António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 7 - A “nação de Bragança” atraída pelo Algarve

A partir de 1588, com a derrota da “invencível armada” luso-castelhana, as marinhas da Inglaterra e da Holanda conheceram um extraordinário desenvolvimento. Para isso muito contribuiria o transporte das mercadorias comercializadas pela “gente da nação”, sempre em alerta na Península Ibérica, por causa da inquisição e trabalhando em rede com os que fugiam para outros países, nomeadamente a Holanda, já que na Inglaterra só mais tarde floresceu a nação sefardita. Em 1651, visando sobretudo a concorrência dos barcos holandeses, Cromwell decretou o Acto de Navegação, que proibia barcos estrangeiros de transportar produtos de e para Inglaterra. Então, sim, a marinha inglesa ganhou hegemonia mundial. E com o domínio dos mares, alcançou a hegemonia no comércio internacional. Portugal, que fora o país das descobertas e da navegação e tinha um imenso império colonial, viu a sua marinha destruída na “armada invencível”. E recuperada a independência de Espanha, ligou-se preferencialmente à Inglaterra, aliado tradicional desde o século XIV. Dada a sua dependência comercial e militar, Portugal aceitou mesmo ser tratado como se fora um “Protetorado Inglês”. Como o nosso trabalho é sobre a gente da “nação de Bragança” que vimos seguindo em itinerâncias constantes, vamos até ao Algarve. É que, nas últimas décadas do século XVII, registou-se um forte movimento de gente hebreia de Bragança que foi “assistir” para o Algarve. E antes de falarmos dessa gente, vamos tentar conhecer a ambiência do local naquela época, tentando saber as razões desta atração pelo Algarve. E começamos com uma pergunta: será que a disputa comercial entre holandeses e ingleses se refletia então no Algarve? Será que também ali se impunha a hegemonia marítima e comercial dos ingleses? Como lidaram os migrantes de Bragança com a situação? Não podemos dar uma resposta categórica e definitiva, pois isso exigiria a consulta de múltiplas fontes e um trabalho muito aturado, que não se compadece com uma publicação jornalística semanal. No entanto, podemos apontar indícios ou tendências, baseados fundamentalmente num corpo reduzido de processos da inquisição, já que a grande maioria dos que foram instaurados aos judaizantes brigantinos presos no Algarve pertencem à inquisição de Évora e não estão disponíveis para consulta. Socorremo-nos de alguns autores (Virgínia Rau, Alberto Iria, Borges Coelho…) que estudaram o assunto, muito especialmente a Drª Carla Vieira, cuja tese de doutoramento nos mostra cristãos-novos que embarcam em portos do Algarve com destino ao Brasil e vão circular pelo Perú, Colômbia, Panamá, Costa Rica… como foi o caso de Lopes Pero, natural de Beja, morador em Faro, embarcado em Lagos. E os apresenta também frequentando as feiras do Alentejo e mais ainda a percorrer os caminhos de Castela a negociar figos, amêndoas, sardinhas ou atum, como Estêvão Rodrigues ou Pedro Seixas. E até casos extremos de itinerância mercantil como o de Marcos Gomes, estabelecido em Tavira, que se deslocava até Lamego a comprar castanhas para ir vender em Cádis e Sevilha. Ou o sapateiro Cristóvão Rodrigues, de Portimão, que ia a Sevilha comprar coiros. Especificamente, consultamos o registo de barcos estrangeiros que chegavam a Faro, os quais eram obrigatoriamente vistoriados pelo comissário da inquisição, com a preocupação maior de ver se traziam livros a bordo, a proveniência do barco, a nacionalidade e qualidade religiosa da tripulação e o responsável/destinatário da carga. Raramente aparece também referida a natureza dos produtos transportados. Comecemos exatamente pela análise, muito ligeira, do livro de visita às naus estrangeiras entre 1662 e 1683, o único que se encontra à leitura e que mais se enquadra na época que estamos trabalhando. Desde logo, regista-se uma predominância de barcos ingleses que chegam a Faro: mais de 200, o dobro dos holandeses, o triplo dos espanhóis, muito poucos franceses e alguns genoveses. Acresce que os barcos ingleses não vinham apenas dos portos do seu país “em direitura a Faro”, mas também de outros portos. Assim, contamos uns 14 que chegaram a Faro vindos da Terra Nova. E contamos muitos que vinham de Tânger e até de Cádis, em Castela. Veja-se um exemplo: - Aos 21 de Outubro de 1662, chegou a este porto de Faro o navio chamado Mercador de S. Lucar, que veio de Inglaterra a Tânger e dali a este porto, remetido a Henrique Janson, cujo capitão veio de Londres em direitura a Tânger, com 20 companheiros, todos ingleses. Mais estranho ainda: são barcos ingleses (e também holandeses) que aparecem transportando trigo dos Açores para Faro e assegurando transportes de colónias portuguesas, como Cabo Verde e Azamor e mesmo de Lisboa, Porto ou Aveiro para Faro. Um dos casos referidos: - Aos 19 de Outubro de 1672, chegou o navio Samuel, vindo do Porto, de Portugal, remetido a Samuel Hismail, mercador inglês desta cidade de Faro, sendo a tripulação inglesa. A generalidade dos barcos vinha destinada a mercadores de Faro, bem individualizados, os quais dominariam as importações para o Algarve. Também aqui é esmagadora a vantagem dos 7 mercadores ingleses estabelecidos no Algarve que receberam o carregamento de 296 barcos, contra 42 que vieram destinados a 3 mercadores holandeses. Samuel Hismail, entre 1672 e 1683, recebeu 68 barcos, (média de 1 barco em cada 2 meses), terá sido o mais ativo mercador inglês de Faro, seguindo-se Henrique Janson, que recebeu 45 barcos, entre Setembro de 1662 e fevereiro de 1673 e Guilherme Croque com 41 barcos, entre setembro de 1662 e Setembro de 1669. Refira-se que em Faro, foram descarregados 6 barcos vindos de Inglaterra dirigidos a Tomas Smith, mercador inglês estabelecido em Tavira. E esta e outras referências semelhantes, mostram que, por aqueles anos, o porto de Faro dominava absolutamente sobre todos os portos algarvios. Barcos estrangeiros dirigidos a mercadores holandeses, contamos 42, sendo que 40 traziam carga para Samuel Joaquim e seu sócio estabelecidos em Faro. Dirigidos a Maximiliano (?), mercador holandês, sedeado em Portimão, chegaram 2 navios, remetidos de Amesterdão. Mercadores portugueses responsáveis por mercadorias importadas, contamos 12, um dos quais a trabalhar em Portimão e que receberam 59 barcos estrangeiros. Muitos aparecem furtivamente, descarregando apenas um ou dois navios e apenas 4 marcam presença de algum relevo e que foram: António de Castro, a quem vieram dirigidos 6 barcos, entre 1662 e 1666. Vieram 3 de Amesterdão, 1 dos Açores, mas com bandeira holandesa e 2 de Cádis, um deles com a tripulação constituída pelo capitão do navio, “8 companheiros, franceses, católicos e 3 marinheiros”. António de Castro, natural de Lagos, morador em Faro, seria preso pela inquisição de Lisboa em 17.7.1669.  Anos depois, em 1680, aparece-nos um Manuel de Castro, a receber 2 barcos e Gaspar Dias de Castro recebendo 6 navios. Pelo menos, este último seria filho de António de Castro, natural e morador em Faro. Também ele foi preso pela inquisição de Évora, em Dezembro de 1669. À exceção do primeiro, remetido de Hamburgo, com tripulação hamburguesa, todos os outros barcos vieram de Amesterdão. Quanto a Gaspar Dias de Castro, sabemos que, por 1689, trazia arrematada a distribuição do tabaco no Algarve, a crer na informação do médico António de Mesquita, que, na audiência de 15.5.1703, acrescentou: - Haverá 13 ou 14 anos, que se ausentou para as Índias de Castela onde, ouviu dizer, que se fizera padre da Companhia de Jesus. Durante 7 anos, entre 1662 e 1669, João Ribeiro, alferes e depois capitão, foi o mercador português assistente em Faro que mais barcos estrangeiros recebeu (16, no total). O primeiro registo que aparece no livro citado, refere-se a um navio inglês chegado de Tânger. O segundo carregamento, em Dezembro de 1662, é assim descrito: - Chegou ao porto de Faro o navio chamado S. Guilherme, de Amesterdão em direitura a este porto, remetido ao alferes João Ribeiro, morador em Faro, cujo capitão com 7 companheiros e um rapaz todos holandeses. Na verdade, a origem das mercadorias recebidas por este mercador hebreu eram bem variadas, porventura escondendo uma rede familiar de negócios da diáspora sefardita. Vejam: de Amesterdão – 8 barcos, Nantes - 4, La Rochelle -1, Roterdão – 1, Hamburgo – 1 e Tânger – 1. Mais ativo se mostrou Rafael de Sá que, em 5 anos de atividade, recebeu 17 navios. Mas, sobre este homem da “nação de Bragança” que em Faro se tornou homem de negócio, falaremos em próximo texto. Dissemos atrás que raras vezes se falava dos produtos transportados. Quanto a isso podemos dizer que o produto mais referido, importado do Sul de Espanha e Norte de África, era o esparto. Quanto aos produtos carregados em Faro, referimos já os figos, as amêndoas, o trigo… Faltará referir o atum e um barco que veio a Faro carregar cal para Tânger.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 6 Manuel de Sousa Pereira advogado em Beja

