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Fake news

Fake news é um neologismo recente que significa “notícia fabricada”, “notícia forjada” em suma, notícia falsa. E se notícias falsas já não faziam falta também não se precisava de uma nova forma de as designar pois não faltavam maneiras. Desinformação, inverdades, pós-verdades, factos alternativos, contra-informação, facto político, erro técnico e agora fake news. Qualquer uma destas designações serve para etiquetar uma boa mentira. Como Kellyanne Conway, assessora de Trump, que, quando confrontada com a falsidade das suas declarações, retorquiu dizendo que estava a apresentar factos alternativos. Ou Nuno Rocha, director do jornal “O Tempo”, que um dia fez um artigo sobre uma reunião do Conselho da Revolução, que mais parecia uma acta, com registo de tudo desde as presenças até às intervenções dos conselheiros mais polémicos. Ora essa reunião nunca se realizou. Quando Nuno Rocha foi colocado perante esta realidade, justificou-se alegando ter sido um erro técnico. Também por esse tempo, tempo do Marquês de Solares e do General Janes, Marcial Rebelo de Souselas (criações de Artur Portela Filho) criava os seus “factos políticos” que não eram mais que jogadas de desinformação e de contra informação de forma a perturbar os adversários políticos e feitos com a irreverência de quem é capaz de chamar “lélé da cuca” ao patrão ou de quem consegue responder a um adversário político perguntando “estás pires, oh Lucas?” Aliás, quando tomou posse de Secretário de Estado, toda a capa do Expresso era a sua fisionomia com uma só legenda: O Facto Político. 

Estas são “fake news” individuais, fruto da vontade de protagonismo, da vaidade ou da obstinação política. Há, ainda, fake news inócuas que são aceites e a História está cheia delas. Como no caso do Rei Eduardo VIII, do Reino Unido, que abdicou, segundo a versão oficial, por amor de Wallis Simpson, uma americana divorciada que os ingleses, dizia-se, não aceitariam como futura Raínha Consorte. Mas a verdade é que o Rei foi forçado a abdicar por manifestas simpatias nazis. O parlamento e sobretudo Wilson Churchill não lhe perdoaram.

Também o relato que nos fizeram da Batalha de Aljubarrota, em que os Portugueses estavam numa desproporção de 5 para 1 em homens, é manifestamente uma fake new.  Mas eu gosto de pensar que foi verdade. (também, caramba, foi a única vez que lhe ganhámos.) Tal como o jornalista de “O Homem que matou Liberty  Wallace” que quando soube a verdade desabafou: “ entre a legenda e a realidade preferimos a legenda.”

Mas há fake news que são criadas de forma perversa e com dolo intencional. Foi o caso das notícias sobre as armas de destruição maciça no Iraque. Com uma campanha de intoxicação da opinião pública altamente pressionante, toda a gente acreditou que o Iraque tinha, de facto, essas armas. Nem tínhamos razões para pensar que nos estavam a enganar. Foi preciso que se destruísse um país com muitas centenas de milhares de mortos para, já com o Iraque completamente esventrado, darmos conta do monumental embuste que nos montaram e do não menos monumental logro em que caímos. Tivemos culpa de não ter escrutinado mais a informação que nos deram mas, de facto, não era imaginável que houvesse no mundo um “bando dos quatro”, homens cuja ambição e perversidade estivessem no ponto de um completo desprezo por vidas humanas ou países soberanos. Como poderão eles dormir?

A fake new do momento é a referente à tentativa de assassinato de um antigo espião russo pelo KGB. A história conta-se em duas linhas. Assim: Skipral era um espião Russo que a páginas tantas começou a vender informação ao Reino Unido. Desmascarado, foi julgado e condenado a 16 anos. Cumpriu 4 em presídio e depois entrou num programa de troca de espiões. Saiu, pois, da Rússia, refez vida em Inglaterra e 6 anos passados aparece inanimado, vítima de uma tentativa de envenenamento levada a cabo pelo KGB, que, para o efeito, utilizou um poderoso neurotóxico de fabrico russo. Esta é a notícia na versão oficial. Mas escrutinando um pouco a notícia, usando a lógica elementar e o nexo de causalidade, constatamos que não passa de uma FAKE NEW. Vejamos:

1 – Porque quereriam, agora, os russos eliminar Skipral, actualmente um homem sem qualquer relevância no mundo da espionagem? Como se entenderia quando tiveram tantas oportunidades de o fazer? Desde o dia em que o prenderam, e até antes, passando pelo tempo que esteve em prisão preventiva e depois quando esteve em prisão efectiva, tempo não lhe faltou para o fazerem. A seguir, se era assim tão perigoso, não deveria ter sido incluído no programa de trocas de espiões e seria obrigado a cumprir a pena na íntegra (16 anos e só cumpriu 4. Ainda hoje lá estava).

