacional.(quantos não se teriam ficado pelo 1º grau não fosse a sempre disponibilidade dos Seminários.) E todo este trabalho a Igreja fez de uma forma abnegada, solidária, com espírito de missão e nunca sugerindo qualquer subsídio. Não haverá, hoje, quem faça outro tanto.
Estamos diferentes.

Por Manuel Vaz Pires

VENDAVAIS - Redonda, mas com dois lados

Há já muitos séculos alguém conseguiu inventar uma coisa tão simples como a roda, mas que revolucionou absolutamente todo o sentido da vida que até esse momento se vivia. Foi uma questão de perspicácia apurada, observação e necessidade. Diz-se que a necessidade aguça o engenho e a prova é toda uma panóplia de invenções que ao longo dos séculos foram surgindo redimensionando o dia-a-dia de todas as comunidades em todo o mundo.
Possivelmente quem inventou a roda viu muitas vezes rolar pedras e troncos pelos campos ou pelas encostas dos montes e daí surgiu a ideia de ser ele a fazer algo parecido com mais utilidade e que servisse para os seus afazeres. Acabaria por revolucionar tudo o que é possível imaginar ao cimo da Terra. Hoje tudo roda sobre rodas e quando empregamos esta frase, é precisamente para dizer que tudo está a andar muito bem. Claro!
Sabemos bem que nem tudo corre sobre rodas hoje em dia e estamos fartos de o referir diariamente a propósito de quase tudo. Mas basta uma simples coisa correr bem para melhorar o sentido de tudo o resto e consolarmo-nos com isso.
Começou há dias o Euro 2016 onde depositamos toda a nossa esperança na equipa das quinas com a esperança de conseguirmos o que nunca foi conseguido. Vinte e três bravos vão iniciar uma batalha enorme contra uma Europa imensa, em nome de um só país, pequeno, mas com uma alma do tamanho do mundo, aquele que conseguimos descobrir e aculturar. A vantagem é que a bola que eles vão movimentar é igual para todos e aí somos iguais. O contra é que a mesma bola que eles vão movimentar, apesar de ser redonda, como as pedras que levaram à invenção da roda, tem dois lados. Precisamente. É redonda, mas tem dois lados. Pois isto não é nenhuma invenção. É que só ganha um dos lados que movimenta a bola!
Os portugueses sempre gostaram de futebol e de fado e durante muito tempo arvorámos as bandeiras destes símbolos e em todo o mundo foram reconhecidos como tal. Amália e Eusébio mantiveram acesas as chamas de um Portugal que a muito custo queria afirmar-se entre os grandes, mesmo que fosse cantando o que os outros não sabem cantar ou chutando uma bola bem redonda que encantava ver passar para dentro de redes alheias. Desses tempos gloriosos ficaram as recordações imensas que continuamos a reviver.
Hoje temos igualmente entre os seleccionados, um símbolo mundial e nele depositamos aquela esperança que nos caracteriza. Cristiano Ronaldo não necessita de muitas referências ou exaltações, pois todos conhecem a sua capacidade e o seu valor, mas vai precisar do valor de todos os outros que com ele vão enfrentar essa Europa que tanto nos amedronta, embora por outras razões! Mantemos a esperança. Por que não?
Não vamos precisar de cantar diferentemente a não ser o nosso Hino sempre que entrarem em campo os valorosos onze da frente da batalha. Não há que temer. Nuno Álvares Pereira quando enfrentou os espanhóis, seis vezes mais do que nós, apesar de muito receio e um medo atroz, acabou por ganhar. Valeu-lhe a coragem de todos e, possivelmente, uma ajuda divina. É disso que continuamos à espera. Uma ajuda divina que aliada à nossa coragem e valentia, mas também muito saber, nos ajude a ganhar o que sempre nos escapou. Há sempre uma primeira vez para tudo e pode ser que desta vez o tal caneco nos calhe em sorte.
Pois é, sendo a bola redonda e igual para todos, basta que saibamos fazê-la rodar e encaminhar para o lado certo, porque, quer queiramos, quer não, só um dos lados vai poder dizer que ganhou. Esta bola da esperança tem um peso enorme, sem dúvida, mas como são vinte e três e mais uns quantos a aguentar com ela, talvez o peso seja bem repartido e possamos trazê-la para este país pequeno de tamanho, mas enorme na ambição.