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De fraca memória (E, no entanto...)

Não é possível olhar para este final de ano, de fraca memória, sem ser abalroado, por dois acontecimentos, um no início e geral, outro, no fim e mais particular. Não é possível começar a escrever mais um texto de opinião neste jornal sem ser constante e permanentemente perturbado pelo inesperado, brutal e desolador desaparecimento do seu diretor Teófilo Vaz. Outros, mais qualificados, lhe farão a justa e merecida homenagem. Para além do amigo, bom, desinteressado e valioso, de várias décadas, o Teófilo foi um companheiro certo, empenhado e competente de todos quantos pretendem fazer da nossa terra um lugar cada vez melhor para estar, viver e visitar. Ao saber da sua morte súbita, num gesto simples de pequena homenagem póstuma, fui reler alguns dos seus muitos e bons editoriais. Está lá tudo! A sabedoria que os anos e o estudo lhe conferiram, a inconformidade que o caráter lhe moldou, a crítica que a vivência lhe impôs e as propostas que a competência e visão futurista lhe proporcionaram. Inconformado com a condição nordestina que conhecia tão bem, não poupou críticas a quem identificava responsabilidades nem elogios aos que reconhecia mérito. Que o seu espírito continue a pairar na nossa terra e o seu exemplo inspire os vários e bons jornalistas da nossa terra. O ano de 2020 fica indelevelmente marcado pelo ensombramento a que a Covid a todos condenou. Sentimo-nos, em muitos aspetos, atirados para a Idade Média, confinados em casa e nos concelhos, para tentar conter a primeira peste deste milénio, como fizeram os nossos antepassados. Mas igualmente sentimos a contemporaneidade ao assistir, quase em direto, ao processo científico de obtenção de várias vacinas, diferentes nos princípios de atuação mas idênticas na eficácia, na segurança, na base científica e, também, na rapidez. Foi um ano notável para a Ciência e para muitos cientistas, quer a nível mundial quer, a nível nacional. Senti a alegria natural de “rever” amigos de há muito, como o Pedro Simas e a Maria Mota, confirmar o reconhecimento de alguns, mais recentes, como o Henrique Veiga Fernandes e o Markus Maeurer, e afirmação de muitos outros como o Miguel Soares, a Gabriela Gomes e a Maria João Amorim, moncorvense por adoção. É nos tempos de crise que os melhores se destacam. Exemplo disso foi, sem dúvida, a liderança europeia onde a competência e capacidade de Ursula von der Leyen nos conduziu com sucesso e a tranquilidade possível, ao processo delicado, mas urgente e necessário de vacinação global de todos os europeus e ainda “descalçou”, a contento, o imbróglio do Brexit onde o irrequieto e extravagante Boris tinha empurrado a inédita separação do Reino-Unido, sem esquecer a coragem, pertinência e sensatez que mostrou ao lograr obter o consenso necessário para a importante “bazuca” financeira com que a União pretende relançar a destroçada economia europeia. Foi, sem dúvida, o ano de Úrsula. É igualmente nos tempos de crise que, outros, não resistindo à penumbra que a pandemia lançou, deixaram vir à superfície visível, propósitos e hábitos menos aconselháveis. Desde a arrogância do quero posso e mando, sobretudo quando posso fazê-lo fora do alcance visual de quem se encontra confinado à incompetência inata ou adquirida para liderar processos complexos e exigentes, mas necessários. Desses, esperamos, se há de esquecer a história e, como tal, não há qualquer conveniência em nomear e particularizar, nesta altura. Um Bom Ano de 2021 para todos nós, especialmente para todos falantes da língua de Pessoa e Camões e muito particularmente todos os naturais, residentes ou, de alguma forma, ligados ao nordeste transmontano.

O que nos dizem os astros?