2 – A seguir, temos uma força de elite, com um grau de eficiência temível, encarregada de eliminar dois civis indefesos. Mas em vez de usarem métodos simples, e eles conhecem tantos, optaram por ensaiar um potente neurotóxico de fabrico russo. Quer dizer que quiseram assinar o crime pois o veneno é exclusivo russo. Deixar rastos que os incriminem não é imaginável vindo duns serviços secretos.

3 – Por fim, o potente neurotóxico, tão temível, tão proibido por todas as convenções, revelou-se um fiasco. Não matou ninguém. (Pode ser russo mas de certeza foi comprado na loja dos 300.)

Que história é esta!? É evidente que estamos na presença de uma manifesta fake new. Mas o facto de não ter nexo, de ser incongruente e de estar, até, mal imaginada não deixa de ser, no entanto, a versão oficial. E enquanto tal, teve a força necessária para provocar uma das maiores crises diplomáticas desde a invasão do Iraque, que por sua vez também teve origem numa fake new.

Fake news sempre as ouve e sempre as haverá. O único antídoto que nos resta é o nosso espírito crítico, o escrutínio permanente a toda a informação e não nos deixarmos seduzir acriticamente pelo politicamente correto sob pena de deixarmos criar um pensamento único. Curiosamente, nos tempos da ditadura, em que tudo eram limitações, restrições, proibições, em que tínhamos de coexistir com a censura, o exame prévio, o índex e em que qualquer atitude ou pensamento que fugisse à ortodoxia institucional era considerado comportamento desviante, nesse tempo, dizia, nunca nos furtámos ao escrutínio, ao debate quer interior quer em núcleos restritos. Não podia ser público, era privado. Mas havia. A ditadura não conseguiu “cortar a raiz ao pensamento” pelas razões que o poeta sabia. Paradoxalmente é em democracia, que em teoria tudo devia escrutinar e debater, que não vemos isso acontecer. Há uma certa anestesia social que provoca alheamento. Recebemos acriticamente a informação que nos dão. Isso faz-nos temer pela veracidade da revelação de um artigo da “Time”, tão interessante como arrepiante, que a “Visão” transcreveu. Dizia assim: “os homens de Silicon Valley sabem programar o comportamento humano, para o melhor e para o pior”.  Isto faz-nos lembrar a pergunta mordaz de Bokowski: ”Consegues lembrar-te do que eras quando o Mundo te disse o que devias ser?”

 

P.S. (1) – Bukowski também ele criador de uma fake new quando fez constar que Sartre teria dito que ele, Bukowski, era o “maior poeta americano vivo”. Apesar de falsa, a notícia não deixou de ter os efeitos publicitários pretendidos. São assim as fake news. Feitas para cumprir uma função que não a da informação e muito menos a do esclarecimento.

 

P.S. (2) – Adriano Moreira tem um receio que enunciou mais ou menos desta forma: “nas manifestações desenquadradas o imprevisto espreita a sua oportunidade”. Para quem tinha dúvidas quanto à razoabilidade deste temor veja-se o caso do “Brexit” ou a eleição de Trump em que o desfecho é atribuído à influência das redes sociais. E as redes sociais são do mais desenquadrado que pode haver: não tem causa, não tem chefe e não tem bandeira.

Será que o Mundo vai ser assim?

NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - André Nunes (n. Torre de Moncorvo c. 1518)

Procuramos, com este texto, celebrar os 500 anos do nascimento do primeiro advogado de Torre de Moncorvo de que temos notícia – Dr. André Nunes, que concluiu o curso de direito civil na universidade de Salamanca em 8.5.1539. (1) Procuramos fazê-lo ressurgir da tumba do esquecimento e trazê-lo para a galeria dos mais ilustres Moncorvenses.   

