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NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Moises Rafael de Aguillar (c.1620 - 15.12.1679)

Amesterdão, ano de 1681. Com a aprovação do rabi Aboad da Fonseca garantindo a verdade teológica e conformidade com as regras talmúdicas, foi ali publicado um livro que teve ampla divulgação entre a comunidade hebreia e um título pomposo, como era norma naquela época:
- “Dinim de Sechitá y Bedicá, Isto he, de degolar y visitar os animaes conforme nossa sancta Ley, coligidos do sulhan Aruh, traduzidos na língua Portugueza, por bom, e breve methodo ordenados, por o muy Docto Haham Rabi Moseh Rephael de Aguilar”.
Neste livro se patenteia de forma bem clara o rígido formalismo judaico que impõe regras minuciosas para o abate de animais e preparação da carne que se havia de consumir, sendo proibido comprar carne fora das carnicerias aprovadas e vistoriadas pelas autoridades eclesiásticas. A obra foi impressa na tipografia de David Castro Tartas, e o responsável pela edição foi José Franco Serrano, genro do autor e proprietário do manuscrito, o qual ficou com os direitos da edição por um período de 10 anos. O autor falecera dois anos antes e chamou-se Moisés Rafael de Aguilar.
Antes de mais, diga-se que o proprietário desta célebre oficina tipográfica era originário de Bragança, irmão do mártir Isaac de Castro Tartas, casualmente nascido na localidade francesa que lhe deu o sobrenome, quando seus pais iam fugidos da inquisição.
Aguilar, o autor do livro, era tio materno dos irmãos Tartas, ignorando-se a data do seu nascimento, bem como a localidade: Bragança ou Amesterdão?
Provado está que ele frequentou a Etz Haim (a escola pública da comunidade judia, espécie de seminário) e aparece entre os estudantes apoiados pela “aspaga”, um fundo de caridade para subsidiar os estudantes pobres. Os registos indicam a sua frequência entre 1637 e 1640, altura em que surgiu a polémica envolvendo Uriel da Costa, um filósofo maldito que se atreveu a pôr em causa a ortodoxia rabínica e a tradição talmúdica. E foi então que Aguilar, o brilhante aluno da Etz Haim, fez a sua estreia literária, escrevendo um tratado que circulou manuscrito, contra as ideias heterodoxas de Uriel da Costa, intitulado:
- “Respostas a certas propostas de certas pessoas contra a tradição”. 
Este facto permite concluir que Rafael usufruía já de um certo reconhecimento académico, e marca o início da sua carreira, longa e brilhante, de pensador judaico. Logo no ano seguinte, de 1641, ele partiu com o rabi Aboad da Fonseca para o chamado Brasil Holandês, acompanhando-o alguns membros da família, nomeadamente o irmão Jacob e o sobrinho Isaac Tartas. Ali foi investido nas funções de rabi / hazan da congregação Magen Abraham de cidade Maurícia, em cujo livro de atas aparece o seu nome.
Ignoramos se foi antes ou depois de embarcar para o Brasil que ele escreveu um outro trabalho que ficaria manuscrito: - “Tratado da Imortalidade da Alma”. Integra-se este na mesma polémica que envolveu os livre pensadores judeus na transição do pensamento religioso medieval para o pensamento moderno científico.
Bem diferente, mas igualmente importante para o estudo das origens da ciência moderna é um outro livro de Rafael da Aguilar que ficou manuscrito, com o título de “Significado das letras hebraicas”. É um trabalho que se rege por fundamentos da Cabala judaica e se integra na chamada “literatura curiosa”, com as letras a ganhar valor numérico e o mundo a ser encarado como um complexo campo de forças, cuja inteligência permitirá prever os acontecimentos.
Não é líquido se contraiu matrimónio em Amesterdão, antes de embarcar para o Brasil, mas sabe-se que nesta terra lhe nasceu o filho Isaac e a filha Ribka. A terceira filha, de nome Sarah, nasceria em 1654, ano em que a família regressou a Amesterdão. Mais filhas e filhos lhe deu a sua mulher Ester, que faleceu em 1702, havendo uma diferença de 23 anos entre o rebento mais velho e o mais novo do casal.
No regresso do Brasil, Rafael tinha já um nome feito como académico e intelectual, integrando o colégio rabínico da comunidade judaica de Amesterdão. De contrário, do ponto de vista económico, nunca conheceria um grande desafogo financeiro. E essa realidade fica bem patente no casamento dos filhos em alguns dos quais foram os irmãos que assumiram a função de padrinhos. Ao contrário de outros líderes religiosos, o rabi Aguilar nunca enveredou pelo mundo dos negócios, nem sequer na pátria do “ouro branco”, o açúcar.
No regresso a Amesterdão, abriu uma escola privada, que teve bastante sucesso. E o maior sucesso adveio-lhe da publicação de um livro escolar, mais precisamente, um Compêndio de Gramática Hebraica, no ano de 1660, com uma segunda edição a sair logo no ano seguinte. O editor e impressor foi Joseph Athias, poucos anos antes chegado à Jerusalém do Norte. E esta obra coloca o nosso biografado entre os grandes mestres da língua hebraica.
Académico prestigiado, Moises Aguilar, ao publicar a segunda edição desta obra, aparece já identificado com professor do Etz Haim, a prestigiada escola rabínica de Amesterdão, substituindo o grande timoneiro Menasseh Bem Israel.
Aquela foi também uma época de muita fé e esperança messiânica. E apareceu então, em Esmirna, um cabalista e rabi chamado Sabbatai Tsevi, apontado como sendo o Messias prometido por Deus a Moisés. E foram muitos os intelectuais e dirigentes religiosos que nisso acreditaram e aderiram ao movimento sabbatiano. Foi o caso de Rafael Aguilar e do seu amigo Abraão Israel Pereira, um rico mercador nascido em Vila Flor que logo deixou a sua casa em Amesterdão e se meteu a caminho de Veneza e da Terra Santa para estar com o “Messias” desde a primeira hora.
Concluindo, diremos que Moisés Rafael Aguilar passou à história como um intelectual académico defensor da tradição rabínica e da ortodoxia judaica face às novas ideias que começavam a espalhar-se pela Europa e punham em causa a visão medieval da vida e do mundo. Faleceu em 1679 e foi sepultado em beth Haim Ouderkerk Amstel, lavrando-se na sua campa a legenda e bem significativa: - “Aguilar louvou Israel durante 40 anos”. Trata-se de uma alusão aos 40 anos que mediaram entre o início e o fim da sua atividade como escritor e mestre da lei, e aos 40 anos que Moisés levou a conduzir o povo de Deus para a terra santa. Se apenas dois livros deste judeu sefardita e trasmontano viram então a luz do prelo, duas dezenas de outros ficaram manuscritos e integram o espólio da chamada “Livraria Montesinhos”, em Amesterdão.

