António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Depósito dos Bens de José Henriques Nunes, Raba

Nos círculos judaicos e entre os estudiosos da diáspora sefardita, a família Raba é muito conhecida. No entanto esse conhecimento está estritamente ligado ao sucesso da família em terras da diáspora e menos às suas raízes Trasmontanas. A grande maioria dos trabalhos publicados, inclusivamente por nós, versa a história da família a partir do século XVIII, passando mais ou menos em claro os 200 anos anteriores. (1) Sim que a história da família pode ser contada desde o tempo em que os judeus foram obrigados a batizar-se para poder viver em Portugal, em 1496. E por mais de 2 séculos que a inquisição reinou em Portugal, várias gerações de homens e mulheres da família Raba sofreram nas suas prisões. Um dos primeiros foi Henrique Afonso, sapateiro, nascido em Bragança por 1529, filho de Pedro Afonso e Catarina Gonçalves (provavelmente batizados em pé), que foi preso em 1589 e faleceu na cadeia de Coimbra em 3.4.1593. Acabou por ser sentenciado no auto de 27.6.1593 “em confisco de bens e seus ossos desenterrados e reduzidos a pó e cinza”. A viúva, Florença Carrião, foi presa 5 anos depois. Suicidou-se no cárcere da inquisição em 18.6.1598. A sentença, igual à do marido, foi lida no auto da fé de 20.9.1599. (2) Ana Furtado, filha de Henrique e Florença, era casada com João Fernandes, tratante, natural de Quintela de Lampaças. Face à vaga de prisões que assolou Bragança, um e outro rumaram a Coimbra a apresentar-se voluntariamente e confessar suas culpas de judaísmo. Mandada regressar a casa, Ana veio a falecer 4 anos depois, em 11.4.1599, em Bragança. Mas isso não impediu que o seu processo continuasse e o seu nome constasse dos sentenciados no auto de 6.5.1601. (3) Florença Carrião como a avó materna, filha de Ana e João foi também apresentar-se a Coimbra, em 22.3.1602. Não obstante, foram-lhe confiscados os bens, com sentença lida no auto de Maio seguinte. (4) Era casada com Francisco Rodrigues, sapateiro e este é o primeiro que nos aparece com a alcunha de Raba. O seu filho António Rodrigues, também sapateiro, foi casar e morar em Quintela de Lampaças, com Maria Pereira, igualmente filha de um sapateiro. Ambos foram presos, juntamente com 17 outros moradores, numa verdadeira operação de limpeza étnica da aldeia, lançada pela inquisição em dezembro de 1637. (5) Na geração seguinte, foi a vez do filho, Francisco Nunes Raba, também sapateiro, e sua mulher, Isabel Rodrigues. Aquele faleceu na cadeia, um mês depois de ser preso, em 24.6.1660, mas a sentença apenas foi lida 25 anos depois, no auto de 4.2.1685! (6) E chegamos a José Henriques Nunes, filho dos anteriores, que foi preso em 4.10.1705, juntamente com sua mulher, Maria Antónia, esta natural de Monforte de Lemos, Galiza. (7) Ambos voltaram a ser presos, saindo penitenciados no auto de 21.6.1711. Tanto da primeira como da segunda vez, foram condenados em sequestro de bens, cárcere e hábito penitencial perpétuo. E este é o tema deste nosso trabalho: seguir, na medida do possível, a execução do sequestro, matéria que raramente é tratada pelos historiadores. No texto anterior, quando tratamos dos bens sequestrados a João da Costa, apareceu-nos José Henriques, como procurador de Inês Lopes, sua mulher, a reclamar a sua parte nos mesmos bens. Dissemos também que João da Costa era tio materno de José. Resta acrescentar que Maria da Costa, sua sogra, mãe de Antónia, era igualmente sua tia materna. Numa linhagem de sapateiros e curtidores, José Henriques guindou-se a uma classe social mais elevada, apresentando-se como mercador e rendeiro. E quando foi preso, trazia arrendada a cobrança do real d´água no concelho de Bragança, um imposto que se cobrava sobre o vinho e a carne que se vendiam nas tabernas e açougues. Mandados prender com sequestro de bens, em Setembro de 1705, a execução do sequestro começou de imediato, ficando como depositário desses bens o ferrador Bartolomeu Rodrigues. O rol do dinheiro então recebido estende-se por 4 páginas do livro e certamente reporta a dívidas cobradas, conforme os livros razão encontrados na casa ou tenda de mercador de José Henriques. E começa com a cobrança de uma letra que António de Novais Sá tinha passado ao dito mercador. Fizeram- -se assim 393 721 réis. Procedeu-se também à cobrança do real de água a taberneiros de duas dezenas de localidades do concelho, correspondente aos 9 meses que eram passados na vigência do contrato daquele ano, no total de 195 710 réis. E também o que deviam pagar os obrigados dos açougues da cidade, que ascendeu a 100 500 réis. Para além disso, receberam-se 9 mil réis de um homem da terra de Miranda, em paga de umas gadanhas, 610 réis de 10 alqueires de farelos que se venderam, 9 600 réis de 2 presuntos que pesaram 24 arráteis e 5 340 réis que se encontraram na casa dos presos. Uma parte deste dinheiro foi logo entregue ao familiar do santo ofício que dirigiu a leva dos prisioneiros para Coimbra, incluindo nomeadamente 120 mil réis para alimentos de José Raba e Maria Antónia. Ficou o depositário Bartolomeu Rodrigues responsável por 665 638 réis. Esta foi a primeira fase do sequestro, feita com base no mandado de prisão. Com a leitura da sentença no auto-da-fé e decreto definitivo do sequestro, este prosseguiu. Assim acresceram 130 100 réis que se fizeram de leilões de bens móveis. Mas não se pense que tudo ficou para o fisco. Não que houve de acorrer a muitas despesas com os caminheiros que andaram nas cobranças pelo concelho, ao juiz de fora por presidir ao sequestro, ao escrivão pelas cartas, precatórios e mandados… haveremos de falar dessas despesas em próximo texto, mostrando que muita gente “comia” à custa dos presos da inquisição. Por agora diga-se apenas que estas despesas, no caso presente, ascenderam a 44 725 réis. Foram então contabilizados 695 620 réis em mão do depositário, assim como um macho, uma balança, uma fivela, botões, colheres e outros objetos de prata que, em 10.4.1707, foram entregues ao depositário do fisco na inquisição de Coimbra, o cavaleiro fidalgo, familiar do santo ofício, Gualter Ferreira da Costa, desobrigando-se daquele montante o depositário Bartolomeu Rodrigues. No entanto, ainda não ficou resolvida a liquidação do sequestro, já que ainda ficaram por arrecadar alguns dinheiros do real d´água e por vender alguns bens, como fossem gadanhas e cartas de jogar. E isto revela uma faceta interessante da atividade comercial de José Henriques Nunes Raba. Vejamos. A gadanha era objeto essencial para o corte da erva dos lameiros. Objeto de ferro, precisa de ser muito bem laminado e temperado e dificilmente haveria na região capacidade tecnológica para o seu fabrico. Possivelmente era importado de algum país nórdico ou da região da Biscaia. Seria o Raba o distribuidor destas alfaias pela região? Facto é que, em Fevereiro de 1709, ainda estavam 23 ganhadas por vender, entregues ao depositário. Quanto às cartas de jogar, sabemos que o “judeu” brigantino Eliseu Pimentel conseguiu, em 1703, o monopólio de venda pelo país. (8) Em terras de Trás-os-Montes, o negócio estaria na mão do Raba, conforme se vê da listagem de estalajadeiros/compradores de baralhos de cartas em dívida, que iam de Vila Franca a Vila Flor, de Lebução a Freixo de Espada à Cinta, de Bemposta aos Cerejais e a Lamalonga… Resta falar dos bens da tenda que foram arrematados por Francisco Henriques Raba, o filho mais velho de José Henriques pelo valor de 105 890 réis. Cresceram assim 280 542 réis das gadanhas, das cartas e da tenda, dinheiro que foi entregue por Bartolomeu Rodrigues ao novo depositário do fisco em Bragança, António Chaves Salgado, com certidão passada pelo escrivão Francisco Correia, em 2.2.1709, e com ordem para entregar aquele dinheiro em Coimbra, no prazo de 20 dias.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Depósito dos bens de João da Costa