Por 40 anos, o Dr. André Nunes foi homem liderante da comunidade cristã-nova de Moncorvo. Cerca de 1550, ao início da sua carreira, encontramo-lo a disputar com o poderoso e cristão-velho Luís de Azevedo, as eleições para o cargo de provedor da misericórdia. (2) Mais tarde, em 1580, seria ele a congregar gentes da Torre de Moncorvo no apoio ao Prior do Crato, como rei de Portugal. Por isso foi mandado prender pelo corregedor da comarca, Diogo Dias Magro, para acalmar os levantamentos. (3) De resto ele era o advogado da Casa Sampaio e mantinha estreitas relações com as principais famílias da comarca. A sua morada era no castelo e isso é bem significativo da sua posição na sociedade Moncorvense. (4)

Nascido por 1618 em Torre de Moncorvo, foram seus pais um António Nunes, de Mogadouro e uma Branca Lopes, de Moncorvo. Trata-se de duas famílias, com largo historial na inquisição.

André Nunes casou em Vila Flor, com Leonor da Mesquita, que lhe deu 6 filhas. A mais velha chamou-se Isabel da Mesquita. Casou com seu primo direito, o médico Gaspar Nunes. (5) O casamento realizou-se por 1574, altura em que André Nunes tinha morada estabelecida no Felgar. Como eram primos e necessitavam de dispensa para casar, foi o próprio Gaspar buscá-la a Roma. Logo depois do casamento, Isabel e Gaspar embarcaram para o Perú.

Branca Nunes, a segunda filha, casou com outro médico, nascido em Bragança, morador em Vila Flor, Luís Álvares da Silva. Viveram algum tempo em Vila Flor, passando a Viana do Castelo, pelo ano de 1580.

Com o Dr. Francisco Rodrigues da Silva, advogado, irmão do anterior, casou Ângela Nunes, a terceira filha do casal. Ficaram morando em Torre de Moncorvo, trabalhando ele com o sogro. (6) As 3 filhas mais novas (Susana, Ana e Inês) mantinham-se solteiras.

Em Vila Flor tinha o Dr. André Nunes uma tia materna chamada Isabel Lopes, (7) casada com Vasco Fernandes, que era tabelião. De entre a numerosa prole, o casal teve uma filha chamada Violante Álvares. E Vasco Fernandes empenhou-se em arranjar para ela um noivo cristão-velho da nobreza da terra: Gaspar da Rosa, cavaleiro-fidalgo. Em dote de casamento, Vasco Fernandes fez-lhe escritura da própria casa, que tomaria à sua morte, e da propriedade do ofício de tabelião, que logo passou a exercer. O casamento realizou-se por 1571 e pouco depois faleceu Vasco Fernandes.

O maior opositor a este casamento seria o primo de Violante, o advogado André Nunes, que, naturalmente, ganharia em Gaspar Rosa um inimigo de estimação. E mais ainda, em um estranho personagem que entretanto chegou à “terra Flor” de D. Dinis: o inquisidor de Évora Jerónimo de Sousa, nomeado abade da matriz de S. Bartolomeu. Imagine-se: Gaspar da Rosa deixou a própria casa, para a oferecer de morada ao novo abade-inquisidor! (8)

No dia 30.9.1577, em casa do inquisidor, com o padre João Álvares, a servir de escrivão, foi formalmente registado o testemunho de Gaspar da Rosa contando que o Dr. André Nunes se opôs ao casamento “da menina” com um cristão-velho e como ele era considerado por saber muitas coisas da lei de Moisés e o diziam “bem-aventurado”.

Um mês depois, Gaspar da Rosa e Violante Álvares entravam na inquisição de Coimbra, onde foram chamados e Violante contou para os inquisidores o que se tinha passado, dizendo, nomeadamente:

- Haverá 7 anos, tratando-se do seu casamento com Gaspar da Rosa, tabelião, foi ter a sua casa o licenciado André Nunes, sobrinho da mãe dela testemunha, o qual disse à dita sua mãe e irmã Maria Álvares e a seu marido Gaspar Vaz, estando todos juntos em uma câmara “que pena era casar ela testemunha com um cristão-velho que não defendia a sua lei e a sua regra” (…) e a dita sua mãe e irmã o gabavam que sabia muito e era bem-aventurado. (9)

Obviamente que na inquisição de Coimbra logo se abriu um processo contra o Dr. André Nunes, que ficou aguardando outras culpas.

Passaram 5 anos e o abade foi mandado assumir o papel de inquisidor, com poder delegado pelo tribunal de Coimbra para “visitar” terras do Minho e Trás-os-Montes, oficialmente investigando crimes contra a fé cristã. E em Março de 1583, depois de Guimarães, Vila Real e outras terras a “visitação” chegou a Moncorvo onde, nos dias 20-24 daquele mês, na “casa da inquisição”, (10) foram ouvidas as pessoas que se apresentaram a denunciar.