Já em outro texto falamos de Jerónimo Pimentel e Ventura Nunes um casal de fabricantes de seda que, na década de 1660, andou acertando contas com o santo ofício. (1) O casal teve 3 filhos e nenhum deles seguiu a profissão do pai. Um, João Pimentel, foi mercador e os outros dois, Manuel Fernandes Pimentel e Martinho Rodrigues Pereira, fizeram-se ourives. Ao findar da centúria de 600, os três eram já casados e moravam em Faro, “reino do Algarve”, onde os precedera o tio Sebastião Pimentel, também ourives do ouro. (2) Antes de 1712, vamos encontrá-los a morar no Alentejo, em Beja, com as respetivas proles. Situando-nos naquela data, vamos visitar João Pimentel e Martinho Pereira. Em Beja, o mercador João Pimentel dedicava-se também à lavoura, explorando a quinta do Arrebentão (hoje Monte do Arrebentão), e isso é um claro exemplo de como os “homens da nação” facilmente se adaptavam a novas profissões e atividades. Não sabemos se a casa de morada era na cidade ou na Quinta. Encontrava-se então viúvo de Violante de Sousa, que lhe dera dois filhos, nascidos ainda em Bragança. Vamos apresentá-los. Jerónimo Pimentel se chamou um deles. Estudava então na universidade de Coimbra, formando- -se em medicina. Casou depois com sua prima, Ventura Nunes Henriques, filha de seu tio Martinho Rodrigues. O outro tomou o nome de Luís da Fonseca Pimentel e era mercador. Casou com D. Catarina Maria Henriques, de uma importante família de Lisboa, irmã do Dr. Miguel Lopes de Leão. Pai e filhos haveriam de ver-se a contas com a inquisição de Évora. (3) Em Beja, a casa de Martinho Rodrigues Pereira situava-se na Rua de Aljustrel. Fora casado em primeiras núpcias com Isabel Henriques de Sousa, natural de Lamego, provavelmente irmã de um Simão Vaz Guerreiro, nascido em S. João da Pesqueira e que terá ido para Bragança, ocupar o rendoso cargo de feitor da alfândega da cidade. Também o feitor Simão Guerreiro foi prisioneiro da inquisição, sentenciado em cárcere, hábito e sequestro de bens no auto de 14.6.1671. E também ele terá ido para o Algarve. (4) Antes de 1708, Martinho ficaria viúvo, casando novamente com D. Grácia Henriques, natural de Lisboa, irmã do Dr. Miguel de Leão (5) e da mulher de seu sobrinho Luís da Fonseca, como atrás se disse. Na sequência das várias prisões efetuadas pela inquisição de Évora entre os seus filhos e sobrinhos, também Martinho Pereira sofreu os horrores das celas daquele tribunal durante 3 anos (6) posto o que fugiu para Amesterdão com a mulher e filhos mais novos. Para além da citada Ventura Nunes Henriques, importa falar de um dos filhos de Martinho Pereira e Isabel de Sousa, nascido e batizado na cidade de Faro, por 1699, sendo padrinhos o tio Simão Vaz Guerreiro e a avó materna, Ana Gomes Henriques. Chamou-se Manuel de Sousa Pereira e, por 1711, “assistia” em Loulé, em casa da avó e madrinha que o doutrinou na lei de Moisés. Dois anos depois foi para Coimbra estudar, formando-se em leis. Em 1719, abriu em Beja o escritório de advogado. Em Outubro-Novembro de 1720, a inquisição prendeu em Beja muitas dezenas de pessoas. Médicos, advogados, ourives, boticários, mercadores… a fina flor da sociedade foi arrastada para as cadeias da inquisição de Évora, acusados de se ter juntado na casa de João Álvares de Castro, para fazer cerimónias judaicas. Entre os denunciados, contou-se o Dr. Manuel de Sousa Pereira que foi preso em 22.11.1720. Confrontado com aquela acusação, respondeu: - Tudo o referido é falso: só é verdade haver-se feito uma Academia na cidade de Beja, em casa de João Álvares de Castro, lavrador, em que estiveram presentes todas as pessoas da dita cidade mais qualificadas, em que ele depôs Camões; e um filho do dito João Álvares de Castro, chamado Henrique Lopes Rosa presidiu à dita Academia; e nela não se falou na lei de Moisés.(7) Os inquisidores ouviram, mas não terão acreditado, habituados que estavam a ouvir réus que começavam por negar e depois confessavam tudo e mais alguma coisa. O processo continuou e, tempos depois, fez a seguinte confissão: - Disse que, em Fevereiro de 1720, em Beja, tendo ele notícia de que em casa de João Álvares de Castro (…) se fazia um ajuntamento em que se havia de praticar sobre a lei de Moisés se resolveu a ir à dita casa (…) que estava ornada com cadeiras, tamboretes e bancos à roda da mesma casa (sala) e alguns bancos no meio dela e nela viu estar um bufete com 4 ou 6 velas acesas e que na casa se achavam as pessoas seguintes… (8) Começou então a identificar os participantes naquela cerimónia judaica, num total de 57! Face àquelas declarações assim contraditórias, passou a ser acusado de falsário, uma acusação bem mais grave e cuja sentença final não podia ser outra senão a de ser relaxado à justiça secular, como o procurador pedia. No entanto, assim não entenderam os inquisidores, que ditaram uma sentença algo extraordinária: - Pelos indícios que houve de ser falso o dito ajuntamento de que haviam testemunhado João Manuel de Andrade e Francisco de Sá Mesquita se presumisse também que o réu confessava falsamente em que depôs do dito ajuntamento, e só o fizera por se ver convencido em o judaísmo pelos ditos jejuns e querer satisfazer a tudo o que o acusava a justiça. (9) Significa isto que os inquisidores consideravam falsas as declarações sobre tal ajuntamento judaico, mas não consideravam falsário o declarante Manuel Pereira; antes entendiam que fizera declarações falsas para, assim, resolver o seu caso. Os inquisidores retiraram a acusação de falsário, mas condenaram Manuel em sequestro de bens, cárcere e hábito perpétuo, por outras práticas de judaísmo, inclusivamente por ter feito jejuns judaicos dentro do próprio cárcere, 4 deles vigiados e testemunhados. Os depoimentos das pessoas que o vigiaram apresentam-nos um “judeu” encurralado na cela, mas irradiando serenidade e humanismo, um Trasmontano que prepara uma açorda alentejana para cear em honra do Deus que fez o Céu e a Terra. Vejam um pouco do que contou o familiar do santo ofício António Gomes Prego, que esteve espreitando, na tarde do dia 10.2.1721, testemunhando o 3º jejum judaico: - Levaram-lhe azeitonas que tudo lavou muito bem (…) tirou da dita canastra dois pães e 2 ovos cozidos e metade de uma cebola, a qual migou muito bem, em uma tigela e lhe deitou 3 vezes água; e esbugalhou as cascas dos ovos e os pôs junto com a cebola, muito bem escorrida (…) e depois se pôs a passear, em forma que, quando chegava à grade, metia as mãos abertas com as palmas para cima e desta sorte vinha no passeio para o fundo da casa; e voltando para a porta, logo abaixava as mãos; porém, tanto que chegava à grade as punha na forma sobredita; e desta sorte andou até que lhe levaram o lume e lhe deram as boas noites (…) e ultimamente se arrimou à grade por espaço de quarto e meio de hora, com os olhos e rosto para o ar e com os braços metidos pela grade e as mãos abertas, as palmas para cima, em que esteve até às 7 horas que se retirou e se pôs a comer os ovos misturados com a cebola e o pão, em que deitou uma colher de açúcar, azeite, vinagre e pimenta. E não comeu cousa alguma da dita ração de carneiro; nem até àquela hora tinha comido ou bebido cousa alguma, nem feito sinal de cristão. (10) Em próximos textos continuaremos a acompanhar os movimentos da “nação de Bragança” pelo Algarve e dali para Beja.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 5 Os contratos de Fernando da Fonseca Chaves

Fazer contratos com a Casa Real e com as grandes Casas na Nobreza e do Clero era privilégio acessível a muito poucos mercadores e homens de negócios, pois exigiam largos cabedais para depositar no ato da arrematação. Geralmente estes associavam-se, mas, à frente, estava sempre um contratador. O círculo dos contratadores era estreito e, por isso, muito prestigiante. Além do dinheiro e dos resultados económicos e financeiros, tais contratos proporcionavam aos homens da nação lidar com gente de outras esferas sociais, o que acrescentava o seu prestígio. A um tal círculo pertencia Fernando Fonseca Chaves que, em anos anteriores trouxera arrendados os portos secos, ou seja: pertencia-lhe cobrar os dinheiros dos impostos das mercadorias que entravam e saíam do país pela fronteira com Castela. Para além do dinheiro exigido em depósito, Fernando hipotecou também a tal arrendamento os bens de raiz que tinha em Bragança e que eram: Umas casas sitas na Praça de cidade e um casal, ou quinta, no lugar de Calvelhe, termo da mesma cidade, que valia 700 mil réis. Terminado o contrato, terão surgido litígios e processos judiciais, de modo que, quando o prenderam, a posse de tais bens andava em disputa e as casas, de abandonadas, já estavam em ruínas. Não conseguimos identificar os nomes dos importadores/exportadores que litigavam judicialmente com Fernando Chaves, por causa da cobrança de impostos nos portos secos, assunto de que ele deu conta perante os senhores inquisidores, nos termos seguintes: - Disse que sobre o contrato dos portos secos tinha várias causas, que corriam com diversas pessoas, em que eram interessados todos os sócios dele e lhe haviam feito a ele declarante procuração geral para o prosseguimento das ditas causas, de que dará razão o escrivão dos feitos da Fazenda, Manuel da Costa Velho.(1) Como se vê, na arrematação dos portos secos, Fernando Chaves não estava sozinho e provavelmente não teria capacidade financeira para tal, antes se apresentava como cabeça de uma sociedade de mercadores que com ele partilhavam trabalho, lucros e eventuais prejuízos. E esta não foi a única sociedade comercial que Fernando Chaves integrou. Teve uma outra com António Vever, responsável pela cobrança das rendas pertencentes à comenda de Santiago de Santarém, “na qual houve uma grande perda” que o seu sócio pagou e ele ainda o não ressarcira. Melhor correram as coisas na sociedade que teve com João da Mota Marques, de Braga, “na qual houve lucro e lhe parece que lhe tocaram a ele mais de 200 mil réis”. Para além do contrato dos portos secos, ele trazia arrematado à Casa Real o contrato do assento de Setúbal, ou seja: ele comprometia- -se a fornecer o pão necessário para alimento das tropas ali sediadas, bem como a palha para os cavalos e adiantamento dos soldos aos militares. A administrar o “assento”, por ordem do nosso contratador, estava o seu sócio José Gonçalves Morão, que não terá sido muito correto, a crer nas declarações de Fernando Fonseca, que “o alcançou em contas” e obteve sentença favorável no juízo da correição do cível da cidade, no montante de 683 000 réis, que lhe estava devendo. Fernando Chaves trazia também arrematada a cobrança do imposto sobre o peixe pescado em Setúbal e que pertencia à Casa de Bragança. E para administrar este contrato, nomeou também o dito Gonçalves Morão. E depois que se desentenderam, e Chaves lhe retirou a administração, Morão terá continuado a cobrar o imposto, seguindo-se óbvio litígio e embargo judicial, acabando Gonçalves Morão por ser condenado em 204 104 réis, que estava devendo ao contratador e cuja cobrança ficaria a cargo da inquisição, como, aliás, todas as dívidas ativas do confiscado. Não conseguimos identificar as rendas que em Setúbal e Palmela pertenciam ao cabido da Sé de Lisboa e que Fernando Fonseca Chaves trazia também arrematadas, com o tenente de uma companhia de granadeiros, Francisco Correia na gestão da cobrança, estando em sua mão 890 000 réis que pertenciam ao contratador. Deveras singular é o caso de uma dívida que Fernando