Bibliografia:
REMEDIOS, J. Mendes dos, Os Judeus Portugueses em Amsterdam, ed. A. França Amado, Coimbra, 1911.
BERGER, S, Moshe Raphael de Aguilar, a short Biography, in: Classical Oratory and the Aephardim of Amsterdam.
GOLDFARB, José Luiz, Tratado da Imortalidade da Alma e discurso sobre significação das letras hebraicas: análise de dois documentos judaicos seiscentistas. In: MARTINS, R. A.; MARTINS, L. A. C. P.; SILVA, C. G.; FERREIRA, J. M. H. (eds.). Filosofia e história da ciência no Cone sul: 3º encontro. Campinas: AFHIC, 2004, pp. 249-256.

Por António J. Andrade /  Maria F. Guimarães

 

As duas faces

Tal como as moedas o Verão também tem duas faces; a movimentada, eclatamte e afectiva, a negativa, obscena, violenta. As pessoas movimentam-se, até freneticamente, os sentidos recuperam efusões, minoram saudades, desenvolvem pulsões do florir do desejo nuns casos, de a recordação florida dos tempos idos onde as vozes masculinas assumem a condição de aedos. Os que tiveram de emigrar as representam nos dias estivais.
E, no entanto, negativamente, a tal face obscura, representa-se nos dichotes verbais, nas escaramuças jocosas, às vezes nos desforços físicos, já ouvi chamar aos nossos «regressados emigrantes» Mosca de verão. Não, não estou a referir-me a turistas sudarentos, depositantes de lixo, pouco gastadores, autênticas Hordas de sandálias como lhes chamou o famoso escritor Joseph Brodsky, Nobel de 1987.
O mote Mosca de verão levou a senhora licenciada de unhas bem pintadas a enunciar os efeitos da invasão de varejeiras: aumento de preços, confusão no trânsito, gritos nas ruas e cafés, meneios e contorções dos vindos de Franças e Araganças.
Uma rede repleta de palavras a denunciarem antagonismo velhos e relhos numa mistura de Ser por ter no antigamente, esvaído à medida da passagem dos Estios, do ter agora elevar a Ser muitos dos obrigados a pertencerem ao universo da diáspora. Dá trabalho a retirar, uma a uma, cada palavra da rede pesqueira, no entanto, o exercício permite rasgar o véu sorridente de uns e outros à chegada de forma a precavermo-nos contra comentários ao estilo da senhora adversa a moscas, tal como Jaime Gama quando tinha de visitar países africanos na condição de Ministro dos Estrangeiros.
Há tempos rapaz do meu tempo voltou a Bragança ao fim de quarenta anos, tinha a intenção de permanecer oito dias, esteve dois, além de já só conhecer poucas pessoas, ficou agravado, os conhecidos não lhe fizeram vénias, nem lhe afagaram o ego salientando-lhe os seus glosados êxitos. Um pouco à bruta ri-me dos seus pruridos, nem lhe lembrei a frase do não voltes a onde foste feliz, coisas são como são, as mundanidades lustrosas, das chiques estâncias de veraneio, em Bragança tais vanidades valem zero. Rugiu: não volto lá!
É neste ponto que apelido de obsceno e violento o contraste, seja o emigrante analfabeto, seja o letrado, de alta patente militar ou académica, a maioria quando volta à terra carrega o propósito de ser recebida entre nuvens de incenso e mirra, aspergida e perfumada qual rainha de Sabá, por seu turno os dali nunca saídos aguardam exclamações de apreço dada a coragem em terem permanecido, fortes amplexos de louvor, quando não hossanas a quem aguenta nove meses de Inverno e três de Inferno.
A fusão das duas posições é possível quando a inteligência supera a pulsão do despeito, e quando se chega a uma certa idade, nada é mais familiar do que as referências afectivas expressas nas personalidades marcantes, nas figuras singulares, mesmo risíveis, nas ruas, nas praças, nos jardins, nos becos, nas tabernas, nos cafés, nos monumentos, e no…cemitério. Visito sempre o cemitério.
Se a fusão não é conseguida eclodem manifestações violentas titilantes nas respostas mal-humoradas, quando não agressivas, os ajuntamentos potenciam-nas, as reservas e azedumes escoram notícias, agravam males provindos do passado.
A largueza de vistas lastreia a fusão, destroça a desconfiança, importa fruirmos a estação calmosa desvanecendo o nevoeiro derivado dos lúgubres afastamentos, dos desvalimentos de outrora. Por muito sedutoras que sejam outras paragens, a Terra-Mãe vale a aproximação. Que o vinho da saudação eleve os corações, sele as amizades, afaste a ideia de recriminação!