Maria Martins, solteira, “que se agasalha por onde pode” foi uma das denunciantes, declarando o seguinte:

-Haverá 2 anos que veio para esta vila e morou um ano em casa de André Nunes (…) e em todo esse tempo, viu ela denunciante que nem eles nem as filhas, que então eram crianças, não comiam carne de porco, nem toucinho, nem a cozia em panela que se havia de fazer cozinha para eles, mas antes a mandavam cozer em outra panela estremada para os criados e gente que traziam a trabalhar (…) por algumas vezes lhe dava sua ama coelhos para os moços, mas que não é recordada vê-los comer aos ditos seus amos… (11)

Outro testemunho implicando como judaizantes o Dr. Nunes e a família foi prestado por outra criada que serviu em sua casa apenas um mês. Disse que aos sábados eles se vestiam com roupas lavadas e não trabalhavam e que também nunca foram cozer pão ao forno em dia de sábado.

No seguimento destas e outras denúncias feitas no decurso da visitação de Jerónimo de Sousa, foram logo instaurados uns 38 processos e presas umas 17 pessoas de Moncorvo, acusadas de judaísmo. Entre elas contou-se André Nunes, 2 irmãos, 5 filhas e 2 genros. Escaparam a filha mais velha e o genro, que estavam no Perú, bem como a sua cunhada Inês Fernandes “que não se achou”. A mulher, já falecida, foi também processada, acabando os seus ossos por ser desenterrados e queimados na fogueira de um auto da fé, 4 anos mais tarde. (12)

Encarcerado em Coimbra, e como geralmente acontecia, o Dr. André Nunes viu acrescentar as culpas, especialmente pelas suas filhas que contaram como em casa faziam jejuns judaicos e guardavam os sábados começando na sexta-feira à tarde com a limpeza e o acender das candeias com torcidas novas e azeite limpo. A mais grave, porém, das acusações relacionava-se com a posse de uma bíblia. Veja-se, por exemplo, o testemunho de sua filha Ângela Nunes:

- Disse que o seu pai tinha uma bíblia que era um livro grande encadernado de tábuas, e não tinha conto por cima, pelo qual lia algumas vezes algumas histórias da lei velha a ela confitente e a sua irmã Branca Nunes e que às outras mais novas não atentou nisso. E que este livro tinha seu pai em casa escondido ora por detrás dos livros, ora entre a roupa e outras vezes o levava consigo debaixo da capa a casa de Inês Fernandes, viúva de Torre de Moncorvo, sua cunhada, mulher que foi de Francisco Nunes, irmão de seu pai, por as suas casas serem pequenas e não terem onde esconder.

Em sua defesa e de toda a família, foi elaborado por André Nunes e pelo genro Francisco Silva um documento com o título: “Petição dos cristãos-novos de Torre de Moncorvo”. (13) Trata-se de uma exposição arrasadora dos métodos usados na visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa e um fantástico quadro das lutas sociais e políticas envolvendo a comunidade hebreia e os homens da nobreza e da governança da Torre de Moncorvo naquela época. Não será este o espaço para fazer a análise do documento e terminamos dizendo que, depois de penitenciado e libertado o Dr. André Nunes, nenhuma notícia mais temos sobre ele nem sobre nenhum dos seus familiares diretos. Dir-se-á que ele e a sua a família desapareceram definitivamente.

 

Notas:

1-A.U.S. Cursos, lv. 555, f. 23v.

2-ANTT, inq. Lisboa, pº 12301, de Luís Vaz.

3-IDEM, pº 8450, de Francisco Rodrigues da Silva.

4-ANTT, inq. Coimbra, pº 276, de Branca Nunes.

5-Gaspar Nunes era filho de uma irmã de André Nunes. Também ele se formou na universidade de Salamanca. Antes de 1568, foi prisioneiro da inquisição de Valhadolid, segundo informação de seu primo Duarte Nunes. – ANTT, inq. Coimbra, pº 68.

6-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… in: jornal Nordeste nº 1121, de 8.5.2018.

7-IDEM, jornal Nordeste nº 1075, de 20.6.2017.

8-ANDRADE e GUIMARÃES, Jerónimo de Sousa, inquisidor de Évora e abade em Vila Flor, in: jornal Terra Quente de 1.6.2009 e seguintes.

9-ANTT, inq. Coimbra, pº 266, de André Nunes.

10-É conhecida como “casa da inquisição” por nela se fazerem geralmente as “audiências” relacionadas com diligências inquisitoriais. Na verdade deveria chamar-se “casa dos Jesuítas” pois tem insculpidas no alçado principal as armas daquela instituição e nelas terá funcionado uma “aula” de português, latim e filosofia. Em tempos do Estado Novo serviu de sede do núcleo local da Legião Portuguesa.