Uma das profissões mais comuns entre a gente da nação era a de sapateiro. Mas não se pense que era uma profissão menos digna, do ponto de vista económico e social. Antes pelo contrário. Feita esta prévia observação, vamos apresentar duas famílias de sapateiros que se uniram, em vários casamentos e cujo prestígio cresceu, ao longo de gerações. Uma dessas famílias foi a dos Vinagres, de Vila Flor e outra dos Raba, de Bragança. Gonçalo Lopes Vinagre nasceu em Vila Flor, por 1594. Casou com Maria Lopes, da Torre de Moncorvo, assentando o casal a morada em Vila Flor, onde Gonçalo exercitava a arte de sapateiro, quando foi preso pelo santo ofício, em 1664. (1) Eles foram os pais de Inês Lopes, que vamos encontrar de seguida. Um irmão de Maria Lopes chamava-se Luís Lopes Tinoco e era casado com Catarina Martins. Viveram em Torre de Moncorvo e neste casal de Moncorvenses entronca a família dos Raba. (2) Por outro lado, temos a família de Mateus da Costa, sapateiro e sua mulher, Ana Furtada, que viveram em Bragança e foram os pais de João da Costa, o nosso protagonista, sapateiro de profissão. João da Costa era irmão de Isabel Rodrigues, a qual casou com Francisco Nunes, o Raba, igualmente sapateiro e morador em Bragança. Isabel e Francisco foram presos pela inquisição em 1660, acabando este por falecer na cadeia em 28.6.1660 … Mas a sentença apenas foi lida 23 anos depois, no auto-da-fé de 4.2.1685! (3) Fiquemos então em Bragança, nos anos de 1665, quando ali se desenvolvia uma vasta operação de limpeza da heresia judaica, lançada pela inquisição. Contava Inês Lopes os seus 18 anos e estava solteira, quando, em Fevereiro daquele ano, se meteu a caminho de Coimbra, a apresentar- -se no santo ofício para confessar culpas de judaísmo. (4) Foi mandada regressar a casa e mais tarde foi chamada para ser processada e sentenciada pelo mesmo tribunal, saindo no auto-da-fé de 26.5.1669, condenada em cárcere e hábito e sequestro de bens. O mesmo caminho seguiu João da Costa, em Outubro de 1668, quando contava 37 anos e se mantinha solteiro. (5) Regressou a casa para mais tarde ser chamado, saindo penitenciado em 23.3.1683, estando já casado com Inês Lopes. E além de sapateiro, João metera-se a tendeiro. Baltasar da Costa e Luísa da Costa eram filhos de João e Inês. Casaram com dois irmãos, Maria de Oliveira e Domingos Lopes de Oliveira, respetivamente, filhos de João Lopes (Vinagre), o Regalado de alcunha e Leonor de Oliveira, ambos nascidos em Vila Flor e que em Mirandela formaram casa. Eles não eram já sapateiros como os pais, mas fabricantes de tecidos de seda, uma profissão bem mais prestigiante. Todos eles, em nova operação de limpeza étnica, experimentaram também a justiça inquisitorial, com destaque para Domingos, aliás, Jacob, que foi queimado no auto de 16.6.1720. (6) Não vamos agora analisar os seus processos porque o nosso objetivo é o sequestro dos bens de João da Costa, que saiu penitenciado em 23.3.1683. Vejamos então o que pudemos apurar sobre a execução deste sequestro e a entrega do dinheiro que se apurou aos depositários do fisco em Bragança Gonçalo Pires, ferrador e Miguel Rodrigues. Antes de prosseguirmos, diga-se que a nomeação dos depositários do fisco competia à câmara municipal, cujo presidente era o juiz de fora, o qual dirigia também a execução dos sequestros. Por esse tempo, o juiz de fora em Bragança era o Dr. André de Morais Cardoso, natural de Freixiel, Vila Flor, licenciado em cânones (direito) pela universidade de Coimbra, em 1679. (7) Quanto aos depositários Gonçalo Pires e Miguel Rodrigues, não conseguimos elementos de identificação mas seriam homens de muito crédito e avultados bens, para garantir os depósitos do fisco, conforme exigência legal. A primeira entrega ao depositário Gonçalo Pires foi feita por Bastião Rodrigues, em 22.12.1683, na casa do juiz de fora e na presença deste, com Francisco Correia a escrever o respetivo auto. Bastião Pires arrematara uns bens móveis de João da Costa pelo valor de 66 000 réis, que entregou. Gonçalo Pires ficou apenas depositário de 64 724 réis, porque 436 rs ficaram na mão do juiz de fora por presidir ao inventário e numerar o livro da receita; 640 foram para o escrivão do auto e 200 rs foram para a compra do livro. Um segundo depósito foi feito em 1.4.1685, no montante de 6 250 rs, por José Correia em mão de Miguel Rodrigues. Uma terceira entrega de dinheiro foi feita por Pedro Afonso, depositário do fisco em Miranda do Douro, que os recebera de António Colmeeiro de Morais, na qualidade de herdeiro do falecido capitão de infantaria Vicente Sousa Pereira, que os devia a João da Costa. Este facto é bem elucidativo da minúcia dos confiscos por parte da inquisição. E não foi apenas em Miranda do Douro que o fico cobrou dívidas de João da Costa. Registamos mais de duas dezenas de localidades trasmontanas onde foram cobrados dinheiros em dívida a João da Costa. E até mesmo em Castela, nas localidades de Lobios e de Belmont, termo de Ourense. Esta relação de dinheiros entregues estende-se por 7 páginas do livro, contando-se quase duas centenas de devedores, no montante de 392 058 réis. Não é verba que espante, diga-se. As diligências da recolha, é que terão sido muitas e insistentes. Àquela quantia deverão acrescentar-se 31 864 réis que foram entregues, no ano seguinte, de 1686, ao depositário Gonçalo Pires, “novamente nomeado”. Entre aquelas duas centenas de pessoas que deviam dinheiro ao tendeiro João da Costa, contamos gente da nobreza, como Lázaro Jorge Figueiredo, o Dr. Lobo Maris, António Colmeeiro de Morais... Entre os 16 padres, de várias freguesias, algumas bem distantes, que aparecem a pagar dívidas, cite-se o reitor da igreja de Santa Maria, o reitor António de Távora e o reitor de Babe. Outra classe profissional com alguma representação é a dos militares, aparecendo meia dúzia de graduados e uma dúzia de soldados. E até aparece uma dívida de 2.900 réis, de um sargento de infantaria da praça de Miranda do Douro. De resto, não sabemos, por na relação aparecerem apenas nomes de pessoas e a quantia em pagamento. Raramente se identifica também a causa da dívida e, por isso, não podemos fazer uma avaliação, mesmo grosseira, das capacidades económicas de João da Costa, nem das características da sua “tenda”, já que apenas se referem meia dúzia de produtos como ferro, aço, milho serôdio, baetas, meias de seda, manteiga e açúcar. João da Costa tinha, pelo menos, duas casas. Uma delas, sequestrada pelo fisco, foi arrendada a António da Costa, seu irmão que, pela renda de 2 anos, pagou 9 mil réis. A outra terá sido arrendada por João da Costa, antes de ser preso, ao Dr. Francisco de Morais Sarmento que nelas fez benfeitorias no valor de 37 mil réis. Depois que a casa foi sequestrada, o fisco arrendou-a a Roque de Novais, para nela viver Inês Lopes, mulher de João da Costa. E então, quando se estava tratando da liquidação dos bens sequestrados a João da Costa, em 22.11.1685, em ato presidido pelo juiz executor do fisco, vindo da cidade de Coimbra, apareceu o Dr. Francisco Morais Sarmento e pedir o reembolso de metade do custo das benfeitorias, 15.415 réis, por parte de Inês da Costa que recebera as rendas. Esta pagou sim, mas apenas 840 réis, argumentando que lhe pertencia pagar apenas do tempo da sua meação. Sim, a inquisição condenou João da Costa em sequestro de bens. Mas a sua mulher tinha direito a uma parte e para defender os seus interesses nomeou procurador a seu sobrinho José Rodrigues Nunes, o Raba, que, na década seguinte seria também preso e condenado a sequestro. Veremos no próximo texto.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Depósito dos bens de João de Lafaia