Sempre que um novo ano se aproxima há quem se dê ao desfrute de consultar os astros. Na verdade são os astros do céu que comandam a vida dos homens, dos animais e das plantas enquanto os da terra governam com ilusões e falsidades. A rotação do planeta em torno de si mesmo determina os dias e as noites e o seu movimento em torno do Sol marca os anos, influenciando os ciclos climáticos e vegetativos. Os astros do céu orbitam a distâncias inimagináveis e luzem no Universo por uma eternidade, enquanto os astros da terra, artistas fugazes, brilham acima de tudo e de todos no céu da política, que é o maior espectáculo. Mudar de ano, portanto, não é um mero rasgar de uma folha de calendário. Porém, se os astrónomos conseguem prever com precisão a posição dos astros do céu, não há bruxo, astrólogo ou sondagem que consiga determinar com igual rigor o posicionamento imediato dos astros que brilham no céu da política. Todavia, qualquer mortal poderá intuir que os próximos tempos não serão felizes, apesar das múltiplas vacinas contra o Covid e os milhões da Europa que já começaram ser distribuídos, à socapa. Mesmo assim muitos portugueses persistem em favorecer os astros que têm defraudado a Nação desde o nascimento da democracia, muito embora a maioria cedo se tenha remetido à mais céptica abstenção eleitoral. Frustração enorme foi a recente emanação da esquerda seráfica conhecida por “geringonça”, que António Costa liderou e a que Marcelo de Sousa, o astro guardião mor do pantanoso status quo, aderiu de alma e coração. Não é de espantar, por isso, que Portugal continue a afundar-se. Os dados mais recentes do Eurostat, o Gabinete de Estatísticas da União Europeia e o próprio  Instituto Nacional de Estatística reforçam a ideia de que o mítico jardim da Europa à beira mar plantado se converteu no subúrbio mais pobre da União. Não só no que que à economia diz respeito. Também a justiça social se degrada constantemente e os tribunais se mostram incapazes de fazer valer a democracia plena. A própria autoridade do Estado é diariamente rebaixada com escândalos recentes e preocupantes, como é o caso da GNR, que deserta e se entrincheira nos quartéis com medo de gangues tribais. Não por cobardia dos agentes mas de quem os comanda e administra politicamente. Este clamoroso fracasso governamental não é culpa da Democracia, não! É do Regime e dos políticos desonestos e medíocres que à sua sombra vegetam. Sobretudo daqueles que veneram a Constituição como se de uma vaca sagrada se trate, esquecendo que, em democracia, as leis são para cumprir e para reformar quando tal se impõe. Novo episódio eleitoral terá lugar já em Janeiro e outros se seguirão, abrindo novas e boas oportunidades para que os portugueses, sobretudo aqueles que se remeteram para a abstenção eleitoral crónica, possam provocar um mais justo reposicionamento dos astros no céu da democracia, criando conjunções astrais mais favoráveis a um Portugal mais justo e digno. Os astros do céu poderão nada nos dizer mas os artistas da política falam de mais e muito raramente cumprem o que prometem. Em nenhuma circunstância devem ser tidos, por isso mesmo, como seres celestiais. PS.: Curvo-me perante a memória do notável transmontano e estimado amigo Teófilo Vaz, dispensando à família enlutada o meu humilde conforto.