Chaves reclamava da Alfândega de Lisboa, perante o Juízo da Coroa. Vamos explicar. Nos termos da lei, quem denunciasse fugas as fisco, pagamentos e recibos ilegais, tinha direito a um terço da quantia em causa. Aconteceu então que Fernando Fonseca teve conhecimento de ser carregado um barco com lãs, avaliado em 20 contos de réis, que deixou o país sem que a carga fosse registada e os impostos pagos. Muniu-se de provas e identificação dos transgressores e fez a denúncia. Agora competia à inquisição a cobrança de tal dívida que corresponderia a mais de 6 contos de réis! (2) Mas deixemos as dívidas ativas, que até nem são nada de extraordinário, antes pelo contrário, nos parecem algo diminuídas. Sim, que os presos da inquisição tudo faziam para esconder os seus bens e também as dívidas ativas. De contrário, procuravam ampliar as dívidas passivas, sempre que possível, envolvendo neste jogo, familiares e amigos de confiança que, ao final, lhe devolveriam os bens. No caso em apreço e, feitas as contas, verifica-se que as dívidas a receber pelo contratador Fernando da Fonseca Chaves eram sensivelmente iguais ao que ele devia: cerca de 9 contos de réis. Claro que os inventários ditados pelos réus eram confrontados com os que fazia na localidade do réu a autoridade civil (juiz de fora, geralmente), a requisição do representante local (comissário, em regra) do santo ofício e por ordem recebida do tribunal, juntamente com o mandado de prisão, continuando, às vezes por muitos anos, a venda dos bens sequestrados e a recolha dos dinheiros. Grande parte das dívidas de Fernando respeitava aos próprios contratos. Assim, à Casa de Bragança faltava pagar 409 mil réis da dízima do pescado de Setúbal e ao comendador de Vimioso, D. Lourenço de Almada, devia 600 mil réis que venciam na Páscoa de 1713, já que ele arrendara a cobrança das rendas por 1 200 000 réis /ano, a pagar cada ano em 2 prestações: na Páscoa e no S. João. A propósito deste contrato, Fonseca Chaves achou por bem esclarecer o sr. inquisidor dizendo: - Desta cobrança trata Miguel da Silva, cunhado dele declarante, morador em Bragança, por procuração que tem de António do Couto, criado do dito D. Lourenço de Almada, e lha pediu ele declarante para terem mais respeito ao dito seu cunhado; e até ao presente lhe não têm remetido mais que 500 mil réis, por conta da dita renda e também 13 mantos de seda por preço de 12 ou 13 mil réis cada um. (3) Muito dinheiro devia também ele a Amaro Teixeira de Sampaio, familiar do santo ofício, natural do Porto e morador em Lisboa, casado com Rosa de Vever, filha de um mercador de Hamburgo, que veio casar em Viana do Castelo e fixar residência em Lisboa. (4) A ligação comercial entre este familiar da inquisição e o judaizante Chaves era forte, pois que foram sócios no assento da província de Trás-os-Montes, que exigia grande capacidade financeira e para o que , inclusivamente, tiveram os assentistas de recorrer ao cónego da sé de Coimbra, Martim Monteiro Paim que lhe concedeu um empréstimo a juros, no montante de 3 contos e 600 mil réis. Vimos atrás que ele contratara a cobrança das rendas que o Cabido da Sé de Lisboa tinha em Setúbal e Palmela. Veja-se a situação do contrato quando ele foi preso: - Ao cabido da sé desta cidade deve ele declarante, das rendas de Setúbal e Palmela 800 e tantos mil réis, porquanto sendo devedor de maior quantia, ele deu dinheiro por várias vezes ao prioste António Gonçalves Prego e ao cónego José Ferreira Souto, a quem ultimamente entregou um recibo do tesoureiro mor dos 3 Estados do reino, Francisco Feio de Castelo Branco, em que se obrigava a pagar por ele declarante 690 e tantos mil réis; e para satisfação dos 800 e tantos mil réis, ou o que na verdade se achar, estão os frutos em poder de Félix da Rosa, da vila de Palmela, procurador dele declarante, em cuja mão os mandou embargar o cabido. (5) Outras mais dívidas constam do inventário de bens ditado por Fernando da Fonseca Chaves, como sejam 400 mil réis “procedidos de tabacos que comprou” a Vicente Rodrigues de Torres ou 60 moios de sal de Setúbal que entregou a Domingos Pires Bandeira, no valor de 60 mil réis, ficando ainda a dever cento e tantos mil réis. Estas e outras dívidas mostram que o contratador Fernando Fonseca Chaves, não desprezava qualquer oportunidade de negócio que surgia.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 4 Fernando da Fonseca Chaves, homem de negócios, natural de Bragança

Corria o ano de 1707. Em Lisboa, em casa de Manuel da Costa Miranda, um boticário de Bragança que ascendera a contratador, juntaram-se 11 homens da “nação de Bragança” envolvendo-se em cerimónias e práticas de judaísmo, que o declarante não especificou. Mas vejamos em concreto a denúncia feita por António da Costa Chacla, um dos participantes na reunião: - Haverá 4 anos, em Lisboa, ao Lagar do Sebo, em casa de Manuel da Costa Miranda, contratador, boticário, solteiro, com ele e com João da Costa Vila Real, contratador, casado, e com dois filhos deste, chamados José da Costa e João da Costa, irmãos, contratadores, e com Fernando da Fonseca Chaves, casado com Micaela da Silva e com Félix Leandro Pereira, corretor, solteiro e com António Sá Carrança, tecelão de sedas, casado e com João Lopes, sem ofício, casado e com Luís Henriques, tecelão de sedas, casado, e com Belchior Mendes Fernandes, tecelão de sedas, casado, todos de Bragança exceto João Lopes que é de Chacim… Esta seria uma simples e normal ocorrência, que poderia repetir-se em outras moradias de Lisboa, com outros judaizantes brigantinas. E poderia repetir-se em Faro ou Torres Vedras, Porto ou Beja, Setúbal ou outras mais localidades de Norte a sul de Portugal, e também em muitas localidades estrangeiras que, por toda a parte, se dispersava então a “nação de Bragança”, acossada pelo santo ofício. Aquele parece ser um encontro de poderosos homens de negócios e endinheirados fabricantes de sedas. Mas poderia ser um encontro de ourives ou letrados, que a ascensão social era objetivo sempre perseguido e a “nação de Bragança” é verdadeiramente exemplar a este respeito. Voltemos atrás, à casa de Costa Miranda, no Lagar do Sebo, ao convívio daqueles 11 brigantinos que, obviamente, todos eles foram estagiar nas celas da inquisição. Tentaremos seguir o percurso de cada um daqueles fabricantes de sedas e homens de negócio nascidos em Bragança na segunda metade do século XVII, mas por agora trataremos do caso singular de Fernando Fonseca Chaves. Em textos anteriores apresentamos já os seus ascendentes, paternos e maternos e alguns tios e primos. Faltará dizer que ele nasceu em Bragança pelo ano de 1667, sendo filho de Jacinto Ferreira e Isabel da Fonseca, fabricantes de sedas, como uma grande parte da gente da nação de Bragança à época. Se bem que no ano anterior o seu pai se fosse apresentar a Coimbra confessando culpas de judaísmo e não obstante as 4 dezenas de “judeus” de Bragança que foram sentenciados naquele tribunal em 1670, podemos dizer que Fernando cresceu num ambiente de relativa acalmia, no que respeita a perseguição inquisitorial naquela cidade. O choque terá surgido quando completou 18 anos de idade e vários judaizantes brigantinos, entre eles o seu pai, foram chamados a Coimbra e saíram sambenitados no auto de 4 de Fevereiro de 1685, com dois condenados à morte: Francisco Nunes, Raba e Isabel de Faro, mulher de seu tio Manuel Santiago Pimentel, conforme vimos em texto anterior. Adensava-se de novo o ambiente religioso em Bragança, com as nuvens do medo a encher as ruas e as casas, pois a inquisição amedrontava especialmente aqueles que, na terminologia inquisitorial, tinham sangue judeu. E o medo semeava em muitos espíritos da gente da nação projetos de fuga para outras terras de Portugal e países estrangeiros. Não conseguimos precisar a data em que Fonseca Chaves decidiu abandonar a terra, mas terá sido ao findar do século de 600, depois de casar e tendo já dois filhos, o mais velho nascido em 1697. Aliás, durante alguns anos, ele mantinha uma casa em Bragança e outra em Lisboa, conforme consta das suas confissões. E, morando em Lisboa, continuou a ter interesses em Trás- -os-Montes, como haveremos de ver quando tratarmos do inventário de seus bens. Por agora, fiquemos em Bragança para conhecer uma irmã de Fernando, chamada Catarina Pimentel, casada com António Mendes, ourives da prata, que em Novembro de 1716 foi preso pela inquisição de Coimbra e antes dele, em Março do mesmo ano, foram levados para o mesmo tribunal o seu filho Gaspar de Faro e a sua filha Maria Mendes Pimentel. Uma outra filha, Mariana Pimentel, que então contava 20 anos e se fora para Lisboa, logo que soube da prisão dos irmãos, foi também apresentar-se ao santo ofício. Fernando Fonseca tinha também uma meia-irmã, nascida fora do casamento, 22 anos mais nova que ele, filha de seu pai e de uma cristã-velha chamada Maria Sanches. Dava pelo nome de Catarina Ferreira e também ela abandonou Bragança e se foi morar em Lisboa, certamente em casa do irmão que administrava os 200 mil réis que o pai lhe deixara de herança. O nosso contratador era casado com Micaela de Morais, de uma família de grandes contratadores, a família Silva (Polindro), da qual falaremos em próximos textos. Por agora diga-se que, quando o prenderam, Fernando trazia consigo uns papéis que lhe foram tomados. Trata-se de um memorando, em forma de requerimento aos inquisidores, em seu nome, no de sua mulher e filhos, queixando-se de seu cunhado Duarte da Silva, que era falto de juízo e que lhe roubara de casa umas peças de prata e umas fazendas, e, possivelmente, se quisera vingar dele inventando-lhe culpas de judaísmo. Efetivamente, uma das testemunhas de acusação foi Duarte da Silva que, estando preso em Évora, em 1710, confessou que fora doutrinado na lei de Moisés por seu cunhado Fernando Fonseca Chaves, morador em Lisboa, junto ao Paço do Bem Formoso. Curioso: os inquisidores que valorizaram esta denúncia foram os mesmos que, ao despacharem o seu processo, escreveram: - Pelas respostas disparatadas que tem dado na Mesa, em que deu mostras de não estar em seu juízo perfeito, mas antes ter alguma lesão nele (…) pareceu a todos os votos que o réu não tinha razão alguma no entendimento, mas sonoroso, como