Da família Lafaia aparece em Bragança, no século de 1500, o casal constituído por João de Lafaia, carpinteiro de profissão, que se apresentava como cristão-velho e Isabel Rodrigues, forneira, meia cristã- -nova e que tinha dois irmãos padres, um cura de Sezulfe e outro jesuíta. Isabel foi presa pela inquisição de Coimbra em 1597, no decurso de uma das maiores vagas que assolaram aquela cidade trasmontana. Nesta mesma vaga, foram também arrastados para as celas da inquisição, 3 filhos do casal: Catarina Rodrigues, Manuel de Lafaia e Pedro Lafaia. (1) Catarina era casada com Francisco Garcia, estalajadeiro e almocreve. Depois de processada pelo santo ofício, foi para o Brasil. Manuel era surrador e, quando foi preso, mantinha-se solteiro. Posteriormente fez-se mercador e casou com Leonor Nunes. Pedro era sacristão da igreja de S. João e certamente o seu objetivo era ascender ao sacerdócio, como os tios. Saiu condenado em confisco de bens e degredo de dois anos a remar nas galés. Tal como a irmã, acabou por rumar ao Brasil. Um quarto filho de João e Isabel chamou-se António Lafaia e casou com Brites Nunes, que também foi presa pela inquisição em 1601. (2) O casal estabeleceu-se na cidade do Porto, com loja de mercador. Dois de seus filhos (Roque e Pedro Lafaia) cedo fugiram para França. A filha, Isabel Nunes, casou em Bragança, com o seu parente Pedro Gonçalves e os filhos destes ligaram-se, pelo casamento, a outras históricas famílias cristãs-novas desta cidade, como os Ledesma, os Pissarro e os Costa Vila Real. Janeiro de 1661 abriu com mais um “tsunami” do santo ofício contra os judaizantes de Bragança. E vários membros da família Lafaia engrossaram as fileiras dos penitenciados em Coimbra. Foi o caso de 2 filhas, um filho e uma neta de Manuel e Leonor: Isabel Nunes, solteira, 47 anos, morreu no cárcere; Catarina Nunes e João de Lafaia, mercador, solteiro, de 37 anos e a neta Luísa da Mesquita, de 17 anos, solteira. (3) Olhemos um pouco para o inventário dos bens de Catarina, que então contava 43 anos e se mantinha solteira. Morava em uma casa sita na “Praça do Colégio dos Jesuítas”, casa de 2 sobrados, de que tinha a quarta parte. E tinha também a quarta parte de uma casa de sobrado sita da Rua do Cabo, que estava alugada para alojamento de soldados. Provavelmente os outros ¾ das casas pertenciam a seus irmãos. Da sua casa agrícola refiram- -se 4 vinhas, uma em Cabeça Boa, outra na Candaira e duas em Fonte Arcada. Não sabemos quanto vinho produziam, mas tinha 9 cubas para o meter, se bem que, quando a prenderam, apenas duas ficaram cheias, contendo uns 180 almudes de vinho e uma outra com 30 almudes de vinagre. Contava também umas terras em Vale de Álvaro e no Vilarinho, deixando em casa uns 500 alqueires de trigo que nelas colhera. Resulta, assim, que estamos perante uma verdadeira empresária agrícola, que produzia para vender e não apenas para consumo próprio. Catarina era também uma industrial da cera, fabricando velas e tochas. Aliás, se há uma profissão que possamos atribuir aos Lafaia era a de cerieiros, a mais frequente na família. Para além disso, Catarina era comerciante e na sua tenda encontramos produtos tão diversos como “2 arrobas de açúcar, alguns confeitos, uma arroba de amêndoa em casca, papel, atacas, agulhas e outras miudezas e adubos (…) uma arroba de pólvora, 2 arrobas de balas de várias formas”… Face a esta mesma onda de perseguições, 5 netos de António Lafaia e Brites Nunes, filhos de Isabel Nunes e Pedro Gonçalves, rumaram igualmente a Coimbra, para se apresentar na inquisição. Um deles chamava- -se António Lafaia, como o avô, cerieiro de profissão, casado com Clara Garcia. Penitenciado em 1662, voltaria a ser preso em 1667, saindo no auto-da-fé de 14.6.1671, queimado na fogueira, por “convicto, confitente, diminuto, impenitente e falsário” (4) E a tragédia continuou com os descendentes, (5) que, por várias gerações foram alimentando o “fero monstro” até aos anos em que aconteceu o terramoto de Lisboa que, para além das casas, também abalou os alicerces morais do santo ofício e da sociedade portuguesa, com as políticas pombalinas contrárias à inquisição. Voltemos atrás, à prisão de João de Lafaia, em 1661, e ao sequestro dos seus bens, cujo processo ainda não estava concluído em 1684. Com efeito, só nesta data parte do dinheiro que os seus bens renderam foi entregue a Gonçalo Pires, depositário do fisco na cidade de Bragança. Só então se deu inteiro cumprimento à sentença dos inquisidores que o condenaram em cárcere a arbítrio, penas espirituais e ao pagamento das custas, “não excedendo a terça parte de seus bens”. Vamos então ver um pouco do rumo que levaram os bens sequestrados e a entrega do dinheiro dos mesmos, ao depositário Gonçalo Pires: Antes de mais, diga-se que, em seguida à prisão, a responsabilidade da gestão dos bens do preso foi entregue pelo juiz de fora a João Gomes e, falecendo este, passou o encargo para a viúva, Francisca de Barros. Em poder desta “depositária dos bens” estavam 43 125 réis, provenientes de “arrematações do dito inventário”, os quais entregou ao “depositário do dinheiro” Gonçalo Pires. Obviamente que, tanto o inventário dos bens, como a sua venda e a entrega do dinheiro, tudo foi registado pelo escrivão do fisco, Francisco Correia. (6) A mesma viúva fez ainda entrega de 82 816 réis “de alguns bens de que não deu conta, por se terem perdido, e os pagou pelas avaliações do inventário, como consta dele”. Outros bens arrematados, não descritos no livro da receita, renderam 28 277 réis, que ficaram carregados no dito depositário. Outro lote de bens arrematados, fizeram-se 2 645 réis. Uma cuba e uma tina foram vendidas por 6 mil e 2 500 réis, respetivamente. A casa de morada de João seria logo vendida, em hasta pública, por 12 000 réis a Gaspar da Silva, dinheiro que foi entregue ao depositário pelo irmão daquele, Daniel da Silva, mercador de Macedo de Cavaleiros que também conheceu as celas da inquisição, condenado a degredo para África. Outra casa que estaria arrendada a Isabel Rodrigues, foi tomada pelo fisco mas continuou arrendada, rendendo 44 000 réis que a mesma Isabel entregou ao depositário Gonçalo Pires. Arrendadas foram também umas vinhas a Pedro Pascoal e renderam para o fisco 1 200 réis. Finalmente, do inventário dos bens de João Lafaia constavam umas cubas que foram vendidas em almoeda e renderam 16 400 réis. Deste dinheiro, o juiz de fora fez questão de logo receber 2 000 réis, em gratificação dos “dez dias que assistiu aos leilões”. No entanto, o fisco de Coimbra, decidiu que ele não tinha direito a receber nada e por isso devia repor o dinheiro. Não sabemos se o repôs, mas facto é que no livro da receita do fisco, foram carregados os 16 400 réis à viúva Francisca de Barros, que os entregou ao depositário Gonçalo Pires. Em próximo texto falaremos de abusos semelhantes, por parte de outros funcionários do fisco e da inquisição, que muitos comiam à custa dos bens dos prisioneiros do santo ofício.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Organização da leva e sequestro de bens