Teófilo... meu irmão

O ano de 2020 nasceu, praticamente, com a pandemia que assola o mundo. As más notícias começaram cedo e prolongaram-se até ao seu final. Quando, finalmente, pensava ver, ao fundo do túnel, uma ténue luz com o início da vacinação contra o Covid19, recebi a notícia, para mim, mais improvável, da morte do meu amigo, diria mesmo, meu irmão, Teófilo Valdemar Alves Vaz. Quando o nosso amigo João Manuel Neto Jacob telefonou, não quis acreditar por se me afigurar uma situação tão absurda e insana, que me parecia absolutamente impossível. Seria, com certeza um engano… mas, como sói dizer-se, as más notícias correm depressa. Não tive outro remédio senão assumir a sua veracidade. Os primeiros momentos foram muito difíceis. O que fazer agora sem a sua fina ironia, sem a sua empatia, sem a sua amizade, sem a sua defesa constante e esclarecida daquilo em que acreditava, sem o seu profissionalismo, sem a sua entrega aos projetos que desenvolvia? Nunca mais ouvir as suas histórias, desfrutar do seu sentido de humor, não mais apreciar o seu ar de desdém… Em Maio de 1972, Teófilo foi oferecer-se ao jornal da terra, neste caso o Mensageiro de Bragança, para lançar uma página a que chamou “Página de Participação Jovem” que, mais tarde, se viria a chamar “Participação”. Apresentou-se no gabinete do Director, o padre Manuel Sampaio, que acolheu, com muito entusiasmo, a sua proposta. Com a irreverência própria da juventude, dezassete anos quase feitos (a 31 de maio), propunha-se criar e desenvolver a página “Participação”. Pretendia, com um pequeno grupo de amigos, uma maior intervenção política e social, sem saber bem como iludir a censura ditatorial o que aguçou o engenho e a arte de todos. Foi, sem dúvida, um começo auspicioso e inseguro que a todos direccionou para o jornalismo. À terceira edição da página “Participação” (1972), como habitualmente fazia, fui comprar o Mensageiro de Bragança ao quiosque junto à Livraria Rosa d’Ouro, na Praça da Sé. Levava fisgada a ideia de conhecer Teófilo Vaz e de poder participar na página por ele criada. Escrevi-lhe uma carta e enviei-a pelo correio para o jornal. Hoje rio-me ao pensar no pormenor do correio, tão profissional, quando era tão fácil que nos cruzássemos no centro da cidade que, na altura vivíamos tão intensamente. Mas assim foi. Recebida a carta e prontamente respondida, combinámos encontrar-nos na Praça da Sé para falarmos com o director do Mensageiro, padre Manuel Sampaio que, de bom grado, aceitou a minha inclusão no projeto. Foi assim que nos conhecemos e começámos a colaborar, sempre com proveitosos trabalhos em nome da cidade e da região, nos jornais e noutros sítios. Nessa altura, já colaborava o Carlos Pires e o Ernesto Rodrigues começava a aparecer com alguns textos. Mal sabíamos nós que ali nasceria uma amizade de quase cinquenta anos. Convém referir que, com o passar do tempo, a nossa participação no jornal extravasou a “página” e, alguns de nós passaram a ser autênticos redatores. Também Jorge Morais e Desidério Martins, por exemplo iam apresentando alguns trabalhos. O dinamismo era evidente e a cumplicidade também. Esta forma de intervenção dos jovens não era inédita em Bragança, porque já havia uma página “A tribuna dos novos” em que alguns jovens apareciam a fazer poesia e a escrever textos de reflexão, como Amadeu Ferreira. Teófilo, para mim, é sinónimo de “presença”, de “amigo”, de “irmão”. Quis saber sempre de mim, nos bons e maus momentos. Nunca deixou de estar. Nunca deixou de ser. É impossível esquecer tantas coisas que fizemos juntos. Certo dia, em pleno inverno, durante a noite, com os nossos pujantes dezassete anos, depois de beber umas cervejas, eu, o Teófilo, o Manuel de Jesus e o Lino fomos gritar