perplexo nas falas e respostas que deu nas matérias em que se lhe toca. Uma terceira acusação foi enviada de Coimbra, tirada do processo de Salvador Pimentel dizendo que, 8 anos atrás, em certa ocasião, estando o seu parente Fernando Fonseca doente, o foi visitar e o encontrou “molestado na cama, lendo um livro” que continha orações judaicas e lhe leu algumas “e se ofereceu para lhe ensinar todas as vezes que quisesse fosse a sua casa”. Terminou a confissão recitando a seguinte oração que Fernando lhe ensinara e deviam rezar no Kipur: Do nascente ao poente Bendito e louvado seja Deus para sempre. Do poente ao nascente Louvado seja Deus para sempre. Senhor, que o sol detivestes Cinco horas naquela serra Quando Josué venceu Aquela temerosa guerra, Vós sois o Senhor dos senhores A quem se dão louvores. Ofereço-Vos, Senhor, Esta minha alma, pois sois Deus, minha alegria. E depois, a terminar o jejum do Kipur, olhando ao para o céu, deviam rezar: Aqui venho Senhor Diante de Ti oferecer Este meu jejum que hoje fiz Em santo louvor teu Para que Tu, Senhor, Te lembres de mim E dos maus apertos me livres E me favoreças, Senhor, com teus bens, Como favoreces os escolhidos. Bendito e louvado seja O Teu santíssimo nome De hoje para todo o sempre. Ámen. Sobre o processo de Fernando Chaves, queremos realçar a importância do inventário de seus bens, o que trataremos no próximo texto. Agora adiantamos que os mesmos lhe foram confiscados pela sentença lida no auto da fé de 7.7.1713 que o condenou ainda em cárcere e hábito penitencial perpétuo, penitências espirituais e 50 mil reis para alimentos. Resta dizer que Fernando e Micaela tiveram dois filhos. Um deles, Alexandre da Fonseca Morais, seguiu o caminho do pai, tornando-se contratador. O outro, José da Fonseca Morais, estudou para advogado na universidade de Coimbra e morava em Lisboa, a S. Jorge, em 1728, quando decidiu apresentar-se no tribunal da inquisição a confessar culpas de judaísmo. Veja-se a forma como iniciou a sua confissão. Trata-se de um exemplo concreto e flagrante do que afirmámos ao início, sobre o convívio entre os membros da dispersa “nação” de Bragança: - Disse que haverá 9 anos, em Lisboa, em casa de seu primo-segundo por via paterna, José Rodrigues Pimentel, ourives do ouro, casado com Isabel Pereira, natural de Beja e morador em Lisboa, donde se ausentou, não sabe para onde, se achou com ele e com dois primos inteiros dele confitente, chamados Gaspar de Faro, solteiro, ourives da prata, natural de Bragança e morador em Faro, filho de António Mendes, ourives da prata e Catarina Pimentel e com Manuel de Santiago, ourives da prata, solteiro, reconciliado, filho de Brites da Costa e não sabe o nome do pai, natural de Bragança e morador em Lisboa, donde se ausentou, não sabe para que parte, e estando todos quatro lhe disseram que ele confitente andava errado na lei de Cristo e para se salvar devia seguir a lei de Moisés…

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 3 Entre Bragança, Múrcia e Lisboa, os filhos de Ana Pimentel

Para além de Manuel Santiago, de cuja descendência já falámos, Jacinto Ferreira teve dois irmãos que foram ourives da prata. Os dois viveram em Miranda do Douro e ambos tiveram contas com o santo ofício, juntamente com as respetivas consortes. Um deles foi António da Costa, casado com Maria dos Santos, sua sobrinha, filha do citado Manuel Santiago. O outro chamou-se Francisco Pimentel e era ourives da prata, casado com Catarina da Costa, filha de Francisco de Albuquerque e Maria Serrão, família de quem falaremos em próximo texto. E teve também uma irmã, batizada em Bragança com o nome de Ana Pimentel, que passou a ser geralmente conhecida por Ana Gomes, por ser casada com Francisco Gomes, escrivão e rendeiro, homem de influência e prestígio na cidade de Bragança. Em Março de 1661, Ana Pimentel (Gomes) era já viúva, conforme testemunhou sua tia Ana Pimentel, perante o inquisidor Manuel Pimentel de Sousa: - Haverá 11 anos, em sua casa, se achou com a dita sua mãe, Francisca Henriques e com Agostinha Pereira, mulher de Francisco da Costa Pimentel, e com Ana Gomes, sobrinha segunda, por ambas as vias, dela confitente e Ana Gomes é viúva de Francisco Gomes, escrevente e rendeiro.  Depois que ficou viúva, Ana Gomes deixou Bragança e foi-se para a cidade de Múrcia, em Castela, onde o seu conterrâneo António de Sória trazia arrendada a cobrança dos “milhones” naquela região.  Aliás, ela própria pertencia à família dos Sória, originária de Bragança. Ana e Francisco tiveram 4 filhos e uma filha. Um dos filhos chamou-se António Gomes e residiu em Bragança onde exercia o ofício de ourives do ouro, alcançando a categoria de “mestre”, o que lhe permitia dar “formação profissional”. A propósito, temos o testemunho de um dos seus formandos, o aprendiz de ourives, Ambrósio Saldanha Sória que, em 23.1.1693, na inquisição de Lerena disse: - Haverá 20 anos, tendo (o seu mestre) de fazer uma jornada da cidade de Bragança para Múrcia para ver sua mãe que lhe parece se chamava Ana Gomes e presume ter sido presa pela inquisição daquela cidade, o dito seu Mestre lhe disse, encomendando este a Álvaro Vaz, prateiro… Será que Ana Pimentel Gomes regressou com o filho a Bragança, terra onde veio a falecer, conforme informação de seu sobrinho Fernando Fonseca Chaves? Deixemos Ana e voltemos ao filho, António Gomes que era casado com Brites da Costa. Francisco Gomes, um dos seus filhos, estudou medicina em Coimbra, ausentando-se para a “Corte de Roma”. Outro, Manuel da Costa, foi ourives da prata e também deixou o reino. De um terceiro, também ourives da prata, temos conhecimento por algumas denúncias feitas contra ele, por parentes seus, como foi o caso de Francisco Pimentel e seu irmão Manuel Santiago que, em 13.5.1716, confessou, perante o inquisidor Francisco Carneiro de Figueiroa: - Haverá 8 anos, em Bragança, em casa de seu tio José Gomes, ourives da prata, solteiro, filho de António Gomes, do mesmo ofício, e Brites da Costa, ausentes, o doutrinou na lei de Moisés. António Gomes e Brites Costa tiveram também uma filha, que batizaram em Bragança com o nome de Leonor da Costa, a qual casou com Salvador Mesquita, torcedor e mercador de seda. O casal vivia no Porto e trabalhava em rede com a família, nomeadamente Lopo de Mesquita, irmão de Salvador, vendendo as peças de seda que lhe remetiam de Bragança onde eram tecidas. Veja-se, a propósito o testemunho do Moncorvense Manuel Lopes na audiência de 12.1.1704: - E também não sabe o apelido de um Salvador que diziam ser irmão de Lopo de Mesquita e que vivia no Porto (…) E o dito Lopo seu irmão lhe remetia as telas que se teciam para que as vendesse e encaminhasse para ele a diferentes partes, e ele confitente viu em Bragança em casa de Lopo de Mesquita algumas vezes que foi por seda e levar-lhe as telas ao dito Salvador Mesquita…  Acerca da família de Lopo (“um homem muito rico”) e Salvador de Mesquita, o já citado António, aliás, Jacob de Morais, fez a seguinte confissão, em 18.1.1718: - Há 2 anos em Bayonne se achou com (…) Lopo de Mesquita, cristão-novo, torcedor de seda, casado e hoje se chama Abraham de Mesquita, tendeiro, natural de Bragança e com Salvador Mesquita, filho deste, tratante de chocolate, casado com uma filha de Mécia de Morais, e hoje em Bayonne se chama Isaac de Morais, e estando os 3 com mais família desta casa, que consta de filhos e filhas e com as mulheres dos mesmos, se declararam e com os mesmos ia à sinagoga. Martinho Gomes, torcedor de seda, era outro filho de Ana Pimentel e Francisco Gomes. Estava casado com Maria de Medina, quando foi preso pela inquisição de Coimbra, ao início de Setembro de 1683, saindo penitenciado em cárcere a arbítrio dos inquisidores em 4.2.1685. Em 1696 a inquisição de Lerena enviou para a de Coimbra um treslado de culpas contra ele, pedindo a sua prisão. Martinho teria já fugido, pois que do processo consta apenas o mandado de prisão e o treslado das culpas. Não sabemos se foi nessa altura que outro seu irmão, Francisco Gomes da Costa, deixou Bragança e se foi para Múrcia onde casou com uma castelhana, chamada Constança Maria. Em Múrcia lhe nasceram dois filhos e duas filhas e, em Múrcia foram ambos pela inquisição ele e a mulher. Recuperada a liberdade, rumaram a Portugal com os filhos, ainda pequenos. Constança Maria faleceu pouco depois, em Bragança e Francisco e os filhos mudaram- -se para Aldeia Galega, hoje Montijo, dali transitando para Lisboa. André Francisco da Costa e Álvaro Francisco da Costa se chamavam os dois filhos de Francisco e Constança, ambos fabricantes de meias. André tinha 29 anos e Álvaro 25, quando foram presos pela inquisição, em 15.4.1713. Saíram penitenciados em cárcere a arbítrio dos inquisidores e penitências espirituais, no auto de 9.7.1713. Os seus processos são simples e normais, se é que alguma normalidade existia nos tribunais do santo ofício. André confessou que fora doutrinado na lei judaica, em Lisboa, pelo seu tio Fernando da Fonseca Chaves e Álvaro responsabilizou a mãe pelo mesmo ensino, em Bragança, para onde viera ainda pequeno. Notas de mais interesse em ambos os processos respeitam aos contactos com outros membros da nação hebreia de Bragança que assistiam na região de Lisboa, terras do Alentejo e Algarve, como era o caso de Rafael de Sá, que tinha loja de mercador em Lisboa ou José Cardoso da Paz, nascido em Ayamonte, Castela, filho de António Cardoso da Paz, que assistia em Faro e Ayamonte, de que falaremos em próximo texto. Por agora voltemos aos filhos de Ana Pimentel e Francisco Gomes para referir a filha Leonor da Costa que casou com António de Albuquerque, ourives da prata, um dos 30 e tantos brigantinos que, nos anos de 1661/1662 se foram apresentar a Coimbra. A esse tempo António era solteiro e morador em Bragança. Depois de casados, António e Leonor viveram algum tempo em Bragança, mudando- -se para a vila de Torrão, no Alentejo. De entre os seus filhos, referência para Filipa da Costa, nascida ainda em Bragança e que foi presa em 1706, quando morava em Lisboa, casada com o seu parente Dionísio Pimentel, rendeiro, filho de Eliseu Pimentel, um dos mais conceituados homens da “nação de Bragança” assistentes em Lisboa, de quem haveremos de falar. 

Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 2 A família de Gaspar de Faro e Beatriz da Costa

Conforme vimos no texto anterior, uma das filhas de Manuel Fernandes chamava- -se Isabel da Fonseca e casou com Jacinto Ferreira, natural da aldeia de Parada, termo de Bragança, membro de uma família com largo historial na inquisição. Recuando apenas a 1661, verificamos que, entre os brigantinos que se apresentaram perante o inquisidor Pimentel de Sousa a confessar as suas culpas de judaísmo, se contou o mercador Manuel Santiago Pimentel, de 30 anos de idade, irmão de Jacinto Ferreira, o pai de Fernando da Fonseca Chaves. E também a sua mulher, Isabel de Faro, 4 anos mais nova. Ambos foram posteriormente chamados a Coimbra para serem sentenciados, em Abril de 1670.  Em 1683, sendo já viúva, e morando em Miranda do Douro, Isabel foi presa pela inquisição e acabou queimada nas fogueiras do auto da fé de 4.2.1685. Infelizmente não pudemos consultar o processo, como, aliás, a grande maioria dos que respeitam às inquisições de Coimbra e Évora. Quando Isabel foi presa, também o foram os seus filhos Francisco Pimentel e Gaspar de Faro, aquele de 15 anos, aprendiz de ourives da prata e este de 20 anos, fabricante de sedas. Ambos saíram condenados em cárcere a arbítrio, no auto da fé de 7.2.1685, juntamente com sua irmã, Maria dos Santos. De regresso a Bragança, Gaspar de Faro casou com Beatriz da Costa, a Galula, de alcunha, filha de Manuel de Santiago e Mécia de Morais, que lhe deu 2 filhos e 2 filhas. E falecendo Gaspar, Brites da Costa andou de “morada alevantada” entre Bragança, Castela e Miranda do Douro. Por 1715 rumaria a Lisboa, assentando morada na Rua das Parreiras, freguesia do Socorro. Em 7 de agosto do mesmo ano foi apresentar-se na inquisição, a confessar culpas de judaísmo, contando, nomeadamente, que fora doutrinada 23 anos atrás, por sua prima Brites da Costa, mulher de António Gomes, ourives. Um treslado da sua confissão foi enviado para o tribunal de Coimbra, conforme consta da capa do processo. E de Coimbra seriam também remetidas para Lisboa, denúncias contra ela, feitas por outros presos, nomeadamente por Isabel Mendes, que fora relaxada. Certamente que, confrontando as suas confissões com as denúncias recebidas de Coimbra, os inquisidores decretaram a sua prisão. Acabou por ser sentenciada no auto da fé de 24.10.1717, celebrado na igreja do convento de S. Domingos, estando presentes o rei D. João V, inquisidores, ministros da mesa, o embaixador de França, muita nobreza e povo, sendo condenada em confisco de bens, abjuração em forma, cárcere a arbítrio, instrução na fé católica e penitências espirituais. Em 2 de setembro seguinte, estando bem instruída e confessada, foi-lhe dada licença para ir viver em Torres Novas, em casa de seu irmão, António de Santiago. Depois que se apresentou e antes de ser decretada a sua prisão, Beatriz falava com os filhos e certamente combinou com eles a forma de eles se irem também apresenta. E assim, ela própria, como que preparando o caminho, contou aos inquisidores: - Haverá 8 anos, em Bragança, em casa dela confitente, se achou com seu filho Manuel Santiago, solteiro, sem ofício, e seu filho lhe disse que José Gomes o tinha ensinado (…) e se achou com outro seu filho, Francisco Pimentel, solteiro, tecelão de sedas, que se vem agora apresentar, e seu filho lhe disse que José Gomes o tinha ensinado…  Na verdade, em 18.5.1716, foram apresentar-se no mesmo tribunal 3 de seus filhos: Manuel de Santiago, de 18 anos, ourives da prata, Francisco Pimentel, de 17 anos, torcedor de sedas e Isabel de Morais, de 20 anos. Em prova de que a apresentação dos filhos seria concertada com sua mãe, veja-se a confissão feita por Manuel de Santiago: - Há 8 anos, pouco depois do ensino que lhe fez seu tio José Gomes, ourives da prata, em Bragança, em casa de sua mãe (…) se achou com a mesma e por ocasião dele confitente lhe dar conta do ensino feito por José Gomes, se declararam (…) Há 7 anos, em Bragança, em casa dele se achou com sua irmã Isabel de Morais, solteira, que se veio apresentar em sua companhia e com seu irmão inteiro, Francisco Pimentel, tecelão de sedas, que se veio apresentar em companhia dele confitente e o mesmo fora igualmente ensinado por José Gomes e sua irmã ensinada por Leonor Pimentel.  Os 3 processos são bastante simples, estranhando-se talvez que os dois rapazes fossem sentenciados em mesa, perante os senhores inquisidores, em Junho de 1616, condenados em penas espirituais e Isabel tivesse de comparecer em auto da fé, na igreja de S. Domingos, em 24.10.1717, condenada em cárcere e hábito a arbítrio dos inquisidores. Neste tratamento especial terá pesado o facto de Isabel ter sido doutrinada por Leonor Nunes e denunciada por Isabel Mendes, que foi relaxada pelo santo ofício, em 6.8.1713.  Mécia de Morais, outra filha de Gaspar de Faro e Brites da Costa não foi apresentar- -se com os irmãos. Talvez não morasse então em Lisboa com eles e com a mãe. Porém, seguiu o mesmo caminho, apresentando-se 4 anos depois, em 26.6.1720, quando contava 23 anos.  Fora também denunciada por Isabel Mendes, quando já estava de mãos atadas, e entre os que com ela judaizaram contava-se o seu primo materno António de Morais, aliás, Jacob de Morais, um brigantino que, em 1711, se foi para Bayonne, de França, onde se fez circuncidar, tomando o nome judeu de Jacob e regressando a Bragança em 1716.  Tratando-se embora de uma simples apresentação, o processo de Mécia ganha particular interesse pela polémica que levantou entre os inquisidores e os deputados sobre a sentença a dar à ré, polémica que ocupa uma dezena de páginas.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento Manuel Fernandes: de Vila Flor para Bragança

Filho de um sapateiro, Manuel Fernandes nasceu em Vila Flor, pelo ano de 1601. Tinha 4 irmãos e 3 irmãs. Apenas um irmão, Pedro Vaz e uma irmã, Beatriz Vaz casaram e viveram em Vila Flor. Os outros 3 irmãos embarcaram para o Brasil, alguns ainda com bem pouca idade. As irmãs, Isabel Vaz, casada com Pedro Henriques, e Violante Rodrigues, casada com Pedro Marcos, foram assentar morada em Castela. Manuel Fernandes, por seu turno, fez-se tratante e negociava também por Castela, possivelmente em rede de negócios com os seus parentes. Ao findar da década de 1620, foi acertado o seu casamento em Bragança, com Catarina Pimentel. Nesta cidade o casal estabeleceu sua morada e ali lhe nasceram 8 filhos: 5 rapazes e 3 raparigas. Manuel Fernandes foi um dos cerca de 50 cristãos-novos brigantinos que, em Janeiro de 1661, assinaram uma petição dizendo que queriam apresentar-se a confessar seus erros, conforme vimos no texto anterior. Com ele assinaram aquela petição 4 de seus filhos, conforme se lê nos respetivos processos e que foram: João Pimentel, mercador como o pai, que então contava 24 anos e viria a morrer solteiro, em Sevilha, deixando um filho natural, chamado Manuel Fernandes como o avô, e que, por 1713, vivia no Algarve, com a profissão de ourives. Sebastião Pimentel, de 24 anos, torcedor e mercador de sedas e depois “ourives do ouro”, então solteiro e mais tarde casado com Maria da Costa. O casal foi também estabelecer morada em Faro, onde Sebastião acabou por falecer. Filipa Dias, de 15 anos, solteira. Jerónimo Pimentel, de 26 anos, torcedor de sedas, casado com Ventura Nunes Henriques que, meio ano antes, fora presa e levada para a inquisição de Coimbra, de onde saiu penitenciada no auto da fé de 9.7.1662. O casal viveu em Bragança e ali lhe nasceram 3 filhos que apresentaremos em próximo texto. Por agora diremos que os 3 deixaram Bragança e se foram para Beja. Um deles foi mercador e os outros dois fizeram-se ourives. Na geração seguinte, entre os netos de Jerónimo e Ventura, encontraremos gente formada pela universidade de Coimbra. E em Beja, terão problemas com a inquisição, pois alguns deles foram levados para as cadeias do tribunal de Évora. Estamos então em Bragança onde Manuel Fernandes e os filhos foram ouvidos pelo inquisidor Manuel Pimentel de Sousa, abrindo-se a cada um o respetivo processo e nele autuadas as suas confissões. Passaram 9 anos, ao fim dos quais, em Abril de 1670, todos foram chamados a Coimbra, para ouvirem suas sentenças, em mesa, e pagar as custas dos processos. No caso de Manuel Fernandes, as custas ascenderam a 618 réis. No mesmo ato terão sido também lidas as sentenças da mulher de Manuel Fernandes e de outra filha chamada Isabel da Fonseca, casada com Jacinto Ferreira. Depreendemos que ambas tivessem assinado também a referida petição, sendo ouvidas igualmente em Bragança e chamadas a Coimbra para o mesmo efeito. Não podemos, no entanto, ter a certeza, pois não tivemos acesso ao processo de Catarina Pimentel e nas listas dos ANTT não aparece qualquer processo instaurado a Isabel da Fonseca, que aparece nas listas dos réus sentenciados. Para além dos filhos já referidos, Manuel Fernandes e Catarina Pimentel tinham outros, a saber: Antónia Mendes, a mais nova, então solteira e moradora na casa paterna, a qual, mais tarde, casou com Domingos Mendes, ourives. O casal morou em Beja, onde Antónia era já falecida em 1712. Um filho destes casou com sua prima Catarina, filha de Sebastião Pimentel e Maria da Costa. Diogo Vaz que, por 1641, com pouco mais de 12 anos, se foi para o Brasil. Fernando da Fonseca Chaves que, por 1645, contando cerca de 11 anos, foi para Beja onde casou com Lina Maria e se tornou mercador. Seu filho, João Rodrigues da Fonseca, ver-se-á envolvido na chamada “cumplicidade de Beja”, sendo preso pela inquisição de Évora, denunciado pelo médico brigantino radicado em Beja, Dr. Francisco de Sá Mesquita. Se olharmos o enquadramento profissional