A Organizar a leva dos presos para Coimbra e proceder ao sequestro dos seus bens implicava algumas diligências que, por vezes, se arrastavam por vários dias. Veja-se, a título de exemplo, o que escrevia para Coimbra o comissário Miguel Ferreira Perestrelo, em Março de 1714: - Foram as 6 pessoas presas em uma segunda-feira, pelas 10 horas do dia e como uma delas, que era Manuel da Costa, estivesse na vila de Azinhoso, que dista desta cidade 10 léguas, chegou a ela preso na terça-feira à noite ou na quarta, e dispus a jornada para domingo, no qual chegou ordem para as segundas prisões e dilatei a jornada, para não fazer duas levas; e como havia de mandar a Santa Valha, foi necessário esperar mais alguns dias e esta foi a causa da dilação. (1) Entretanto, era necessário arranjar dinheiro para comprar as cordas e os grilhões para segurar os presos e conseguir bestas para os transportar e para pagar as jornas aos “guardas” que os conduziam. Vejamos um caso concreto, datado de 1652: o rol de despesas efetuadas com a prisão de Henrique Dias da Costa, (2) natural e morador em Torre de Moncorvo: A Manuel Coelho de Azevedo de 12 dias da Torre a esta cidade – 1500 réis. De 3 homens que o acompanharam no mesmo tempo – 1 200. Da cavalgadura e da do fato - 2 370. Dos ferros deste preso - 300. Dos 3 dias que o familiar gastou para ir a Bragança prender o dito - 1 500. De 2 homens que o acompanharam no mesmo tempo - 840. De uma mula em que veio até à Torre - 360. Do gasto de comer até à dita vila - 120. Da Torre até esta cidade - 533. (3) Obviamente que poucas pessoas se dispunham a alugar as suas bestas, para serem conduzidas por estranhos. É que, os animais, como as pessoas, têm os seus tiques e as suas manhas e só os donos os conhecem e tratam bem. Por isso, muitas vezes não era fácil conseguir as bestas necessárias, tendo os homens da inquisição de as tomar pela força, com recurso à justiça d´elrei, em feiras ou nos próprios alojamentos. Por outro lado, em Bragança, até havia dificuldade em mobilizar familiares do santo ofício para conduzir as levas, como já se viu. A propósito destas dificuldades e constrangimentos, veja- -se a seguinte informação do comissário Manuel Camelo de Morais: - Dei ordem a dispor o que me ordenastes nela e se prenderam os 9 presos que o familiar Pedro Esteves entregará nessa inquisição, e suposto me mandavam fizesse as prevenções de bestas e familiares prontos para a leva dos presos, me não foi possível em vista das muitas repugnâncias, assim a respeito do dinheiro da leva que era necessário para os gastos dela, por o juiz de fora desta cidade o não dar dos presos (…) e por esta causa e do familiar dela se deter, houve mais dilação do que eu tinha disposto (…) Eu lhe dei para a leva 10 moedas de ouro, de que deixou recibo. (4) Havia, pois, “muitas repugnâncias” da parte do juiz de fora em dar o dinheiro e da parte dos familiares em levar os presos e com eles o dinheiro estipulado para sua alimentação na cadeia. Esta última verba vinha logo indicada no mandado de prisão e que, geralmente, variava entre os 20 e os 50 mil réis. Obviamente que tudo devia sair do bolso dos prisioneiros. Mas não seria fácil apanhá-lo, pois que o dinheiro é fácil de esconder. Vendiam-se então os bens necessários, a começar pelos bens perecíveis: cereal que havia nas tulhas, batatas, vinho e outros géneros que se encontravam nas adegas, animais que havia nas cortes… De seguida, vendiam-se outros bens móveis e, faltando estes, iam os de raiz. Claro que, como em 1713 escrevia o escrivão do fisco Francisco Correia, sempre que podiam, os familiares do preso “limpavam a casa e ultimamente nem um preso tem ido sem haver roubo na casa em seus bens, ou seja feito pelos da casa ou pelos guardas” que o iam prender. Isso mesmo se depreende do comentário feito pelo comissário Manuel Camelo de Morais, em carta para Coimbra, acompanhando a remessa de um prisioneiro: - Do inventário que se fez, não consta mais do que 1300 réis que tem de bens, que todos são pobres, como se vê das certidões que remeti do escrivão do fisco a Vª Senhoria no correio passado. (5) Começámos esta série de textos falando de uma carta enviada de Bragança para Coimbra dizendo que os depositários dos prisioneiros deixavam estes falar com seus familiares. E falámos de uma outra carta, escrita por Francisco Correia, notário do fisco, informando que muitos dos bens mandados sequestrar aos presos, desapareciam como fumo. Recordemos um extrato daquela carta: - Como vejo as prisões serem feitas cada vez pior, com tão má forma e disposição, que os bens dos presos os furtam ou lhe ficam outra vez em casa, por isso me decidi fazer este aviso, levado pelo zelo do santo ofício e dos bens do fisco (…) Ultimamente, nem um preso tem ido sem haver roubo na casa em seus bens, ou seja feito pelos da casa ou pelos guardas que se lhe põem. (6) Não sabemos se outras mais cartas ou informações chegaram a Coimbra e que levaram os inquisidores a instaurar um processo sumário para averiguar a verdade dos factos. Nada encontrámos também sobre esse processo, a não ser o despacho do inquisidor António Portocarreiro, do teor seguinte: - Pelo sumário que se fez sobre os descaminhos dos sequestros e bens confiscados, pareceu ao inquisidor se transladasse o dito sumário, no que somente toca ao fisco e se enviasse ao juiz dele para que proceda contra os que se acham compreendidos em tais descaminhos. Coimbra, 11 de Maio de 1715. (7) Não encontrámos o sumário referido, mas descobrimos nos Arquivos da Torre do Tombo um “Livro de receita dos depositários Gonçalo Pires, Miguel Rodrigues e António Mendes de Madureira - Agentes em Bragança” (8) cujos registos são datados entre 1683 e 1719. Da existência e análise deste e outros livros semelhantes, se mostra que em Bragança existia um depositário do dinheiro e dos objetos de ouro e prata resultantes do sequestro e venda dos bens dos presos. Tal depositário, se obrigava por sua pessoa e bens a entregar o dinheiro à ordem do juiz do fisco, todas as vezes que lhe fosse pedido e a entregá- -lo em Coimbra, juntamente com uma certidão justificativa dos mesmos dinheiros, passada pelo notário do fisco, que, em Bragança, naqueles anos, se chamava Francisco Correia. Para além do juiz, do escrivão e do depositário do fisco, devemos referir a intervenção do juiz de fora no sequestro dos bens dos prisioneiros. Era ele que dirigia os sequestros, competindo-lhe que os bens se não perdessem, que os bens perecíveis se não estragassem e que as casas e propriedades fossem mantidas e rendessem para o santo ofício. Para isso nomeava depositários e dava de arrendamento aqueles bens. Mas antes, tinha de fazer- -se um inventário dos mesmos bens e nisso intervinha um escrivão do judicial. Fiquemos então na página 34 deste livro, onde se ficaram escritas as verbas para alimentos, tiradas dos inventários de pessoas que foram presas em Bragança no dia 11.4.1685: Do inventário de Clara Gonçalves, mulher de Gaspar Rodrigues – 2 000 réis, da venda de uma terra; e dos móveis – 5 300; e levou para alimentos – 10 000. Do inventário de Jerónima Ledesma, mulher de Fernando Fonseca – Deu de depósito 25 000 réis; e levou para alimentos – 15 000. Do inventário de Brites Nunes, mulher de José Dias - Dos móveis – 12 000 réis; E levou para alimentos – 10 000. Dos inventários de Brites Nunes, viúva de Roque Rodrigues e sua irmã Isabel Rodrigues – Dos móveis dos inventários - 16 500 réis; levaram as presas 10 000. Do inventário de Catarina Pereira, filha de António Rodrigues Raba, casada com Lourenço Rodrigues, que também foi preso, alguns dias antes – De seus móveis 42 500 réis; de renda de casas e vinha, por tempo de um ano – 12 000; e mais 5 500 réis, que deu em depósito; e levou a presa para alimentos – 20 000. Do inventário dos bens de Isabel Rodrigues, mulher de Rafael Rodrigues Cachicão – Levou 15 000 réis. Do inventário de Mécia de Castro, solteira, filha de Gabriel Rodrigues e Isabel de Castro – Dos bens móveis – 4 000 réis; levou a presa 10 000. Do inventário de Filipa Nunes, mulher de Pascoal Lopes – Dos móveis – 26 000 réis; leva a presa 10 000. Do inventário de Isabel Rodrigues, mulher de João Gonçalves, o Marrana – Deu de depósito – 25 000 réis; leva a presa para alimentos – 15 000. Do inventário de Isabel Rodrigues, por ela e seu marido, António Rodrigues Peinado, preso também uns dias antes – Dos móveis – 46 000 réis; das rendas das casas e vinhas – 14 000; leva a presa 20 000. Como se vê, trata-se de verbas relativamente pequenas e, como dizia o comissário, todos parecem pobres. As aparências, no entanto, não enganavam os inquisidores e os bens dos presos seriam bem escrutinados, levando, por vezes, alguns anos, a recolha dos mesmos. Disso haveremos de dar conta em próximos trabalhos. E também os presos e seus familiares procuravam maneira de esconder os bens, nomeadamente apresentando dívidas, por vezes até superiores aos bens que apresentavam.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais António Morais Pinto Agrasso, acusado de Fautoria

Auxiliar, favorecer ou promover qualquer ação em favor dos judeus, constituía um crime grave, designado por fautoria. Tomar conhecimento de qualquer comportamento, atitude ou cerimónia judaica e não a denunciar era motivo de prisão por fautoria. Encobrir hereges era impedir o reto funcionamento do santo ofício, crime também de fautoria. Ao longo do nosso trabalho de investigação deparamos com processos vários de fautoria, com tratamento bem diferenciado, por parte dos inquisidores. Entre os casos de fautoria que estudámos, três merecem especial referência:

António Rodrigues Mogadouro foi condenado à morte, juntamente com o filho mais velho, pelo crime de fautoria. O seu crime consistiu em permitir que nos seus barcos, nomeadamente a nau Nª Senhora de Jerusalém, transportassem judaizantes entre Portugal e Itália. (1)
Na década de 1650, no decurso da guerra da Restauração, 12 pessoas da região de Vimioso, foram julgadas pelo crime de fautoria, por associação em uma rede de passadores de judeus de Trás-os-Montes para Castela. A rede integrava 2 padres, cristãos-velhos e da nobreza da terra. (2)

Na década seguinte, idêntico processo foi instaurado a dois cristãos-novos, mercadores de Lebução, termo de Chaves que se fizeram passadores de judeus, chegando a passar gente vinda de Lisboa, Porto e Coimbra para Castela. (3)

No caso de Bragança, que temos vindo a estudar, envolvendo 8 cristãos-velhos da fina-flor da sociedade da terra, o crime consistiu em deixar os presos que foram depositados em suas casas durante dois dias, falar com outros cristãos-novos seus familiares e amigos, certamente aproveitando para combinar como se haviam de defender. Ao contrário dos casos anteriores, nestes processos os inquisidores foram particularmente benévolos, já que não decretaram qualquer prisão, limitando-se a chamar os fautores de hereges a Coimbra e admoestá-los que não voltassem a fazer o mesmo. Até as custas do processo foram relativamente baratas, limitando-se a pagar as despesas das diligências feitas em Bragança e que foram as seguintes:

Ao comissário Manuel Matos Botelho 12 040 réis.

Ao escrivão pe Álvaro Madeira 9 309 Notificações 1 240 Total 22 589

Ao comissário Manuel Camelo Morais 080

Ao escrivão pe Bernardo Rebelo 124 Notificações ao mesmo 080

Notificações ao pe Roque do Cousso 280

Total 564

António Morais Pinto, morador na Rua dos Oleiros, era tenente-coronel e desempenhara já o cargo de vereador da câmara. (4) Era também proprietário de um ofício de tabelião do judicial e notas de Bragança. (5) Um homem muito importante, no seio da sociedade brigantina. E de tal confiança, no que respeita à sua conduta religiosa, que o santo ofício lhe confiava a guarda de prisioneiros destinados a ser remetidos para Coimbra.

Aliás, já o seu pai, Pedro Pinto Agrasso, gozava de grande prestígio em Bragança, apresentando uma série de mercês régias, nomeadamente um alvará concedendo-lhe a propriedade do ofício de escrivão da remissão dos cativos em Bragança. Como se sabe, naquela época eram muito frequentes os assaltos em barcos e regiões costeiras, com a redução dos prisioneiros a escravos que depois eram vendidos e/ou resgatados, sobretudo entre cristãos, mouros e turcos, que viajavam e negociavam, especialmente em regiões do norte de África e Médio Oriente. E para acorrer a esses resgates, em todas as terras de Portugal, incluindo aldeias, se faziam coletas de donativos, especialmente aos domingos, à entrada para a missa. Compreende-se assim, a responsabilidade e importância do alvará concedido pelo rei D. Afonso VI a Pedro Pinto. (6)

Porém a mais importante das mercês concedidas foi a do hábito da Ordem de Cristo, com a tença anexa de 30 000 réis. (7) A tença, sim, tornou-se logo efetiva, mas o hábito de cavaleiro só o receberia depois do processo instruído no âmbito da inquisição, provando que ele era de sangue limpo de “infecta nação” e família que vivia “à lei da nobreza”. Provou-se então que ele era filho ilegítimo de Paulo António Agrasso e, por isso, foi impedido de receber tal honra e ascender à classe dos cavaleiros.