palavras de ordem contra o Dr. Salazar, para a avenida do Sabor. O Manuel de Jesus, já cansado, deitou-se sobre um pequeno muro que ali havia e adormeceu profundamente. Nós continuámos com a nossa missão até que alguém chamou a polícia que, prontamente se apresentou e nos levou para a esquadra onde tomou nota dos nossos depoimentos. Foi um valente susto. Fomos avisados de que se voltasse a acontecer, seriamos presos. Dessa vez, fomos mandados para casa. Manuel de Jesus continuou placidamente a dormir. Só no dia seguinte soube do sucedido. Depois deste episódio, Teófilo regressou a Angola, Luanda. Durante a sua viagem de barco, enviou-me um postal que guardo religiosamente. Queixou-se da viagem, em barco pouco rápido e prometeu voltar logo que fosse possível. Com a ausência dele, coube-me a mim, a responsabilidade de continuar com a página no Mensageiro, com a colaboração dos jovens que faziam parte do grupo. Podemos dizer que o papel desempenhado por todos nós assumiu algum significado na vida do Mensageiro de Bragança durante os anos de 1972, 73 e 74. Algum tempo depois da saída do Teófilo fui chamado ao gabinete do padre Manuel Sampaio que me transmitiu que o Senhor Bispo me proibia de escrever para o jornal: “Este garoto está expulso”. O padre Sampaio, apercebendo-se da minha desilusão e da hipotética injustiça, sugeriu-me que continuasse a escrever sob pseudónimo, o que fiz, utilizando, a partir daí, os pseudónimos José Valverde e Ricardo Faria. Chegámos ao 25 de Abril de 1974, tempo de todas as liberdades e, nessa altura, em “ato heróico”, decidimos demitir-nos em bloco através de um manifesto publicado no jornal, onde estavam todos os nossos nomes, aparecendo o meu nome em primeiro lugar. A demissão do grupo que escrevia para o Mensageiro de Bragança, deu origem à criação do Jornal “Énie”, que durou cerca de dez meses, até Novembro de 1975. Teófilo Vaz, já regressado de Angola, Ernesto Rodrigues e Carlos Pires foram os grandes impulsionadores desta publicação, sendo seu Diretor o Dr. Eduardo de Carvalho. Eu apenas escrevi um artigo para o primeiro número e fui entrevistado, enquanto Presidente da Associação de Estudantes do Magistério de Bragança, pelo Carlos Pires. Foi essa a minha participação nesta publicação. As nossas lides culturais não ficaram por aqui. Enquanto Presidente do Clube de Bragança, tive a honra de ter como Vice-presidente o Teófilo. Foi durante o nosso mandato que assinámos, no palco do Clube de Bragança, um protocolo com o então, Presidente da Câmara de Bragança, José Luís Pinheiro, que permitiu ao clube realizar três importantes acontecimentos: a 1ª Feira do Livro de Bragança, realizada de 30 de abril a 9 de maio de 1982, no Jardim António José de Almeida. Convém dizer que a ideia da Feira do Livro nasceu de uma crónica escrita pelo Teófilo no Jornal Mensageiro de Bragança, que eu fui repescar; a publicação da revista “Amigos de Bragança”, Boletim de Informação e Estudos Regionalistas, sendo Director o Dr. Eduardo de Carvalho e redatores Marcolino Cepeda, Teófilo Vaz e Ernesto Rodrigues, que também era o proprietário. A publicação do boletim prolongou-se de junho de 1984 até dezembro de 1986. Neste último número contou com a colaboração de João Manuel Neto Jacob; e, ainda, a instituição de um prémio para a realização de Concursos Literários sobre Trás-os-Montes. Cabe-me referir que durante esse mandato, contámos com a colaboração de Jorge Morais na elaboração do cartaz para a Feira do Livro. O gosto pelo jornalismo foi-se construindo paulatinamente e entranhando-se. Passou a assumir um espaço que era obrigatório preencher. Assim fez Teófilo embrenhando- -se na imprensa regional, esticando esforços pela rádio… tornou-se jornalista sem deixar de ser Professor. Incutiu