de Manuel Fernandes, seus filhos e genros, deparamos com a preocupação de escolher uma profissão mais digna, em cada geração, visando a promoção social da família. Nenhum deles seguiu a profissão de sapateiro e poucos se ficaram pela mercancia. Antes se tornaram torcedores de seda e ourives. Na geração seguinte, veremos filhos destes ascender a contratadores, médicos, advogados... Outra consideração que se impõe é a grande mobilidade que marca o percurso desta gente, rumando de Bragança para o Brasil, Castela, Faro e Beja. Na geração seguinte encontramo-los em outras paragens. O caso desta família é bem exemplar. Até que ponto esta mobilidade seria voluntária e preparada? Ou seria forçada, em fuga permanente dos esbirros da inquisição? Difícil responder com certezas e as duas hipóteses confundem-se, pois que a mobilidade, a procura do desconhecido e a disposição permanente para abraçar qualquer negócio ou situação nova sejam características essências da gente da nação, uma “nação em movimento”. Voltemos a Bragança, ao patriarca Manuel Fernandes que, em 12 de Março de 1661, se apresentou voluntariamente “na casa onde pousava o senhor inquisidor” para confessar suas culpas de judaísmo. Confessou então que fora doutrinado na lei de Moisés, uns 36 anos atrás, em Medina de Rio Seco, por sua prima segunda, Isabel Marcos, natural de Torre de Moncorvo, casada com Sebastião Pimentel, mercador. Acrescentou que com eles fez, naquele ano, o jejum do Kipur. De seguida, denunciou a mulher e os filhos, envolvendo, indiretamente, outras pessoas. Veja-se o caso de Sebastião Lopes: - Há 10 anos, em sua casa, com sua mulher e um filho de ambos, chamado Jerónimo Pimentel, torcedor de sedas, casado com Ventura Nunes, presa, e estando os três, disse a ele confitente seu filho e à dita sua mãe, que Sebastião Lopes, torcedor de seda, defunto, mestre do mesmo do dito ofício, casado com Leonor da Mesquita, lhe ensinara a crença… De modo semelhante, denunciou Filipe Rodrigues, tendeiro, casado com Isabel Rodrigues, como doutrinador de seu filho João Pimentel. E também Diogo Nunes, por catequização de seu filho Sebastião Pimentel. Para além da família, denunciou, entre outros, Pedro Sória Nunes, mercador e cerieiro, morador na Rua Direita, Diogo Manuel, de Vinhais, com quem se declarou junto à “ponte das Tenarias”. Ambos tinham sido presos no ano anterior.

Bragança : A Nação Judaica em Movimento- Um Inquisidor em Bragança a instruir processos

A partir de 1637, depois de 2 décadas de relativa acalmia, o Nordeste Trasmontano foi autenticamente varrido pelo vendaval da inquisição de Coimbra, que alvejava uma limpeza completa da heresia judaica, em verdadeiro religiocídio. A primeira grande operação foi lançada em Quintela de Lampaças, com êxito evidente. Dezenas de prisões e muitas mais fugas, com a gente da nação de Quintela a levar dinamismo empresarial e recursos financeiros para terras estrangeiras. Seguiu-se a limpeza de Sambade e consequente agonia do maior conglomerado têxtil de Trás-os-Montes. Sim, antes da moderna era industrial, esta terra constituía-se numa verdadeira encruzilhada dos caminhos trasmontanos da rota da lã, chegando a contar- -se nela mais de 250 artesãos cardadores e fabricantes de lã, com uma cascata de pisões implantados nas margens dos ribeiros que descem a serra de Bornes. No próprio tribunal de Coimbra se dava conta do êxito alcançado, com um promotor a solicitar dos inquisidores o lançamento de uma operação semelhante em Torre de Moncorvo, conforme se lê no processo de Francisca Vaz: - Lembro a Vossas Mercês que a Torre é terra nova em que importa ao serviço de Deus entrar a inquisição, que fez muito fruto entrando por testemunhas em Quintela e em Sambade. A Torre ficou mesmo limpa da gente da “infecta nação”, a partir dos anos de 1670. E ficou também limpa dos capitais e das empresas dos judeus, que se mudaram para outros sítios. A limpeza étnica prosseguiu por Chacim, Vila Flor, Miranda do Douro, Freixo de espada à Cinta, Carção Mogadouro… Sobre esta última localidade, escrevia outro promotor da inquisição de Coimbra, em 1653: - Mogadouro, que há muito tempo arde em judaísmo e aonde o santo ofício tem presas mais de 60 pessoas e tem fugidas outras tantas ou mais, para não serem presas. Bragança albergava uma das mais numerosas comunidades hebreias do país e, porventura, a mais rica e poderosa, mercê da sua florescente indústria das sedas, essencial para vestir a casa real, as gentes da nobreza, os bispos e os padres que nas igrejas glorificavam Cristo, cobrindo-se, eles e os altares, com luxuosas sedas fabricadas em dois ou três centos de oficinas familiares, em Bragança. Por isso mesmo, por se tratar de uma comunidade numerosa e rica, a “nação de Bragança” despertaria especial interesse e apetite da parte do santo ofício. Assim, ao findar da década de 1650, a avalanche de prisões, com várias pessoas “relaxadas à justiça secular”, fez com que muitos judaizantes brigantinos tomassem o caminho de Coimbra para se ir apresentar, antes que fossem prendê-los. Dir-se-ia então que os juízes daquele tribunal não tinham “mãos a medir”, tal o movimento de prisões e apresentações. Mais uma vez, tal como acontecera em finais da centúria de 500, os judeus brigantinos “entupiam” a inquisição de Coimbra. E então surgiu a ideia de fazerem uma petição, que enviaram àquele tribunal, manifestando o desejo de se apresentar a confessar suas culpas e pedindo para serem ouvidos em confissão por algum comissário ou inquisidor, na cidade de Bragança. A ideia ganhou concretização em 5 de janeiro de 1661, quando, cerca de meia centena de cristãos-novos assinou a citada petição. Por despacho do Conselho Geral, o santo ofício de Coimbra mandou para Bragança o novel inquisidor Manuel Pimentel de Sousa, que se fez acompanhar pelo escrivão do mesmo tribunal, Pedro Saraiva de Vasconcelos. Na capital trasmontana, durante 3 meses, entre Março e Maio daquele ano, eles assentaram morada e ouviram as confissões dos cerca de 50 judaizantes, ali se começando a organizar os respetivos processos. Antes de continuarmos, vamos fazer uma breve apresentação do inquisidor e do escrivão, ambos trasmontanos, aquele de Vimioso e este da Torre de Moncorvo e contando parentes comuns, vários deles servindo igualmente o santo ofício. Manuel Pimentel de Sousa, como se disse, era natural de Vimioso, filho e neto de gente daquela terra. Cursou a universidade de Coimbra, formando-se em Cânones. Ali se fez padre, com “habilitação de genere” tirada em 1646, e ascendeu a cónego da Sé da mesma cidade. Em 30.4.1654, foi nomeado deputado do tribunal da inquisição e, em 3.7.1660, tomou juramento de inquisidor. Mais tarde, ingressou nos quadros do conselho geral do santo ofício. D. Maria de Morais, irmã do inquisidor Pimentel de Sousa era casada com Pedro Gouveia de Vasconcelos, capitão-mor do concelho de Algoso e uma filha destes, chamada D. Mariana de Morais Pimentel, casou na Torre de Moncorvo, com Cristóvão Saraiva de Vasconcelos, irmão do comissário da inquisição, abade de Chacim, Dr. Manuel Gouveia de Vasconcelos. A esta família estava também ligado o escrivão Pedro Saraiva de Vasconcelos que, nascido embora em Freixo de Numão, por 1602, veio pequeno com sua mãe, D. Leonor Saraiva de Vasconcelos, para Moncorvo, acompanhando o seu irmão, padre António Saraiva de Vasconcelos, nomeado “escrivão da câmara eclesiástica, visitações e resíduos da comarca” e que mais tarde, seria também nomeado comissário da inquisição. Uma irmã destes, D. Brites Saraiva de Vasconcelos, casou em Torre de Moncorvo com Francisco Botelho de Morais, familiar da inquisição e “um dos homens ricos e principais da província”, conforme consta do processo de habilitação de seu filho, Paulo Botelho de Morais, que não conseguiu ser provido. Como se vê (e isto é apenas uma pequena amostra feita a partir de um ramo), tanto na família do inquisidor Pimentel de Sousa como na do escrivão Saraiva de Vasconcelos, como, aliás, na generalidade das famílias da nobreza cristã-velha, abundavam os funcionários e agentes da inquisição. Na inquisição, como em outras instituições e nas estruturas do poder político em geral, o compadrio reinava e as famílias constituíam-se em verdadeiras agências de emprego. Voltemos atrás, ao mês de Janeiro de 1661, “ao tempo em que principiavam a fazer muitas prisões na cidade de Bragança, que continuavam com um excesso tão grande, que quase despovoava a dita cidade. E de tal forma que os presos os mais dos moradores daquela cidade até viam seus filhos andar pelas ruas, despidos e descalços, padecendo a necessidade, sem ainda à noite terem onde se recolher. E vendo isso aqueles que não estavam presos, temendo que os carcerados, ou por vingança, ou por se verem soltos, jurariam contra eles, se resolveram a fugir pra Castela ou apresentarem-se voluntariamente, declarando o que não haviam cometido”- conforme testemunhou mais tarde, na inquisição de Coimbra uma das mulheres que assinaram a citada petição. Estamos agora no mês de Março de 1661, “na casa onde pousava o senhor inquisidor Manuel Pimentel de Sousa que, por ordem do conselho geral do santo ofício veio tomar as confissões das pessoas apresentadas”. Perante o senhor inquisidor, durante cerca de 3 meses, foram comparecendo os peticionários, cada um deles identificando-se e confessando depois as suas culpas de judaísmo, com Pedro Saraiva de Vasconcelos a organizar cada processo, e neles escrever as respetivas confissões. Autuadas as confissões e regressados a Coimbra o inquisidor e o escrivão, entraria aquele na análise de cada processo, certamente acrescentando confissões de outros presos e trocando informações de outros processos. E à medida que os processos iam ganhando corpo, cada um dos judaizantes de Bragança foi sendo chamado a Coimbra para ouvir a sentença ou para continuar o seu processo, até 1670. Vários acabaram presos e quase todos foram sentenciados, em penas mais ou menos leves. Na impossibilidade de estudarmos aquele cento de processos, escolhemos alguns deles e, nos próximos números deste jornal, seguiremos um pouco da história de 3 dos agrupamentos familiares envolvidos e seus descendentes.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Juiz do Fisco de Coimbra em Bragança