11-ANTT, inq. Coimbra, livro 662, f. 64.

12-IDEM, pº3710, de Leonor da Mesquita.

13-MEA, Elvira Cunha de Azevedo – O procedimento inquisitorial garante da depuração das visitas pastorais de Braga (Século XVI), in: Actas do Congresso Internacional do IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, Volume II/2, pg. 67-95.

Vendavais - A semana das loucuras

Se todas as coisas corressem sempre tão bem como desejamos, tudo seria muito mais fácil e todos andaríamos muito mais felizes. Infelizmente não é isso que acontece.

Apontarmos um tempo, um momento, um dia em que tudo corre mal, até pode ser fácil, mas verificar que toda uma semana é profícua em acontecimentos que clamam a atenção de todos, é mais difícil. E é tanto mais difícil, quanto os acontecimentos são díspares na sua temática e opostos nos seus objetivos. A sequência dos acontecimentos ao longo da semana quase não deixou espaço para refletir adequadamente sobre cada um, mas deu-nos a sensatez de separar os que poderiam merecer mais atenção. Foi o caso de Alcochete, foi o Sporting, foi o casamento Real, foi a final da Taça, enfim! Claro que cada um teve a sua própria apreciação sobre cada um deles e certamente nem todos acabaram por chegar à mesma conclusão. É natural.

Aquela triste terça-feira de mau agouro e de presságio temeroso, não estava na mais leve esperança de alguém que pudesse acontecer neste país onde o futebol é rei, apesar de nem sempre ser apreciado como deve ser. Nada ainda está explicado. Nada ainda foi julgado. Ninguém ainda foi condenado. Afinal o que se sabe sobre o assunto? Que razões estão por trás deste atentado terrorista levado a cabo por duas ou três dezenas de energúmenos, contra jogadores de um clube nacional? Quem os mandou? Quem os instrumentalizou para este atentado? Quem é o culpado?

Se pensavam que isto não teria consequências estão enganados. Claro que elas são terríveis e ao longo da semana foram bem visíveis. Foi um corrupio de asneiras sequenciais que teve como figura principal o presidente do Sporting. Ele não teve o bom senso, se é que o consegue ter, de estar calado e se ter demitido dando a oportunidade de os sócios poderem escolher nova direção em tempo oportuno. Mas não teve esse discernimento. Durante toda a semana os jogadores ficaram confusos, sem saber o que deveriam fazer e com uma final da Taça de Portugal para jogar. Jogar! Jogaram, mas perderam. Felicidades para o Aves. Mas como haveriam de jogar estes homens agredidos fisicamente, feridos no amor-próprio, acusados pelo presidente, desmoralizados, sem treinar uma semana inteira e tendo somente como referência maior o seu próprio treinador que foi quase um pai para todos eles durante estes cinco dias? Jesus foi o seu único amparo. Que motivações deveriam ter eles para jogar? Pois se calhar até poderiam ter feito mais do que fizeram, claro. Mas não contaram com a força do Aves e isso fez a diferença. Perderam a Taça e perderam a última esperança de ganhar mais alguma coisa e de entrar na Liga Europa pela porta grande. Agora terão obrigatoriamente as eliminatórias. E o que virá daí?

Mas a semana teve também momentos mais alegres e um deles foi o casamento Real. Contudo, a loucura que o rodeou não foi menos intensa do que os outros acontecimentos. Ao longo da semana de tudo se falou sobre este casamento. Foi o desconhecimento do costureiro que fez o vestido da noiva, o costureiro que elaborou o vestido da mãe da noiva, como iria vestido o noivo, quem levaria a noiva ao altar, enfim uma panóplia de questões, que sendo menores, foram enaltecidas suficientemente pela comunicação social. E no sábado aí estavam as televisões de todo o mundo a transmitir o casamento do Príncipe Harry que até é somente o quinto na linha de sucessão ao trono! Para segundo lugar foi remetida a Rainha de Inglaterra que viu tudo passar-lhe ao lado. Para Megan Markel tudo foi novidade, mas não ensaiou bem o papel, embora isto não fosse propriamente mais um dos filmes em que participou ao longo da sua carreira. Seja como for, foi a protagonista e embora a mãe ficasse na sombra já o pai sobressaiu por motivos diversos. Mas que loucura a dos paparazzi comprados para justificar o que não seria justificável, mas que a providência divina acabou por castigar com uma intervenção de urgência que realmente o impediria de comparecer no casamento da sua filha! Só loucuras!