valores de perseverança nos seus alunos, abriu horizontes e mostrou passados. E desde aquele sábado, em plena Praça da Sé, em que me gritou: “Já nasceu!”, tornou-se PAI, talvez o seu melhor papel. Deixa três filhos: Pedro, Helena e Inês; e uma neta, Maria Clara. E as nossas tertúlias, já homens casados, em noites incertas, lá pelas onze da noite, na minha casa, na rua do Loreto, regadas a vinho, cervejas ou outros quejandos, acompanhados por petiscos que a Mara, a minha esposa, preparava, com a ajuda de um ou outro elemento do grupo, numa mistura de sabores vários. Diria que a Mara ficou a conhecer-nos muito bem e se tornou mais um elemento do grupo. De tudo se falava, umas vezes riamo-nos e, por vezes, chorávamos por amigos que já não estavam. Ali nos perdíamos em histórias, romances e poemas, em anedotas e um quase-nada de má-língua. Nunca era tarde. Nunca nos cansávamos e, muitas vezes, ao raiar o dia, ensonados, dizíamos: “Até qualquer dia.” Com a certeza absoluta de que nos podíamos voltar a encontrar um dia qualquer, à mesma hora, no mesmo local… Já passou algum tempo desde a última vez em que todos estivemos juntos. Nunca mais conseguiremos reunir-nos. Custa-me admitir as ausências dos que já partiram. Amadeu Ferreira, Alberto Fernandes… e agora tu, Teófilo… São muitos amigos para perder em tão pouco tempo… As nossas vidas não voltarão a ser as mesmas. “Mudar o destino” foi o teu último editorial no Jornal Nordeste. Infelizmente, o teu destino não pode ser mudado, mas podemos todos, se assim o quisermos, mudar o destino desta região na qual tu decidiste viver e criar uma família. Onde conservas alguns dos teus melhores amigos. Região pela qual sempre lutaste. Bragança agradece. Obrigado amigo pelo tempo que sempre me dedicaste.

Marcolino Cepeda 

Um espírito livre

Trunfa angolana, densa barba, verbo solto, assim nos apareceu, na Praça da Sé, Teófilo Valdemar, que entraria em breve no Mensageiro de Bragança, onde pontificava Carlos Pires, em cuja casa da Rua do Norte ele se aboletava, quando as horas se distraíam madrugada fora. Saiu Carlos Pires uns tempos, ficámos Marcolino Cepeda e eu. Com Manuel de Jesus, Teófilo assinaria coluna de reflexão crítica sobre a política nacional. Fazer jornalismo antes do 25 de Abril, numa cidade fechada, não era pequeno risco. O director do semanário, padre Manuel Sampaio, dava- -nos liberdade na escolha dos assuntos e contornava a censura prévia. Esta definia-se após o almoço, no café Chave d’Ouro, à esquerda de quem entrava, onde se cumprimentavam as autoridades civis, militares e religiosas, como rezava a sintaxe do Estado Novo. Veio a liberdade de Imprensa. Não esperávamos, por isso, a decisão episcopal de, em Outubro de 1974, ver o director afastado, caso que se tornou nacional. Os colaboradores lavraram (redigi eu) comunicado contra os que só viam vermelhos à frente, que trariam o inferno à região. Assinaram, além do escriba, Teófilo Waldemar (hesitava em V / W, antes de ser Teófilo Vaz), Marcolino Cepeda, Humberto Gil, Carlos Pires, Desidério Martins, Onofre de Castro e Manuel Domingues. A segunda experiência em democracia indecisa deu-se com o ènié – Uma Voz do Nordeste Português, cujo número zero saiu em 23 de Abril de 1975, 30 edições até 24 de Dezembro. Dirigido por Eduardo Carvalho, eram redactores Carlos Pires e Teófilo Waldemar, com a liberdade de movimentos semanalmente em perigo. Entrei na equipa mal regressado de França. E tudo se precipitou com texto meu de 26 de Novembro sobre um comício do Partido do Centro Democrático e Social resumido em vontade assim expressa por Galvão de Melo: «Temos que destruir os comunistas se não queremos ser destruídos por eles.» Havia assaltos a sedes dos partidos de Esquerda, atentados