Nestes quadros sociais deparamos com dois factos bem pouco vulgares. Um deles respeita à presença de um inquisidor de Coimbra em Bragança, durante uns 4 meses, concedendo audiências e instruindo processos. Sobre o assunto estamos preparando um trabalho que em breve apresentaremos. O outro facto é a estadia em Bragança, entre junho e novembro de 1685, do “juiz executor geral das dívidas e fazendas do fisco real” do distrito inquisitorial de Coimbra, Dr. Luís Álvares da Costa. O seu trabalho desenvolveu-se “executando, cobrando, arrecadando e vendendo tudo o que ao dito fisco pertence”. Terão sido as notícias de fuga de bens sequestrados que levaram a esta deslocação do juiz do fisco de Coimbra para Bragança? Teria isso a ver com o grande número de prisões então efetuadas na área da comarca de Bragança/Miranda? E estará também relacionada com dificuldades financeiras da inquisição e do fisco, derivadas da suspensão da sua atividade, em anos anteriores, que exigiam medidas urgentes de recolha de fundos?  Seja como for, ainda antes de chegar a Bragança, o juiz Álvares da Costa expediu ordens aos 4 concelhos do ramo de Miranda, para os juízes de fora ordenarem a entrega, em Bragança, dos dinheiros e peças de ouro do fisco, que estavam em mãos de depositários. Assim, em Miranda, em mão do depositário Bento Simões, encontravam-se 89 960 réis. Por ordem do juiz de fora, aquele dinheiro foi levado a Bragança, pelo meirinho da cidade, André Moreira Freire, em 24.6.1685. Obviamente que todas estas diligências foram objeto de registos e certidões notariais. O dinheiro resultou da venda de bens sequestrados em Campo de Víboras a Maria Fernandes (4 739 réis); em Vimioso (a Manuel da Costa e sua mulher (5 600) e à mulher de João Carvalho (20 000); em Sendim a António Rodrigues (13 392). O meirinho não trazia registo nem conseguiu explicar a origem de 5 moedas de ouro no valor de 22 000 réis que entregou, porque o depositário dessas moedas era José de Sá Dantas, do Vimioso, que então estava preso em Coimbra e quem lhas entregou foi o cunhado dele, cónego António Pires Paiva. Para além do dinheiro, trazia um anel de ouro que fora sequestrado à citada Maria Fernandes e o entregou também. Recebidos os 89 860 réis e passada a respetiva certidão, mandou o juiz Álvares da Costa retirar 2 000 réis para pagar a viagem do meirinho de Miranda a Bragança e 219 réis para levar ao escrivão de Miranda que tinha feito os documentos de suporte do dinheiro entregue. Descontos feitos, o anel e os 87 641 sobrantes foram entregues pelo juiz ao depositário geral de Bragança, Miguel Rodrigues, que os haveria de levar a Coimbra.  Em 17 de setembro seguinte, na mesma casa e perante o mesmo juiz, compareceu Francisco Rodrigues, depositário do fisco na vila de Algoso a entregar 36 257 réis, procedidos dos sequestros e inventários de bens de João Rodrigues, sapateiro, natural de Sendim, morador no Algoso; Filipe Lopes, de Urrós; Filipe Cardoso, de S. Pedro da Silva; e António Rodrigues, da vila de Algoso. Registe-se que todos estes réus tinham sido presos antes de 1670. Filipe Cardoso, por exemplo, foi preso em 1665 e sentenciado em 1667. Portanto, a execução do sequestro arrastava-se desde há 18 anos. Diligência semelhante se realizou em 22.10.1685, dia em que Pedro Afonso, da cidade de Miranda do Douro foi a Bragança fazer entrega de 65 862 réis provenientes do foro de 20 alqueires de trigo sequestrados a António Rodrigues, de Sendim e alguma fazenda que era do tendeiro João da Costa, de quem se falou em um dos textos anteriores. Daquele dinheiro, porém, o juiz Costa mandou subtrair 8 294, antes de o entregar ao depositário geral de Bragança. Vejamos: Para si próprio – 4 872 réis, de custas sobre a execução de uma parte daquele dinheiro... Ao caminheiro Simão de Brito, que foi a Miranda fazer a dita execução – 245 rs. Para o mesmo juiz, “de custas de caminhos, estadia e feitio de uma carta” – 2 177. A Pedro Afonso, da deslocação a Bragança – 10 tostões = 1 000 rs.  Guardamos para o fim a entrega feita por João da Silva, meirinho do judicial do concelho de Outeiro, no montante de 12 000 réis. Este dinheiro tem uma história exemplar. Vamos contar: António Oliveira era um cristão-novo natural e morador em Argoselo. Tinha 37 anos quando foi sentenciado no auto da fé de 13.2.1667. Sequestraram-lhe o rendimento de uma vinha e de um prado que tinha, rendimento calculado em 2 000 réis. Os outros 10 mil réis resultaram de multas impostas pelo fisco a 3 dos seus agentes em Outeiro, a saber: o juiz da paz, Francisco Rodrigues Santulhão, o escrivão Leonardo Machado e o citado João da Silva, meirinho do judicial. O juiz e o escrivão foram condenados em 4 000 réis cada um e o meirinho em 2 mil, por “levarem mais do que importava do inventário” de Estêvão Rodrigues. Ou seja: ao fazer o inventário e sequestro dos bens, levaram mais dinheiro do que pertencia, pelo trabalho.  Sim, embora existissem tabelas aprovadas pela inquisição e fisco real, muitas vezes os agentes do fisco, quando intervinham na feitura dos inventários e sequestros dos presos, na arrematação dos seus bens e outras diligências, cobravam mais do que deviam. Neste caso, foram condenados. De outros casos temos conhecimento e logo no primeiro texto que escrevemos sobre este assunto apresentámos uma carta do escrivão do fisco em Bragança denunciando abusos dos agentes na execução das prisões e na feitura dos inventários. Realizou-se um processo de averiguações em cujo despacho, datado de 16.8.1715, se condena o comportamento de familiares, escrivão e outros agentes da inquisição e do fisco. Vejam: - Nos inventários feitos nesta cidade, não somente se acham contados salários por dias, como se fossem fazer fora da terra, mas ainda o salário de cada dia muito exorbitante ao que cada um tem taxado pela lei, quando vai fora da terra. O que é mais de notar, havendo tantas ordenações que proíbem, com graves penas, exceder cada um o salário que pelas leis lhes é taxado. - A falta, parece, é do escrivão, omitindo o que é manifesto e que no dito provimento se lhe encarrega, mas como também quer que lhe contem salários de dias em sua casa, não lhe convém ir contra a própria conveniência a dita observação do provimento. E chega a tanto excesso esta conta de salários de dias na própria terra, que houve vários inventários com escrita somente de uma folha de papel de que, em sua execução, ficou para o fisco menos de 600 réis, e a conta dos 3 inventários, pelos custos deles, importou em mais de 2 mil réis cada um; e nestes excessos tem havido tanto dano da fazenda real, que para ressarcir de tantos inventários, deve promotor o fiscal e o escrivão observar os provimentos, com a pena de se lhe dar em culpa e se lhe imporem as que, pelas leis se dá aos que levam mais do que por elas lhes é taxado. - Fique em advertência que o escrivão deve escrever no inventário as roupas que levam os presos para o santo ofício (…) e assim também fará assinar os familiares o termo do dinheiro que se lhe entrega para alimentos de cada preso (…) e houve nisto tal desordem que levavam dinheiro de vários presos sem saberem dizer de que presos era (...) - Nas contas dos inventários deve declarar abaixo de que procedeu o dinheiro, se de bens vendidos para isso ou dado pelos depositários por essa conta, e em tudo toda a declaração necessária, pelas muitas dúvidas que depois resultam, passados muitos anos, em que as memórias não podem estar certas, ainda que a vida dure (…)  Na verdade, parece que muita gente corria atrás do dinheiro dos judaizantes presos pela inquisição e muitas bocas em Bragança se alimentavam dos bens sequestrados aos judeus. E isto mesmo sem transgredir as leis. Veja-se como “voaram” legalmente e com despacho do próprio juiz Álvares da Costa, 41 952 réis na execução de uns inventários, em Bragança, em 25.11.1685: Ao Dr. Juiz de fora, de uma devassa que tirou… – 1 436 rs. Ao escrivão Diogo Monteiro, de uns inventários – 1 345. Ao escrivão que este fez – 5 773. De tirar a devassa acima – 842. Ao porteiro Domingos Álvares, dos pregões, arrematações e caminhos a Quintela – 2 040. E 200 réis que se deram a um louvado pela liquidação da casa de João da Costa. E outros 200 réis que se deram à mulher do Chupa, por um concerto da casa em que morava, que era do fisco e se vendeu também. De custas que devia Manuel Martins, de Quintela – 2 300. E assim mais a ele juiz executor 32 998 réis, procedidos de: 2 300 de custas que devia Manuel Martins, de Quintela, ao tempo que se lhe arrematou a fazenda para o fisco (…) E nas custas de António da Costa – 843.  (…) O despacho acima transcrito não foi o único, nem o primeiro. Abusos como os descritos já vinham de outros tempos. Veja-se, a título de exemplo, um excerto de uma provisão expedida de Chacim para Bragança, em 22.7.1703: - Nos sequestros, nem em outra alguma diligência que se fizer dentro da cidade, se levará salário de dias, assim os ministros como os oficiais; só podem levar quando fora da terra; e se lhe deve então contar na forma da lei somente; e deste provimento se fará parte ao ministro que fizer o sequestro ou diligência, para o fazer executar. 