Impedido de ascender à classe dos cavaleiros da Ordem de Cristo, Pedro Agrasso fez-se frade, obtendo o hábito de noviço, por alvará régio de 26-11-1665 e, anos depois, obteve um alvará concedendo-lhe lugar de capela na igreja dos freires de Cristo. (8). E se Pedro Agrasso não obteve o colar da Ordem de Cristo, o filho obtê-lo-ia, como vamos ver.

Com efeito, em 2 de Setembro de 1720, o rei D. João V assinou o seguinte alvará:

- Tendo respeito aos serviços de António Morais Pinto Agrasso, natural e morador na cidade de Bragança, obrados nas províncias da Beira e Trás-os-Montes, por espaço de 37 anos, 9 meses e 22 dias, contados de 21 de Novembro de 1674 até 25 de Abril de 1715, em praça de soldado e nos postos de alferes, ajudante, sargento, capitão, ajudante, tenente de mestre de campo general, tenente coronel, entretido e com exercício, e no decurso dos referidos anos ir em 1692 à província da Beira assistir à entrada da Srª Rainha da Grã Bretanha; o de 1699 de guarnição para a marinha da vila de Azurara; o de 1707 se achar no assalto à praça de Alcântara, de que saiu ferido com uma bala que lhe passou a coxa da perna direita, de que esteve em grande perigo e no sítio de Badajoz; o de 1706 se achar no rendimento das vilas de Brozas, Alcântara, Moraleja, Cória, Plasencia e Ciudad Rodrigo; o de 1706 na batalha de Almansa, com grande valor e actividade; e vindo para este reino curar- -se de achaques, se apresentou na vedoria de Chaves. Em 1710, por notícia que o inimigo intentava assaltar a praça de Bragança, lhe encarregou o governador dela rondas em determinadas horas, o que, constando ao inimigo, desistiu do intento e levantou o campo; sendo finalmente encarregado do governo da praça de Miranda, por impedimento do governador dela, procedendo sempre no real serviço com valor e acerto conhecido; e lhe pertencer outrossim um alvará de promessa de um ofício de justiça ou fazenda de 23 de Novembro de 1693, de que se havia feito mercê a seu pai Pedro Pinto Agrasso e uma provisão de 198 mil e 81 réis que se passou em 2 de Dezembro de 1673, procedida de uma tença de 300 mil réis, na alfândega do Porto. Em satisfação de tudo,

Há por bem fazer-lhe mercê de 150 mil réis de tença efetiva em um dos almoxarifados do reino em que couberem, sem prejuízo de terceiro e não houver proibição com o vencimento, na forma da ordem de Sua Majestade, dos quais serão 40 mil réis para seu genro Francisco de Azevedo Monteiro e outra tanta quantia para seu neto Francisco de Azevedo Pinto e 50 mil réis para D. Ana Teresa, também sua neta… (9).

Obviamente que para receber o grau de cavaleiro da Ordem de Cristo lhe foi necessário provar a limpeza de sangue e “viver à lei da nobreza”. E aqui deparou com o mesmo obstáculo de seu pai, que fora filho ilegítimo e que “seus avós paternos eram pessoas de segunda condição”.

Recorreu, solicitando a el-rei que o dispensasse daquelas “provanças” atendendo “que há 40 anos que serve V. Majestade, ocupando todos os postos, até o de tenente-coronel, com actual exercício no regimento de infantaria de Bragança, sendo um dos primeiros capitães de infantaria que entrou pela praça de Valencia de Alcântara, em cuja ocasião derramou o seu sangue, sendo passado por uma bala…”

Atendeu Sua majestade o requerimento e António de Morais Pinto Agrasso foi armado cavaleiro da Ordem de Cristo, em Março de 1721.

Notas:

1 -ANDRADE e GUIMARÃES, A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, ed. Vega, Lisboa, 2009.

2.ANDRADE e GUIMARÃES, Nas Rotas dos Marranos de Trás-os-Montes, Âncora Editora, Lisboa, 2014, pp. 79-171.

3-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós, Trasmontanos, Sefarditas e Marranos, Manuel da Fonseca (n. Lebução, 1614), in: Nordeste nº 1109, de 13.2.2018; João Lopes Dias (n. Sambade, 1631), in: Nordeste nº 1110, de 20.2.2018.

4-ALVES, Francisco Manuel, Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança, Tomo III, p. 35.

5-Idem, Tomo X, p. 400.

6-RGM/Chancelaria de D. Afonso VI, liv. 16, f. 14.

7-TSO/CG-Habilitações para a Ordem de Cristo, letra P, mç 11, nº 171.

8-Idem, Mercês de Ordem Militares, liv. 7, f. 7; Mercês de D. João V, liv. 22, f. 422v.

9-TSO/CG-Habilitações para Ordem de Cristo, letra A, mç. 51, nº 51.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Preso como fautor de heresias

Já em outra ocasião falámos de António Malheiro da Cunha e das suas origens, humildes e pouco de acordo com o ordenamento canónico. Criou-se na Ervedosa, mas cedo foi para a cidade de Bragança, onde teria proteção do avô materno, António Malheiro e onde, naquele tempo, a carreira militar se apresentava muito atraente. Subiu a carreira a pulso e ocupava o posto de sargento-mor na praça de Bragança quando, Sua Majestade lhe concedeu do Hábito de Cristo. Para, efetivamente o receber, tornava-se necessário provar a sua limpeza de sangue e modo de vida “à lei da nobreza”, eufemismo para dizer: riqueza, abundância de bens. Veja-se o relatório das “provanças”: - A António Malheiro da Cunha foi V. Majestade servido fazer mercê da Ordem de Cristo e das provanças que se lhe fizeram para a poder receber, constou ter a limpeza necessária. Porém, que o mesmo justificante é maior de 50 anos e que seu pai foi sapateiro e lavrador seareiro, a mãe tecedeira e a avó materna mulher humilde, pelos quais impedimentos se julgou não estar capaz de entrar na Ordem; do que se dá conta a V. Majestade, como perpétuo administrador desta… Lisboa Ocidental, 17 de Janeiro de 1720. (1) Recorreu o justificante, argumentando que foi pelos seus próprios méritos que o Rei o condecorou com a Ordem de Cristo, apresentando o próprio alvará de Sua Majestade e solicitando ao mesmo Soberano que o dispensasse das “provanças”. Era um recurso geralmente apresentado pelos candidatos que não pertenciam à Nobreza e tal condecoração era a porta de entrada para a mesma classe. O alvará de António Malheiro tem particular interesse por nos mostrar um pouco da evolução guerra. Veja-se então o mesmo alvará: – El-Rei, havendo respeito aos serviços de António Malheiro da Cunha (…) feitos nas províncias do Alentejo, Trás- -os-Montes, Beira e Principado da Catalunha, em praça de soldado, cabo de esquadra e sargento e nos postos de alferes, ajudante, capitão e sargento-mor de infantaria e nas praças de Bragança e mais, por espaço de 30 anos, 3 meses e 7 dias continuados, de 9 de Novembro de 1686 até 16 de Março de 1717, em que ficara continuando: no de 1704, sendo alferes, ir com 100 soldados de socorro para Alfaiates e assistir nela 8 dias, por recear que o inimigo a invadisse; no de 1705 se achar nos ataques de Valença e no assalto que se deu a brecha sair ferido com uma besta pelo braço esquerdo da parte a parte e no dito ano se achar na restauração de Marvão; no de 1706 nos sítios de Alcântara e Cidade Rodrigo e nas mais operações do exército que penetrou Castela até Valença e assistir, sendo já capitão, no quartel de ??? Pequena???, com contínuos rebates do inimigo; no de 1707 na batalha de Almansa, com muito valor até ficar prisioneiro e com 5 feridas muito perigosas, uma destas de bala que lhe levou o beiço de baixo e parte da língua com os dentes; e ficando prisioneiro em Bayona voltar para este Reino onde, no ano de 1708 se achou nas operações do exército no Alentejo; e sendo provido nos postos de sargento-mor das praças se haver com muita vigilância e cuidado em tudo o que tocava á sua obrigação com satisfação de tudo; Há por bem fazer-lhe mercê de alvará de ofício de justiça ou fazenda até 50 mil réis e de 80 mil réis de tença efeitos em um dos almoxarifados do Reino em que couberem sem prejuízo de terceiro e não houver proibição com o vencimento, na forma da Ordem de SM, dos quais serão 12 mil réis para sua mulher, D. Mariana de Morais e 50 mil réis em sua filha chamada também D. Mariana de Morais e os 12 que restam a cumprimento dos 80, os logrará ele a título do hábito da O. Cristo que lhe tem mandado lançar. Lisboa Ocidental, 31 de Março de 1719. (2) Atendeu el-Rei ao pedido do suplicante concedendo-lhe a Ordem de Cristo. Por esta altura tinha já a guerra terminado e António Malheiro era já um homem de prestígio na sociedade brigantina. E desde há anos, um esforçado colaborador da inquisição. Em prova disso está o facto de em Novembro de 1714, na ocasião da vaga de prisões que vimos tratando, ter sido depositado em sua casa o mais influente e notável dos 9 prisioneiros: Francisco Rodrigues Ferreira. Aliás, ele fora já “ocupado outras vezes para fazer prisões de cristãos-novos e por muitas vezes teve prisioneiros em sua casa”. Era capitão naquela altura e tinha um irmão, igualmente militar e com o mesmo posto que, em paralelo, era familiar da inquisição – Domingos Pires Malheiro, que por aquela altura faleceu. (3) E então ele decidiu candidatar-se, apresentando o requerimento em Julho de 1719. A essa altura, se bem que tendo casa montada em Bragança, António Malheiro da Cunha encontrava-se servindo no posto de sargento-mor da praça de Chaves. O seu processo de habilitação é muito interessante, por nos dar notícias de acontecimentos históricos e da paisagem social da região da Lombada, onde nasceram e viveram seus antepassados. Assim, ficamos sabendo, por exemplo, que a aldeia de Moimenta foi 3 vezes arrasada pelos espanhóis na guerra da Guerra da Sucessão de Espanha, com incêndio da igreja e dos livros de registo de batizados e casamentos, (4) pelo que não foi possível provar a naturalidade de um avô. Nem a do próprio candidato, pois também na Ervedosa os livros desapareceram, queimados no tempo da guerra. Da identidade dos seus pais e dos avós, já falamos quando se tratou do seu irmão Domingos, que era o familiar do santo ofício que dirigiu a coluna de prisioneiros para Coimbra. Chegado a Bragança e entrado na vida militar, António Malheiro tratou de casar, o que consumou com Brígida de Morais, “filha de um coveiro”, da qual, estranhamente, parece que as origens se não investigaram, com a profundidade costumada. Terá funcionado a “cunha” do padre Inácio Bernardes a quem o candidato escreveu, recordando as falhas dos arquivos paroquiais, acrescentando: - Peço a Vossa Mercê, que veja como temos de acabar de concluir este negócio (que se não podem achar livros que deem inteira razão destas coisas. Peço a V. M., podendo ser, que esta diligência venha cometida ao reverendo abade de Vinhas ou ao de Rebordãos (…) Espero que V. M. me faça honra e favor de encaminhar este negócio, que o saberei merecer. Chaves, 1 de fevereiro de 1721. (5) Voltemos a Bragança onde António malheiro ficou viúvo e voltou a casar, com Mariana de Morais, viúva de um alferes e mãe de um rapaz que se preparava para ser padre, tendo já recebido as ordens menores. Vale a pena espreitar os seus antepassados, nomeadamente o seu avô paterno, António Pires, natural de Moimenta, que veio para Bragança a servir os padres do colégio e o seu pai, Miguel Pires, que tinha a profissão de “entalhador e imaginário”. E este será um nome a ter em conta para a história dos entalhadores de altares e escultores de imagens de santos. Resta dizer que António Malheiro da Cunha recebeu carta de familiar do santo ofício em 28.7.1721. E se era pobre quando veio para Bragança e se alistou como soldado, então era já um homem de elevado estatuto social, com fazenda avaliada em mais de 6 mil cruzados (2 contos e 400 mil réis) e com um ordenado 300 mil réis/ano. Para que os números representem alguma realidade, diga-se que a jorna de um operário andava então nos 100 réis. E se ele era filho de um sapateiro, os seus descendentes contar-se-iam entre a elite da nobreza brigantina e trasmontana, reescrevendo a história da família.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Presos como fautores de heresias