e rebentamentos quase todos os dias. Frequentar o café Ponto de Encontro era apodarem-nos de comunistas, que não éramos. A vida acalmou ao entrarmos na Faculdade de Letras de Lisboa, Teófilo e João Jacob em História, eu em Filologia Românica. Aquele, contudo, vivia em Castanheira do Ribatejo e não se interessava pela vida jornalístico-literária de Lisboa, aonde aportou, entretanto, Carlos Pires, para encarreirar na Imprensa escrita. Passara a vestir bem, inesperada gravata, constituiria família cedo. Mas a preocupação era regressar à terra, onde se sentia pássaro livre. Nas férias dos meus cinco anos de Hungria, multiplicávamos sessões nocturnas, ele bebendo a suas duas cervejas, entre informações de primeira água, Marcolino e eu mais comedidos. Recordo como, em Agosto de 1982, batemos em Conversa Acabada, a que assistíramos na Torralta, e, já na sua casa da Estacada, discutindo, equacionámos a federação, ou coisa do género, de nós, aquém-Douro, com a Galiza. O filme era sintoma de uma ruptura mental, com implicações económicas e estratégicas, no tecido da nação, que ele denunciaria até ao último suspiro. Em 1984, relancei Amigos de Bragança, ainda dirigido por Eduardo Carvalho e redactado por Teófilo, Marcolino e eu. Na fotografia que acompanha a entrevista ao presidente da Câmara José Luís Pinheiro, Teófilo já assume o rosto de hoje, embora com mais cabelo. Prosseguimos noitadas com Jacob e Jorge Morais; em Agosto de 1988, mudámos para a lareira do pré-casadoiro Marcolino, ladeado pela Mara, incansável. Nos últimos 32 anos, era em casa destes que reuníamos, sempre que eu subia a Bragança. Às vezes, passavam meses sem se verem, e menos um esquivo Jacob. A mesa, já composta, perfumava-se de conversa à solta, entre farpas e projectos, enfim louvando a renovação a que o director procedia no Jornal Nordeste desde 2015. A partir dos anos 90, contam-se outras experiências: A Voz do Nordeste, intervenção radiofónica e comentários de má-língua, Imprensa escolar, reunindo ao ensino cargos e iniciativas que muito valorizaram a Escola Secundária Emídio Garcia. Os 150 anos do ex- -Liceu (2003) significaram comunhão excelente entre gerações. Fica um percurso em defesa da terra sagrada do Nordeste. Ficam as conversas depois da meia-noite, saídos do café Flórida, quando Marcolino e eu, no luar da Praça da Sé, o animámos a filiar-se no Partido Socialista – de facto, ele desejava um Partido Soarista, tão indefectível era de Mário Soares. Não admirava menos a beleza sob forma de mulher, que resumia na sua; os filhos completavam-no. E, para estranheza minha, gostava de cozinhar. Ao dar-me boleia em noites de sinceno e geada até ao Bairro da Mãe d’Água, o banco estava sempre pejado de papéis e jornais. Esta dispersão de décadas merecia uma recolha de textos que iluminassem o historiador e político (no melhor sentido), para reflexão nossa. A tristeza é uma ponte que nos leva à margem da saudade e da admiração pelo espírito livre que foi Teófilo Vaz, querido Amigo.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- O clã dos Rodrigues Ferreira

Em memória de Teófilo Vaz. Foi o Teófilo que nos convidou a escrever para o jornal, confessando que era seguidor das nossas crónicas no Terra Quente. Com esse convite, diremos que é o primeiro responsável pela investigação das raízes judaicas de que aqui vimos dando conta desde há 4 anos e meio, em 236 números do jornal. Preparávamo-nos para enviar este texto ao Teófilo quando tivemos a triste notícia da sua morte. Curvamo-nos perante a sua memória. Não foi apenas a sua família que ficou mais pobre. Foi o jornalismo, foi a cultura Trasmontana. Saibamos nós honrar a sua memória, continuando a trilhar os caminhos que ele nos abriu. Que a terra lhe seja leve.