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- António Madureira Tesoureiro do Fisco

Escrevemos já um texto sobre a ascensão social de António Mendes Madureira, um sapateiro que conseguiu a carta de familiar da inquisição em 18.6.1711. Contudo já muito antes dessa data, ele dirigia levas de prisioneiros a Coimbra. E resumindo- -se os seus haveres a uma casa avaliada em 30 mil réis, já em Outubro de 1709, lhe era confiada uma verba de 456 794 réis para levar a Coimbra e entregar ao tesoureiro geral do fisco daquela inquisição.  Tanto quanto os documentos deixam ver, pelo trabalho desenvolvido, tanto nas levas de prisioneiros como de dinheiros, ele seria, certamente um dos mais destacados agentes da inquisição em Bragança no primeiro quartel do século XVIII, sendo nomeado “tesoureiro geral do fisco” na área da comarca. Antes de prosseguirmos, diga-se que as contas de António Madureira aparecem clara e extremamente bem escrituradas no livro competente, permitindo acompanhar a execução de meia centena de sequestros. Por vezes, passava uma dezena e mais de anos em que, “como depositário e não como tesoureiro”, Madureira conservava o dinheiro dos sequestros “até no juízo do fisco se determinar os embargos com que vieram as pessoas às suas execuções, mostrando que não eram devedoras e sem decisão dos tais embargos não levasse o tal dinheiro a Coimbra, sem serem por inteiro decididos os embargos”. Ocasionalmente surgiam dúvidas porque os bens da família eram comuns, não se sabendo quais pertenciam ao réu para serem vendidos. Foi o caso do inventário de Henrique Novais da Costa e sua mulher, aquele preso em 1711 e esta em 1715, em que, quando ele foi preso, se “não vendeu nada, por haver dúvida nos bens que se havia de vender toda ou se a sexta parte, que está confiscada, que é uma casa e uma vinha que está perdida”. Mais elucidativo foi o caso do inventário e sequestro de bens de Luísa Nunes, a mãe do advogado Dr. António Pissarro, presa em 1717, em que os bens foram à praça e arrematados pelo marido da ré, Pedro Rodrigues Álvares por 80 500 réis. Antes, porém, já ele tinha adiantado 60 000 réis para alimentos na cadeia, no cumprimento do mandado de prisão. E adiantara mais 4 944 réis para pagar as custas do inventário. Por isso, depois de arrematar os bens leiloados, ele recusou-se a entregar dinheiro algum. Veja-se a justificação: - Como ele tinha metade em todos os bens, por estar casado com a dita sua mulher, fez a dita arrematação, na dita quantia, com tal condição de não ser obrigado ao tal pagamento porque desde logo também desistia do mais que lhe pertencia à sua meação, pois a mal, podia ir requerer a Coimbra.  Exemplar também, o leilão dos bens de Violante Pereira, irmã de Luísa Nunes, de que foram arrematados pelo marido, Bartolomeu Lopes Franco o qual ofereceu 61 000 réis pelos bens móveis e 70 000 pelos de raiz. No entanto, “não deu dinheiro algum, com pretexto que o não tinha e porque tinha ido no juízo superior requerer partilhas”. Acrescentou que tinham dívidas e que ele já dera 60 000 para alimentos e mais 5 107 das custas de fazer o inventário de sua mulher. Como este dinheiro devia ser abatido nas partilhas, então ele pagaria o que ficasse devendo, depois de feitas as contas. Para Coimbra, no entanto, foi remetido o livro- -razão, certamente para servir de apoio na inquirição dos inquisidores sobre o inventário da ré. No caso de Domingos Lopes Vinagre,  “não se vendeu nada por se ter dado para alimentos mais do que o valor dos bens” e no caso de Sebastião da Costa, o Chacla, tecelão de sedas e sua mulher, Catarina da Costa, “não se vendeu nada dele por não chegarem os bens aos gastos do santo ofício e esteve na cadeia até que os pagou”. E conhecemos também um caso, acontecido em Agrochão, Vinhais, em que os bens de Manuel de Almeida Castro foram a leilão e não houve quem mandasse nada por eles. Possivelmente os potenciais compradores retraíram-se, face ao peso social e poderio económico da família.  Voltemos a António Mendes Madureira, tesoureiro do fisco, que, em 9.3.1717, se apresentou em casa do escrivão Francisco Correia com uma certidão assinada pelo escrivão do fisco no distrito da inquisição de Coimbra, atestando que ali entregara 890 090 réis, “dos quais pertenciam aos bens confiscados a Manuel Lopes, pássaro gago, de alcunha, e se mandaram confiscar pela confiscação de seu filho, médico nesta cidade, 12 525 réis e o mais foi de dívidas que se cobraram do inventário dos confiscados Henrique Novais da Costa e sua mulher Catarina da Costa, da cidade de Bragança, o qual dinheiro todo se carregou em receita sobre o depositário do fisco geral, Gualter Ferreira da Costa…”  Como se vê uma parte do dinheiro fora cobrada em Mirandela, da mão de Manuel Lopes, mas respeitava ao sequestro de seu filho, o Dr. António Lopes Pereira, de 24 anos, preso pela inquisição em 1704 e falecido na cadeia no ano seguinte, casado em Bragança com Isabel Henriques, Raba, que foi presa em 1709.  Tinham passado mais de 10 anos sobre o sequestro dos bens do médico e que eram bem poucos, não chegando para pagar os alimentos, a fazer fé no inventário que ele ditou para o processo: Um caixão de pinho que valerá - 2 000 réis. Um espelho, que valerá - 2 000 rs Um bufete de nogueira - 2 000 rs Um braseiro ferro - 2 000 rs Uma arca de castanho - 2 000 rs Meia dúzia de cadeiras - 1 200 rs Um leito de castanho - 1 000 rs Um pichel de castanho - 1 200 rs A roupa de seu uso e mais que tinha, daria conta sua mulher.  Voltemos atrás, à entrega de 890 090 réis por António Madureira, provenientes dos sequestros do Pássaro Gago, de Mirandela e de Henrique de Novais, tratante e sua mulher, Catarina da Costa.  Na cobrança das dívidas desta última família andaram os caminheiros Manuel Fernandes e Manuel Santos que entregaram nas mãos do depositário 974 030 réis, montante superior ao que este levou para Coimbra. O facto explica-se pelo que foi preciso pagar a diversos intervenientes na execução do sequestro, a começar pelos próprios caminheiros. Mas sobre estas despesas haveremos de falar em próximo texto. Por agora diremos que, para além do dinheiro recebido por Madureira destes dois sequestros, estão registados no Livro que vimos analisando mais 5 dezenas de inventários de bens executados e está registada uma outra entrega de dinheiro em Coimbra, no montante de um conto, 375 mil, 778 réis, pelo mesmo depositário/tesoureiro António Mendes Madureira. De referir que neste livro apenas se apresentam os nomes das pessoas e os dinheiros. Quando muito especifica-se o que renderam os bens móveis e os de raiz. Em uma ou outra ocasião fala- -se de uma vinha ou de “um quinto de uma casa”. Há, no entanto, um pormenor interessante referente ao sequestro dos bens de Maria do Couto, que encontrámos em um dos primeiros textos desse trabalho. Do seu inventário somente aparece registada a venda de “uma pouca de pedra” que rendeu 1 920 réis. É bom exemplo do empenho dos “olheiros” da inquisição nos bens dos presos. Outro pormenor que julgamos de algum interesse respeita ao inventário de Gabriel Henriques de Sá, tecelão que entregou ao tesoureiro Madureira “de um inoque  que se lhe não sabe o dono, só que era do fisco – 10 tostões”, ou seja 1 000 réis. Terminamos copiando o registo da entrada de uns dinheiros entregues ao depositário Madureira, a título de exemplo, registo feito pelo escrivão do fisco, Francisco Correia. Vejam: - Dos inventários de José Rodrigues Gabriel e sua mulher, Luísa Maria, entrando todos os móveis sequestrados dos dois inventários- 172 000 réis. E de raiz – 42 977 réis. Sem embargo de os arrematar em – 160 000 réis. E os rendimentos da fazenda era, enquanto à sua parte importa em – 9 250 réis. Que importa tudo em – 169 750 réis. E desta quantia se abateram 120 000 réis, de seus alimentos no santo ofício, de que deram conhecimentos em forma e bem assim se abateram mais – 6 783 réis – da “façam” dos ditos inventários.