IN MEMORIAM

Soube pelo meu amigo Nelson Rebanda que se prepara, em Moncorvo, uma justa e justificada homenagem aos soldados moncorvenses falecidos na sangrenta e dramática guerra ultramarina levada a cabo pelo Estado Novo contra os movimentos de libertação das antigas províncias ultramarinas que lutavam pela sua autodeterminação. Entre estes está um nome que me é muito caro: Raul Teixeira.
É normal recordarmos, dos que partem, as virtudes e exaltá-las, mas, no caso corrente, não há forma de o dizer de outra maneira: o Raul era um homem bom. Do melhor que conheci na minha aldeia, a Junqueira da Vilariça. Era uma fonte inesgotável de boa disposição e não consigo lembrar-me dele a não ser emoldurado por um sorriso singelo e contagiante. Era um pacificador e empenhava grande energia em resolver conflitos naturais entre jovens da sua idade. Era mais velho que eu e, embora a diferença não fosse significativa, para a minha idade era considerável. Conhecia-o bem porque frequentava a casa dele. Os nossos pais eram amigos e compadres e eu gostava de ir brincar com o Luís e com o Manuel, os seus irmãos mais novos e que me eram mais próximos.
A casa do Raul tinha um enorme quinteiro lageado por onde se entrava para a cozinha e dela subia-se para um espaço aberto que dava acesso aos quartos (foi num deles que vi deitada, quase desfalecida a sua mãe, Luz Abade quando soube da morte do filho) e a uma enorme varanda de madeira. Era mágica esta varanda. Ficava por cima do quintal anexo à casa onde o senhor Eugénio plantara árvores de fruto, entre outras laranjeiras, na altura raras na aldeia. Mas era sobretudo a varanda que abrindo, como quase todas na minha aldeia, para o enorme horizonte do Vale da Vilariça, tinha um atrativo adicional: estava situada sobre o terreiro da fonte onde, no verão, os rapazes dormiam a sesta à sombra das amoreiras e as raparigas vinham à água. Este largo era o centro da aldeia. Nada de importante acontecia que não passasse por aqui. Era aqui que o ferrador vinha “calçar” os machos e os jumentos, era aqui que os pantomineiros faziam as suas acrobacias e palhaçadas, era aqui que os latoeiros faziam caldeiros e romeias de folha e concertavam cântaros, era aqui que chegavam os vendedores ambulantes e era por aqui que passava o padre para ir depois rezar a missa. Era aqui que se fazia a fogueira do Natal, que se jogava ao “abre-e-dá-lhas” e ao par e pernão. Era aqui que as crianças brincavam, as mulheres ralhavam e os jovens namoravam.
O Raul era mais velho que eu. Meia-dúzia de anos, na minha tenra idade, era uma diferença substancial. Os da sua idade pertenciam a um grupo que nos olhava de alto. Eles eram já homens feitos e nós apenas uns garotos. O Raul não. Por bondade ou generosidade sempre me deu atenção e foi ele que me fez o meu primeiro carro de cortiça. Igualzinho ao que o irmão dele, o Luis tinha: uma cana limpa e direita com um furo duplo na extremidade mais grossa por onde fez passar o eixo onde se encaixaram duas rodas aprimoradamente feitas por ele mesmo, com uma navalha da poda a partir de dois quadrados de cortiça; um terceiro pedaço, menos elaborado, enfiado diretamente na cana, fazia de volante. Foi grande a minha alegria e igualmente a sua satisfação expressa no sorriso que ainda hoje recordo.
A dramática morte em terras africanas consagrou-o como o meu herói. Foi nele que me inspirei para escrever o meu primeiro livro “Cravo na Boca” editado pouco tempo depois. Dediquei-lhe um poema (“Post-Scriptum”) que publiquei no meu livro “Pedra Flor” editado mais de vinte anos depois.
A história incompleta, continua por contar.
 
Por José Mário Leite