Entre os 9 judaizantes presos naquele dia 5.11.1714, contaram-se dois filhos de Pedro Cardoso e Esperança Rodrigues. Antes de seguirmos o acontecimento, olhemos um pouco para a família. Pedro Cardoso era natural de Vinhais, filho de Diogo Cardoso, curtidor e Mécia Álvares, ambos presos em 1658 e penitenciados no auto de 23.5.1660. (1) Esperança Rodrigues, era natural de Bragança, filha de Henrique Rodrigues, também curtidor e Beatriz Fernandes. Aquele era já falecido em Setembro de 1662, quando Beatriz contava 38 anos e se apresentou na inquisição, a confessar culpas de judaísmo, sendo mais tarde chamada para ouvir sua sentença no auto de 26.10.1664. (2) O mesmo caminho seguiu Esperança Rodrigues, que acompanhou a mãe em ambas as viagens, sendo ainda solteira, de 14 anos de idade. Também solteiro e a morar em Vinhais, estava Pedro Cardoso quando foi preso pela inquisição, em 1660, saindo condenado em cárcere e hábito no auto de 9.7.1662. (3) Casados, Pedro Cardoso e Esperança Rodrigues estabeleceram morada em Bragança. E estabeleceram-se também como tendeiros. Era uma profissão mais limpa e prestigiante que a dos pais, curtidores. Esperança e Pedro criaram 12 filhos, uma poderosa dinastia comercial, que se ligou a outras importantes famílias da nação hebreia de Bragança, como a dos Raba, dos Ledesma, dos Pissarro e dos Lopes da Silva. (4) E tornaram-se fabricantes de seda, ato revelador da ascensão social dos curtidores e tendeiros. Maria Henriques, uma das 7 filhas de Pedro e Esperança, casou na família, com Diogo Ferreira, seu tio paterno, também fabricante de sedas, preso pela inquisição de Coimbra, em cujos cárceres faleceu em 5.6.1699. (5) A ligação à família Ledesma foi estabelecida com o casamento de Luísa Josefa Henriques, com o Dr. Gabriel Ledesma, então já viúvo de Angélica da Silva. E foi exatamente em Agosto de 1713, com a prisão do Dr. Gabriel Ledesma e de António Rodrigues Ferreira, (6) seu cunhado, tecelão de mantos de seda, que começou a tormenta dos filhos de Pedro e Esperança na inquisição. Aos 25 anos, António continuava solteiro, como solteiros se mantinham seus dois irmãos Manuel e Francisco Rodrigues Ferreira, que foram igualmente presos no ano seguinte, em Novembro de 1714, integrando a “leva” a que nos vimos referindo. (7) Os 3 moravam na rua dos Oleiros, juntamente com as 3 irmãs solteiras, e eram vulgarmente chamados os irmãos Cardoso. E também na Rua dos Oleiros era a casa de Gabriel Ledesma, onde se reuniam em sinagoga, como testemunhou Domingos Pires, criado que foi do Dr. Ledesma, perante o comissário Roque de Sousa Pimentel: - Disse que sabe por ver, que alguns cristãos-novos desta cidade se ajuntam às noites uns em casa dos outros, porque na rua aonde ele testemunha mora viu que vão para casa do médico Gabriel Rodrigues Ledesma, morador na mesma rua António Rodrigues Ferreira e seu irmão Francisco Rodrigues Ferreira, cunhados do mesmo médico (…) e os dias em que fazem os ditos ajuntamentos é nas sextas-feiras e sábados pelas 8 para as 9 horas da noite, e as cerimónias que fazem não sabe, porém que assistiu em casa do dito médico, por tempo de um ano, que cerram as portas e não admitem cristão-velho algum e ainda os próprios criados mandavam para fora de casa ou para a loja. (8) Do ponto de vista profissional, já vimos que os irmãos Cardoso eram fabricantes e mercadores de sedas, competindo esta última tarefa sobretudo a Francisco Rodrigues Ferreira, o líder da empresa familiar, que se tornou conhecido por “trazer cargas