Volto, para acabar, à Taça de Portugal. Parabéns ao Desportivo das Aves. Foi quase humilhante ver a tristeza dos jogadores do Sporting depois de jogo. Mesmo perante o pior cenário que se imaginasse, nenhum deles equacionou a derrota com toda a certeza. E para BdC isso estaria fora do previsível e a vitória seria uma moeda de troca a jogar por ele na semana seguinte. Teve azar. Agora pode ser que caia na realidade e veja as aneiras que tem feito e se demita. Já é tempo. Chega de loucuras.

Contra os canhões

Tudo em cima forte gente? Essa saúde? Isso é que é preciso. Neste momento estamos entre intervalo de futebóis. Aquela altura em que o futebol dá lugar às novelas do futebol. A grande novela que é o futebol com os actores de sempre mas com aqueles episódios longuíssimos até às duas da manhã e o enredo a mastigar aquela ladainha do sai não sai, do trai não trai, do quem matou, terá sido o motorista, o Cajó ou a matriarca dos Albuquerque e Costa? Difícil. É esperar para ver e aguentar com mais 40 minutos de intervalo com anúncios a baldes de esfregona e lubrificantes sexuais. Aproveite para ir à casa de banho e meter uma bucha que o chorrilho está prestes a recomeçar. Bem, mas neste momento de transição não posso fugir ao que tem marcado a actualidade. Resumidamente, o encontro LGBTI nas ruas de Bragança e a Eurovisão. De um lado um evento dirigido a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais e do outro uma alegre passeata pelas ruas de Bragança. Mais, Portugal ficou em último na Eurovisão e é um grande alívio. É o médico a dizer-nos “você está como o aço, não se preocupe”. Essa sorte toda junta que tem tido ultimamente é normal, deve ser da humidade, mas isso passa. Tem andado a abusar da sangria e do presunto com melão, não é? Pois, eu sabia, tem de beber mais água e cortar nos fritos. O português já andava aqui “tu queres ver que já arranjei alguma. Logo eu que fui sempre um gajo certinho que nunca se meteu em aventuras”. Mas não, está tudo a voltar à normalidade, ao devido lugar. Bem, é curioso que um povo que organiza um festival chamado Eurovisão com tanto colorido, poupa e circunstância para mostrar que se há coisa que sabe fazer é organizar uma boa festarola, venha depois sentir algum desconforto com uma mini-caminhada LGBTI.ETC. Isso é o mesmo do que a gastronomia trasmontana vir agora dizer “não aprecio sandes de fiambre porque é uma comida carregada de colesterol” e além disso “eu só como cenas glúten free” de maneiras que eu ando sempre com uns frutos secos na carteira por isso não se preocupem comigo que eu fico bem com esta saladinha. Neste tipo de assuntos há sempre duas posições. Os que dizem sim senhor, concordo, força, se Bragança quer ser uma cidade global e inclusiva, faz parte da caminhada e além do mais isto é apenas uma espécie de prelúdio porque a população LGBTI.ETC de Bragança no mês que vêm pode pôr-se dentro de um carro e passadas duas horas está em Madrid para uma coisa à séria, à escala mundial, que faz parte do roteiro turístico da cidade e tem gajos com abdominais muito mais definidos. Depois há o típico por mim tudo bem, nada contra, desde que não venham para o meu lado nem se metam comigo. Sendo que no que diz respeito a estes últimos nunca sabemos se é gente que em caso de efectivamente se meterem com eles, irão impulsivamente pôr em prática a táctica do javali e desfazer à marrada e à martelada tudo o que mexer, independentemente da orientação sexual, ou se, por outro lado, vão ebulir por dentro durantes uns breves segundos antes de despirem o casaco e se juntarem-se à festa de camisa de alças, dançando, acompanhando de cor as letras da Glorya Gainor e da Eurovisão e abraçando a causa como se tivessem esperado toda a vida na solidão de uma eterna adolescência pela chegada abençoada deste dia. Ainda assim, no entanto, estou convencido de que estas duas abordagens, embora aparentemente discordantes, possam perfeitamente caber dentro da mesma pessoa. J. Rentes de Carvalho, ilustre trasmontano, escreveu que esta região tem uma forma “muito Zimbabué ou Partido Comunista Chinês de tratar estas coisas”, varrer a homossexualidade para debaixo do tapete, fechá-la na gaveta dos tabus. Meus incomodados senhores e minhas incomodadas senhoras, tapem os ouvidos. Já taparam? Aí vai: Em Portugal qualquer cidadão tem o direito à reunião e manifestação e, pior, os homossexuais podem casar e adoptar crianças. Exacto, eu compreendo que o senhor padre não vos tenha falado disso aos domingos, mas é verdade. Quiçá o armário dele esteja cheio daqueles espinhos, flagelos e grilhões de que ele tanto fala para conseguir sair de lá. China, 16 milhões de homossexuais fachadamente casados para mostrar que sim, que sabem construir uma família segundo as primordiais leis da natureza humana e limpar a face das respectivas famílias ainda que toda a gente saiba que cada um continua a seguir o seu indeclinável caminho. E nem sequer acreditam em Deus! Mundo estranho este, realmente. Também foi por isso que transmitiram a Eurovisão às fatias, corta aqui, corta ali, tudo à base do “parece mal”. A sério, não queiram essa felicidade para os vossos filhos. Uma parada por mais ou menos movida que seja não adianta grande coisa. Mas mostra que há gente determinada e que Bragança é uma cidade actual e cosmopolita que não se abstém de acolher e dar voz a todos por igual. Isso vale muito e acho que até deve ser motivo de orgulho. Grande abraço!