Vimos o médico do partido da cidade de Bragança, Dr. Francisco Soares Franco passar um atestado em como Pedro Ferreira de Sá Sarmento estava doente e não podia apresentar-se no tribunal de Coimbra. O atestado e a carta do pai foram levados em mão pelo filho de Pedro que se apresentou em Coimbra em meados de Julho de 1715. Os inquisidores mandaram-no de volta a casa, dizendo que era o pai que devia apresentar-se, que o fizesse logo que ficasse melhor. Apresentou-se 4 meses depois, em 6 de Novembro, sendo interrogado, severamente repreendido e ameaçado como os demais. Regressou a Bragança, não sem que, tal como os outros tivesse que pagar as custas com as diligências. Vejamos agora alguns dados biográficos de Pedro Ferreira, que nasceu em Vimioso, por 1658, no seio de uma família da nobreza Trasmontana. Aires Ferreira Sarmento, seu pai, natural de Vinhais, viveu em Vimioso onde foi casar com D. Bibiana de Albuquerque e onde alcançou o cargo de capitão-mor, vindo a falecer ao comando das suas tropas, na tomada da praça castelhana de Alcanices, no decurso da guerra da Restauração. Nascido no Vimioso, pelo ano de 1658, Pedro Ferreira casou com sua prima D. Jerónima de Albuquerque Pimentel, da cidade de Miranda, filha de Paulo Macedo, cavaleiro da ordem de Cristo e familiar da inquisição. Foi coronel de cavalaria e governador do castelo da vila de Outeiro. Pelo ano de 1697, o casal morava na vila de Chacim, onde tinham propriedades. Por essa altura aconteceu em Chacim um verdadeiro tsunami, com a chegada de um corpo de tropas de Bragança, comandado pelo general Sebastião da Veiga Cabral, por requisição do comissário Bartolomeu Gomes da Cruz, a mando da inquisição de Coimbra, para prender uma vintena de judaizantes naquela vila. Nessa operação, o mais ativo “caçador de judeus” foi Pedro Ferreira de Sá que, por isso mesmo, recebeu um louvor e um novo encargo da parte do mesmo tribunal, conforme referido em carta para o comissário local, Manuel Gouveia de Vasconcelos: - Também nos constou que Pedro Ferreira de Sá, morador na mesma vila, obrou nas mesmas com muito zelo. V. Mercê, da nossa parte, lhe fará presente o nosso agradecimento (…) Temos notícia que alguns cristãos-novos dessa vila se querem ausentar; terá V. M. muito cuidado e vigilância neste particular, encarregando ao dito Pedro Ferreira de Sá…  Enquanto no seio da inquisição era apontado como herói e cristão zeloso, os familiares dos presos apresentavam em Coimbra uma petição retratando-o de “homem muito poderoso, de mau e perverso coração, muito ambicioso das fazendas alheias, tanto que, nas prisões que houve em Abril passado, foi senhor absoluto da disposição delas e como o seu ódio era tanto, as fez com um estrondo que nunca se viu”. Desfiavam depois um rosário de ilegalidades e roubos por ele executados. Veja-se apenas um excerto das acusações: - É notório que deu ocasião a que se roubassem as casas dos presos e ele dito, Pedro Ferreira publicamente roubou um macho, um colete de anta, duas espingardas, duas espadas e um muro de colmeias.  No seguimento das prisões e do louvor recebido, Pedro Ferreira apresentou no Conselho Geral da inquisição um requerimento pedindo a admissão como familiar do santo ofício. Para o processo avançar tinha de passar pela inquisição de Coimbra que deu o seguinte parecer ao inquisidor-geral: - Informamos Vª. Senhoria que o pretendente se houvera culpavelmente nas prisões que fez em Chacim e inventários dos presos, nos parece que Vª. Sª não defira o seu requerimento… 14 de Abril de 1698.  Efetivamente, não conseguiu aquele objetivo. Anos depois, morando já em Bragança, Pedro Ferreira empenhou- -se particularmente num outro projeto: o de ter uma cadeira na igreja do convento de S. Francisco, lá à frente, junto ao altar-mor, nomeando-o padroeiro do convento e significando isso o mais elevado estatuto social entre a gente da nobreza da cidade. Conseguiu que o guardião do convento e o ouvidor da cidade lhe concedessem a graça, certamente a troco de avultada contribuição financeira. Tamanha ostentação não cairia bem entre a gente da nobreza e as queixas chegaram ao Paço Real, em Lisboa. Veja-se a resposta: - Provedor da Torre de Moncorvo. Eu, El-Rei, vos envio muito saudar. Vi a vossa carta de 21 de Julho deste ano em que destes conta da diligência que fui servido encarregar- -vos sobre a liação do padroado da capela-mor do convento de S. Francisco da cidade de Bragança a favor de Pedro Ferreira de Sá Sarmento e o que sobre este particular obrara o guardião do dito convento e o ouvidor da mesma cidade. Em vista de tudo o que referiste se tinha obrado sobre a dita aliação, hei por bem ordenar-vos notifiqueis ao dito Pedro Ferreira de Sá Sarmento se abstenha do uso do dito padroado e mandareis tirar da capela-mor do dito convento a cadeira que nele tinha, se ainda ali estiver, advertindo-lhe que este negócio há-de ficar nos mesmos termos em que se achava antes de lhe ser concedido o dito padroado; e ao ouvidor da comarca, pelo excesso com que se houve com Joseph Morais Madureira em escrever ao geral de S. Francisco a favor do dito Pedro Ferreira de Sá Sarmento, chamareis à câmara e da minha parte lhe estranhareis severamente e que me houve por muito mal servido do que obrou neste particular. Rei. Lisboa, 17 de Setembro de 1715.  Como se vê, a segunda metade do ano de 1715 seria particularmente adversa para o coronel Pedro Ferreira, que se viu repreendido pela inquisição e pelo rei. Queixas sobre a honestidade e retidão de caráter lhe seriam também feitas pelo marquês de Fronteira, em Janeiro de 1706, a respeito de negócios de cavalos, conforme se depreende de uma carta sua, respondendo a tais queixas, existente nos arquivos da Torre do Tombo.  A essa altura ocupava o cargo de governador do castelo de Outeiro. Dois anos depois, em 13.9.1708, seria encartado no lugar de feitor e recebedor da alfândega de Vimioso.  Obviamente que todos os cargos em que fora investido eram acompanhados de compensações financeiras. Assim, por alvará de 30.3.1713 do rei D. João V, foi-lhe concedido o título de moço-fidalgo, com 100$000 réis de moradia e 1 alqueire de cevada por dia. Em 17.12.1715, nova carta de mercê do mesmo rei, concedendo-lhe a tença de 40 mil réis.  E as mercês não foram apenas para ele. Também para o filho, Francisco José Sarmento Lousada que, por alvará de 18.4.1713, foi também nomeado moço fidalgo da casa real. E também para o neto Pedro Ferreira de Sá Sarmento, que em 2.2.1716, recebeu idêntica mercê. E se Pedro Ferreira não conseguiu ser admitido no círculo dos familiares da inquisição, facilmente o conseguiu seu filho Francisco que, apresentou o pedido em Junho de 1713 e recebeu carta em 15.2.1714.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Presos como fautores de heresias