de mantos” de Bragança para vender em Lisboa, “aonde estava 8 a 9 meses efetivos” em cada ano. Aliás, acabaria mesmo por estabelecer morada em Lisboa, ”aonde não só se achava nas arrematações das comendas vagas das três ordens militares, mas ainda em vários tribunais, como são a Junta dos 3 Estados, a Casa de Bragança, o Conselho da Fazenda e Casas de Fidalgos particulares, onde arrematavam vários negócios”, adquirindo “grande crédito e cabedal, com o que se fez conhecido em todo este reino”. Partilhando a casa, também trabalhariam juntos os irmãos e irmãs que ficaram solteiros e terão acumulado um enorme capital, construindo um poderoso grupo económico, em cuja órbita gravitavam interesses de muita gente, do clero e da nobreza, incluídos. E isso explicará por que apareceram conhecidos padres e fidalgos, 3 familiares e um comissário da inquisição, como testemunhas de defesa dos irmãos Cardoso. Veja-se, a título de exemplo, uma declaração de Francisco Xavier de Sousa, fidalgo cavaleiro, escrivão da câmara de Bragança: - O réu é o melhor reputado entre as pessoas da nação. Ou o do comissário do santo ofício, licenciado José Morais Antas: - O Réu, Francisco Rodrigues Ferreira o conheço por falar com ele muitas vezes, assim nesta cidade como em Lisboa e outras partes e nunca lhe vi fazer coisa alguma que tivesse laivos de cerimónia judaica. (9) Deixemos, porém, o processo inquisitorial e voltemos a Bragança à prisão de Manuel e Francisco Rodrigues Ferreira e aos 2 dias que ficaram “depositados” em Bragança enquanto se preparava a leva para Coimbra. Manuel Ferreira foi depositado em casa de Sebastião Gomes, cristão-velho, rendeiro, morador na rua da Costa Pequena. Francisco Rodrigues Ferreira, esse foi entregue ao sargento-mor António Malheiro da Cunha, fidalgo-cavaleiro por alvará de 18.4.1694, morador na rua da Alfândega, filho de Baltasar de Morais Sarmento. (10) Assistiu-se então a um contínuo vai e vem de gente de uma casa para a outra, sobretudo durante a noite, em visita a um e outro dos irmãos, devendo agrupar os visitantes em 3 categorias. Antes de mais, a mãe, os irmãos e os amigos cristãos-novos, a maioria dos quais já antes tinham passado pelas cadeias do santo ofício. Obviamente que iriam ajudar a concertar a defesa dos réus, pois todos se denunciavam uns aos outros, devendo coincidir os depoimentos, no tempo, no modo e nos participantes de eventuais cerimónias e declarações de judaísmo. Naturalmente que cada um arranjaria uma desculpa, para o caso de serem questionados. Assim, um tio deles, que antes passara pelas cadeias da inquisição, diria que foi ao sapateiro encomendar sapatos novos para a viagem até Coimbra e depois lhos foi a levar. Notou-se depois um conjunto de 3 padres, curas de diferentes igrejas da cidade. Possivelmente foram mostrar a sua solidariedade e prontificar-se a servir de testemunhas de defesa. Diriam que foram chamados pelos presos que lhe encomendaram a celebração de missas, sinal de devoção cristã. Compreende- -se que apareçam depois como testemunhas de defesa dos mesmos réus, abonando o seu bom comportamento cristão. Um terceiro grupo era constituído por gente da maior nobreza da cidade. Certamente que lhe deviam favores, porventura deviam-lhe dinheiro e tinham contratos para acertar. Não se estranharia, por isso, que depois aparecessem igualmente como testemunhas de defesa. Claro que tudo isso era contrário aos regulamentos da inquisição, que proibiam qualquer contacto com os prisioneiros. Disso haveremos de falar.