António Barril

Um acaso trouxe-me a má nova de António Barril ter falecido. E, quem é este sujeito perguntará o leitor? Foi Ajudante de Encarregado da Biblioteca Itinerante da F.C. Gulbenkian que numa gélida tarde de Dezembro de 1961 participou na inauguração da Biblioteca N.º 46, nela trabalhando até se reformar nos idos de 1975. Na itinerância cultural trabalhei com ele quatro anos, no desempenho de outras funções em visitas espaçadas e ajudei-o a reformar-se. Homem de uma lealdade inquebrantável, incapaz de uma traição, sabendo estar e dono do sentido da medida, amigo das boas e más horas, o Barril deixa-me uma profunda saudade e mágoa por só agora ter sabido do seu passamento.

Trago o Barril à colação a fim de retirar do casulo do esquecimento pontos de referência da urbe bragançana dos anos sessenta por ele ser uma figura conhecida especialmente na área dos desporto envolvendo motorizadas, do derramar vivacidade numa tertúlia existente no café Progresso, emprestar alacridade às convivialidades polvilhadas de comeres sempre que a ocasião se proporcionava, desde a taberna do Senhor Miguel «Careca» até aos cafés do Loreto, sem esquecer a famosa, logo célebre, Casacas onde se escondeu no forno de cozer pão na sequência de uma rusga da GNR comandada por um tenente ciumento, parvo e informador da celerada PIDE, por isso fugiu a seguir a restauração da democracia.

O meu amigo era um homem dos sete ofícios, melhor dito instrumentos, profícuo caçador apesar de uma distorção ocular, DJ antes de aparecerem, ele levava música a muitas festas na região, põe disco, tira disco, mecânico sabedor no desfazer avarias de todo o género, namorador inveterado, exímio na perscrutar rostos no decorrer de serões de lerpa (quem lerpava ficava desnudo como Cristo, daí a referência) e sintéctico, exímio no sete e meio, acima de todas as virtudes e de todos os pecados sem serem capitais o seu talento na condição de corredor de motorizadas.

Na altura mantinha acirrada rivalidade com a família Reis moradora na Caleja das Pedras, a acrimónia era dupla, todos desenvolviam actividade vendendo e consertando motorizadas, todos disputavam palmo a palmo os circuitos, primacialmente o de S. Bartolomeu. O Barril vendia a Famel, a todo transe procurava aumentar quota num mercado em ascensão, o triunvirato Reis procedia do mesmo modo, daí constantes remoques, suor, quedas e esfoladelas no decurso das voltas e voltas no propósito de ganhar a taça maior e um prémio pecuniário. As motorizadas gozavam de gorda e calejada popularidade nas aldeias, lavado desejo junto dos rapazes citadinos da nossa sempre amada Bragança. Alguns leitores, certamente, recordam-se da flamante Famel do Manecas Pinheiro encostada ao passeio coadjutor do Café Flórida ou da Barbearia do Senhor César Barata, homem bom, bem-humorado e amigo de azucrinar os ouvidos do Sr. Monteiro «dos jornais».