Procuravam saber os inquisidores se foi apenas com a leva de Novembro de 1714 que se deixaram os presos comunicar com parentes e amigos, ou se isso era já vício antigo. A esse respeito, veja-se a informação dada pelo comissário Miguel Ferreira Perestrelo:  - Eu mal posso avisar das pessoas que falaram com os presos, porque na verdade não sei, porque assisto em Rebordãos (…) recomendei sempre que não falassem os presos com pessoa alguma pois me diziam que deixavam falar, e me responderam que nenhuma pessoa ia falar com eles; porém sempre fiquei com algum escrúpulo pelo que me diziam, e juntamente pelo que ouvia estes anos atrás que faziam o mesmo. E por essa razão escrevi que me parecia houvesse uma Pastoral que toda a pessoa que deixasse falar os presos seria presa; para que dessa sorte se cuidassem os escrúpulos e murmurações…  Depreende-se desta informação que tal vício vinha já de antes e que o remédio recomendado seria uma “Pastoral” que fosse lida nas igrejas ameaçando os depositários que seriam presos, se permitissem tais irregularidades. No mesmo sentido vai o testemunho do comissário Manuel Camelo de Morais que até apresenta um exemplo concreto. Veja-se: - A respeito de evitar as comunicações com os presos, tenho feito as diligências necessárias e possíveis para evitar este inconveniente; mas que não tem remédio, sem se descobrir algum género de castigo, porque agora me consta que este preso, estando em casa do sargento-mor desta praça, onde o mandei pôr, o deixou falar com algumas pessoas da nação, quando era uma hora da noite, sem embargo de lhe recomendar a ordem de Vossas Senhorias e do castigo que merecem por esta culpa. Enquanto a atalhar à comunicação dos presos pelo caminho, também me parece impossível, que a ser preciso, à noite, nas estalagens, acomodam-se juntos e na estrada falarem uns com os outros, sem os familiares poderem dar remédio neste prejuízo.  Em outra carta do mesmo comissário para a inquisição de Coimbra se nota a sua preocupação, referindo que, na ocasião de receber uns mandatos de prisão, ele recorreu aos serviços do Conde de Alvor, então a comandar as tropas em Bragança, informando: -O senhor Conde de Alvor fez a prisão de três, com toda a satisfação; e recolheu uma presa para dar o exemplo às pessoas desta terra que se desprezavam de recolher presos.  Analisando estas e outras informações, o inquisidor António Portocarreiro explicava que as irregularidades aconteciam por causa das “pendências temporais que deles têm”, significando que até aquelas pessoas, das melhores famílias cristãs-velhas, gente da nobreza e do clero, estavam dependentes do dinheiro e dos favores dos cristãos-novos. E o mesmo inquisidor concluía: - Era tão contrário e devasso em todos os depositários o fazerem essas permissões que delas tinham, todos os que eram presos, ocasião de ajuntarem o modo com que haviam de formar e provar as suas contraditas, ou as pessoas de quem haviam de dizer, ou o tempo em que haviam de confessar, para que pudessem sair livres da pena que merecessem ou outras pessoas tivessem tempo de se ausentar.  Tudo visto e ponderado, decidiram os inquisidores chamar a Coimbra as 8 pessoas em cujas casas foram depositados os presos. No entanto, não foram mandados ir todos ao mesmo tempo. Assim, no dia 16 de junho, o cura da igreja de S. João Batista assinava a certidão seguinte: - Certifico eu como, por ordem do Rev. Manuel Camelo Morais, abade desta igreja e comissário do santo ofício, que notifiquei a Teodora de Almeida, Sebastião Gomes e João Martins Garcia, todos moradores nesta cidade para que dentro de 15 dias aparecessem na referida inquisição… Apresentaram-se os três na inquisição, no dia 1 de Julho seguinte. Teodora de Almeida, 55 anos, era irmã do padre Bernardo Rebelo, em cuja casa esteve depositada Maria do Couto, viúva de Francisco Domingues. Confessou que efetivamente deixara as pessoas falar com a prisioneira e que não fora advertida pelo comissário para o não fazer e “entendia ela declarante que não cometia culpa alguma em dar o dito consentimento”. Obviamente que os inquisidores lhe chamaram a atenção para a gravidade do ato e a avisaram que, se voltasse a cometer semelhante culpa, seria castigada com todo o rigor, o que ela prometeu cumprir. Sebas - tião Gomes, 40 anos, era escrivão dos mantimentos da tropa, filho de Sebastião Gomes e Maria Pires, natural da aldeia de Rebordãos, casado com Maria da Costa. Em sua casa esteve depositado Francisco Rodrigues Ferreira. Tal como os outros, foi acusado de “impedir o reto ministério do santo ofício e fautoria de judaísmo”. A sessão com o inquisidor Dr. José Gama Lobo foi em tudo semelhante à de D. Teodora de Almeida, bem como o aviso ameaçador. João Martins Garcia, 50 anos, tecelão de sedas, viúvo de Ana da Costa. Interrogado pelo inquisidor Portocarreiro, confessou que, de facto, lhe foi recomendado que não deixasse o preso falar com ninguém. No entanto não respeitou esta recomendação, por ver que os outros depositários deixavam falar, “entendeu que também o podia fazer”. Os depositários Bento da Cunha e Pedro Ferreira de Sá foram notificados no mês seguinte, em 8.7.1715, pelo cura da igreja de S. João, por ordem do comissário Botelho de Morais, recebida de Coimbra no dia anterior. O primeiro apresentou-se na mesa do referido tribunal no dia 23 seguinte e foi interrogado pelo inquisidor Gama Lobo. Apresentou-se como cristão-velho, guarda da Alfândega de Bragança, de 60 anos de idade, viúvo de Maria da Silva. Disse que tivera depositada em sua casa, dois anos atrás, uma cristã-velha chamada Úrsula de Figueiredo e em Novembro passado uma filha de João de Castro, meirinho dos assentos, cristã-nova, Mariana de Castro, Procuravam saber os inquisidores se foi apenas com a leva de Novembro de 1714 que se deixaram os presos comunicar com parentes e amigos, ou se isso era já vício antigo. A esse respeito, veja-se a informação dada pelo comissário Miguel Ferreira Perestrelo: - Eu mal posso avisar das pessoas que falaram com os presos, porque na verdade não sei, porque assisto em Rebordãos (…) recomendei sempre que não falassem os presos com pessoa alguma pois me diziam que deixavam falar, e me responderam que nenhuma pessoa ia falar com eles; porém sempre fiquei com algum escrúpulo pelo que me diziam, e juntamente pelo que ouvia estes anos atrás que faziam o mesmo. E por essa razão escrevi que me parecia houvesse uma Pastoral que toda a pessoa que deixasse falar os presos seria presa; para que dessa sorte se cuidassem os escrúpulos e murmurações… Depreende-se desta informação que tal vício vinha já de antes e que o remédio recomendado seria uma “Pastoral” que fosse lida nas igrejas ameaçando os depositários que seriam presos, se permitissem tais irregularidades. No mesmo sentido vai o testemunho do comissário Manuel Camelo de Morais que até apresenta um exemplo concreto. Veja-se: - A respeito de evitar as comunicações com os presos, tenho feito as diligências necessárias e possíveis para evitar este inconveniente; mas que não tem remédio, sem se desde seu nome. Confessou que efetivamente consentira que várias pessoas cristãs-novas falassem com a prisioneira. Perguntado se fora avisado para não autorizar tal abuso, respondeu que se encontrava fora quando entregaram a prisioneira em sua casa, a sua filha e por isso não sabia responder. O resto já os leitores imaginam: recomendações, ameaças… Quanto a Pedro Ferreira de Sá Sarmento, em cuja casa esteve depositado Henrique Rodrigues Ferreira, logo no dia em que recebeu a ordem de apresentação em Coimbra, muniu-se de um atestado, passado pelo Dr. Francisco Mendes Franco, médico do partido da cidade de Bragança, que enviou para Coimbra, juntamente com a seguinte carta por ele escrita: - O Reverendo comissário abade de s. João desta cidade me avisou que, no termo de 15 dias, fosse à presença de Vossas Senhorias. E os meus achaques, que constam da certidão junta, me impossibilitam a prontidão com que desejo e devo obedecer a Vs. Sas. Mando o meu filho e quando o seu préstimo não seja suficiente que me escuse desta jornada, peço a Vs Ss se dignem dispensar o termo até refrescar o tempo, porquanto desejo muito oferecer-me aos pés de Vs. Sas e mais livre das minhas queixas empregar-me no serviço de tão santo tribunal. Bragança, 9 de Julho de 1715. Pedro Ferreira de Sá Sarmento. 