O escritório/depósito da Itinerante situava-se na casa dele, algumas pessoas batiam à porta na procura de determinado livro, o Barril sabia ser coriáceo, o Dr. Carmona e Lima salientava a sua afabilidade, o mesmo elogio lhe fazia o Inspector Dr. Miranda Mendes, a contrastar com outros, o Secretário do Governo Civil surgia muito cedo, isso nunca foi obstáculo a ser convenientemente atendido e porque nutria grande apreço pela leitura requisitava tantos livros quantos queria. Nesse ponto seguia a prática do primeiro responsável pela arca do tesouro circulante, o conhecido poeta surrealista António Barahona da Fonseca.

O acima escrito escancara a cumplicidade existente entre nós, mais velho 13 anos, aos 18 anos de idade tive no António Barril cuidadoso instrutor em várias áreas dos conhecimentos práticos, ensinou-me a defender quem nos dava o pão nem que para isso fosse necessário chegar a vias de facto, e aconteceu, ensinou-me a ser amigo do meu amigo, ensinou-me quanto vale a gratidão, ensinou-me a nunca esquecer quem me fazia bem, pois…também me ensinou a considerar o risco contínuo um muro, ou não tivesse sido meu competente instrutor para obter a carta de condução.

Sinto-me incapaz de escrever quanto me dói a sua retirada do Mundo dos vivos. A minha maior gratidão vai para ele, verdadeiro amigo, para ele que à sua maneira me libertou de atavismos defeituosos originados pela rigidez educativa, que me facilitou a adaptação a outras formas de ser e estar, de viver.

Obrigado Mestre. O discípulo não te esquece.

Biblioteca Alberto Fernandes

A comunidade torguiana de Bragança lembrou, no passado dia 15, o antigo docente Alberto Fernandes, atribuindo o seu nome à Biblioteca do Agrupamento de Escolas Miguel Torga. Convidado para a cerimónia, no quadro da semana cultural, e precedendo evocações da mulher e filhas do homenageado, lembrei momentos da nossa vivência desde 1971 e fiz sentir a necessidade de publicitar o poeta estreado em 1981 e grande contista inédito.

Alberto José Sousa Fernandes era um aristocrata do espírito. Sem jamais renegar a origem de classe, cuja mundividência trazida de Benlhevai (Vila Flor) animará a sua ficção, era de espírito agudo, algo tímido, concentrado, num tom de voz que evitava exaltações, desse realismo medido que desembocou no estoicismo da sua fase terminal. Consciente da distância entre o viável e o impossível, preferia afastar-se ou recuar («Não vale a pena»), quando, por vezes, as soluções intermédias são o único sucedâneo à ansiada perfeição.

Presença discreta, mas cúmplice, na Bragança culturalmente efervescente de inícios de 70, em cujo Liceu Nacional fez grandes amizades, teve a fase de esquerda radical na Faculdade de Direito de Lisboa, que o levou à prisão no Outono de 1974. Descreu da política, ia vivendo feitos e desfeitas do clube do coração, emigrou, veio para terminar o curso e empregar-se, no pavor de se levantar cedo, ‘empregado cansado’ (diria António Ramos Rosa) à espera do autocarro – que entrará pela sua poesia. As noites políticas ao cheiro do Fervença ante-abrilino eram, entre 1979 e 1981, de sonhos epicuristas e fervor cinéfilo e literário, enfim convencido de que deveria publicar alguns versos.

Antologiámos, assim, quatro do distrito, sendo que Acácio Trigo e eu já éramos batidos nestas lides. Março ou As Primeiras Mãos (1981) tira o título dos conjuntos de Victor Rodrigues e Alberto Fernandes, e deste registei a contenção, «a terra a abrir-se», «o suceder límpido das coisas», das águas do Império (ou do exílio), mas sempre «do mesmo lado».

Decidindo-se por Bragança nos anos 80, até ao funeral de 27 de Outubro de 2016, escolhia a família, a advocacia, reuniões prandiais com os amigos, a docência – e, sobretudo, uma entrega devocional à Escola que agora o celebra. Com um bom vinho que a doença não recomendava – sendo bem sofridos os últimos vinte anos –, entregava-se à paixão do teatro, aos clássicos, à emergência bloguista e à escrita, intensa, de ficção.

Quem o conheceu admirou, naturalmente, a sua arte de contar histórias, como figuras típicas encadeavam uma linguagem do terrunho, irradiando ironia e boa disposição de um fundo enevoado de melancolia. Se destruiu muito texto, na insatisfação de criador, restou, pelo menos, um conjunto de 24 contos, a editar. É um pouco da vida, nossa e desta terra, que aí se encontra. Urge, pois, reunir o poeta e ficcionista, dando redobrado sentido à Biblioteca com o seu nome.