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Os irmãos Henrique e Gabriel Rodrigues Gabriel

Esperança Rodrigues, a mãe dos Rodrigues Ferreira tratados no texto anterior, pertencia à família Rodrigues Gabriel, cujos patriarcas foram Henrique Rodrigues, o cachicão, de alcunha, curtidor e Beatriz Fernandes. Trata-se de outra das grandes famílias da nação hebreia de Bragança, com alguns dos seus membros a ascender à categoria de homens de negócio, o que equivale a dizer grandes mercadores. Ao início do mês de Setembro de 1662, Esperança e a mãe meteram-se a caminho de Coimbra e foram apresentar-se na inquisição. Mandadas de regresso a Bragança, foram mais tarde chamadas e saíram penitenciadas no auto de 26.10.1664. (1) Quando se apresentou, Esperança tinha uns 12 anos e a mãe andava pelos 38, sendo já viúva e com outros 6 filhos ainda mais novos. Anos depois, alguns deles iriam também acertar contas com a inquisição. Foi o caso de Rafael Rodrigues Gabriel e sua mulher, Isabel Rodrigues de Castro. Esta foi presa em Abril de 1685, quando tinha 21 anos e aquele em Julho de 1716. Estranhamente, cada um deles tem dois processos que se completam, ignorando nós se existe numeração errada dos mesmos ou se isto indicia que o tribunal de Coimbra se encontrava “entulhado” de processos naquelas datas, defrontando-se com problemas na organização dos mesmos. Porventura as duas coisas. (2) José Rodrigues Gabriel foi outro dos filhos do Cachicão. À entrada da década de 1680, estaria de casamento marcado com uma prima, e para o efeito necessitava obter dispensa do Papa. Viajou então para Roma, fazendo escala na cidade de Livorno, com o objetivo de se circuncidar. Era um caminho muito frequentado pelos jovens casadoiros de Bragança que, certamente, tinham consciência de que para ser judeu era essencial fazer-se circuncidar. Mas vejam como o próprio José Gabriel descreveu o seu caso: - Disse mais que haverá 34 anos, na cidade de Leorne, em casa de Gabriel de Medina, (…) estando ambos sós, entre práticas que tiveram, se declararam e deram conta como criam e viviam na lei de Moisés, para salvação de suas almas; e por observância da mesma disseram que faziam as ditas cerimónias e o mesmo Gabriel de Medina lhe disse que para viver com perfeição na lei de Moisés, era necessário que ele confitente se circuncidasse e com efeito se circuncidou na casa do mesmo, dali a poucos dias, para cujo efeito veio um cirurgião que o cortou, na presença do mesmo Gabriel de Medina e de outros 4 judeus que ele não conhecia; e não chegou a ir à sinagoga porque se dilatou naquela cidade poucos dias, depois dos quais partiu para a Cúria de Roma buscar dispensa para haver de casar com a dita sua mulher… (3) Casados, José e Beatriz Pereira, sua prima, viveram algum tempo em Bragança e ali tiveram um filho que batizaram com o nome de Pedro, logo rumando ao Porto onde estabeleceram morada. Em Agosto de 1716, no seguimento da vaga de prisões registada em Bragança, nomeadamente familiares seus, pai e filho viajaram até Lisboa e foram apresentar-se no tribunal do santo ofício, onde foram autuadas as suas confissões e mandados regressar a casa, com recomendação de não voltarem a judaizar. (4) António Rodrigues Gabriel, outro dos filhos do Cachicão, viveu em Bragança e casou por duas vezes. A primeira com Luísa Nunes, que lhe deu 2 filhos. Falecendo Luísa, casou de novo, com Isabel Rodrigues e tiveram mais 3 filhos e 2 filhas. Uma destas chamou-se Luísa Nunes, a qual casou com Pedro Rodrigues Álvares e na sua descendência contou-se o célebre pintor Camilo Pissarro. António era ainda solteiro quando foi chamado a contas pela inquisição, em 1662. (5) Mais tarde foram seus filhos e netos, que têm rosários de culpas e confissões naquele tribunal. Vamos fixar- -nos apenas em dois de seus filhos, que foram presos na leva que vimos tratando, de Novembro de 1714. Um deles foi Henrique Rodrigues Gabriel, (6) nascido do primeiro casamento, por volta de 1674. Casou com Beatriz Nunes de Castro e tiveram 5 filhos. Era mercador e alferes de ordenanças, o que lhe dava muito prestígio social e poder militar, no recrutamento de soldados, na requisição de géneros alimentares em operações e na escolha de cabos e sargentos. O seu processo é deveras interessante a este respeito. O inventário de seus bens mostra-nos um pouco do viver burguês de sua casa onde se comia com talheres de prata, os móveis eram de madeira de castanho e de nogueira, baús, tamboretes e cadeiras de moscóvia. E abre um pouco a porta dos seus negócios, mostrando que recebia do Porto fornecimentos de açúcar no valor de 200 mil réis e de Guimarães caixas de doces que subiam a mais de 80 mil réis, para ele vender em Bragança. Depois de preso, foi depositado em casa do coronel Pedro Ferreira de Sá, na rua da Alfândega, onde foi visitado por parentes e amigos, que o seu depositário, homem do maior prestígio social e pergaminhos de nobreza e fidalguia, era pessoa do mais venal que encontramos. Disso falaremos adiante. Por agora refira-se que, tal como os primos Rodrigues Ferreira teve a visita de 4 curas da cidade que depois aparecem no seu processo como testemunhas abonatórias de cristão exemplar, frequentador de igrejas, grande esmoler, amigo dos pobres e servidor de confrarias. Nascido por 1689, o seu meio irmão Gabriel Rodrigues Gabriel (7) estava casado com Isabel Maria Nunes que, em 5.9.1714, lhe deu o único filho que lhe conhecemos, o qual foi batizado com o nome de António José Caetano, e cujo padrinho foi exatamente o citado coronel Pedro Ferreira. Nos dois dias que esteve preso em Bragança esperando a organização da leva para Coimbra, foi entregue à guarda do Dr. António Paiva e Pona, provedor da comarca. Gabriel seria um dos 9 prisioneiros, senão mesmo o único, que foi impedido de contactar com qualquer amigo cristão-novo. Apenas lhe foi permitido falar com dois padres e com o seu compadre Pedro Ferreira. Ao contrário de Pedro Ferreira, Paiva e Pona era “desprezador de interesses, inteiro na administração da justiça, bom despachador, zeloso na arrecadação da Fazenda Real e reputado por um dos melhores ministros que houve naquela comarca”. A comarca em referência era a de Miranda, onde ele desempenhava então o cargo de provedor. Antes fora juiz de fora em Freixo de Espada à Cinta e no Outeiro. Neste concelho acumulou as funções de juiz dos órfãos. Possivelmente seria esta experiência que o impulsionou a escrever um livro de direito intitulado Orfanologia Prática. Natural de Paredes, Bragança, tinha residência nesta cidade que pertencia à comarca de Miranda e onde funcionava uma grande parte dos serviços públicos da região. Em 1710 acumulava também as funções de superintendente dos tabacos de Trás-os- -Montes e teve papel importante no abastecimento às tropas, nas ações militares contra os invasores castelhanos. O Abade de Baçal diz que foi familiar da inquisição e desembargador do Paço, acrescentando que nasceu em 1665 e faleceu em 1730. (8) O Dr. António Paiva e Pona terá cumprido escrupulosamente as tarefas que lhe competiam como depositário do prisioneiro, não constando que o tivesse deixado falar com parentes nem amigos, conduzindo-o ele próprio, acompanhado pelo seu cunhado, o padre Manuel Teixeira, até à Quinta de Santa Apolónia onde o entregou ao responsável pela leva – o familiar Domingos Pires Malheiro.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- O clã dos Rodrigues Ferreira

Em memória de Teófilo Vaz. Foi o Teófilo que nos convidou a escrever para o jornal, confessando que era seguidor das nossas crónicas no Terra Quente. Com esse convite, diremos que é o primeiro responsável pela investigação das raízes judaicas de que aqui vimos dando conta desde há 4 anos e meio, em 236 números do jornal. Preparávamo-nos para enviar este texto ao Teófilo quando tivemos a triste notícia da sua morte. Curvamo-nos perante a sua memória. Não foi apenas a sua família que ficou mais pobre. Foi o jornalismo, foi a cultura Trasmontana. Saibamos nós honrar a sua memória, continuando a trilhar os caminhos que ele nos abriu. Que a terra lhe seja leve.

Entre os 9 judaizantes presos naquele dia 5.11.1714, contaram-se dois filhos de Pedro Cardoso e Esperança Rodrigues. Antes de seguirmos o acontecimento, olhemos um pouco para a família. Pedro Cardoso era natural de Vinhais, filho de Diogo Cardoso, curtidor e Mécia Álvares, ambos presos em 1658 e penitenciados no auto de 23.5.1660. (1) Esperança Rodrigues, era natural de Bragança, filha de Henrique Rodrigues, também curtidor e Beatriz Fernandes. Aquele era já falecido em Setembro de 1662, quando Beatriz contava 38 anos e se apresentou na inquisição, a confessar culpas de judaísmo, sendo mais tarde chamada para ouvir sua sentença no auto de 26.10.1664. (2) O mesmo caminho seguiu Esperança Rodrigues, que acompanhou a mãe em ambas as viagens, sendo ainda solteira, de 14 anos de idade. Também solteiro e a morar em Vinhais, estava Pedro Cardoso quando foi preso pela inquisição, em 1660, saindo condenado em cárcere e hábito no auto de 9.7.1662. (3) Casados, Pedro Cardoso e Esperança Rodrigues estabeleceram morada em Bragança. E estabeleceram-se também como tendeiros. Era uma profissão mais limpa e prestigiante que a dos pais, curtidores. Esperança e Pedro criaram 12 filhos, uma poderosa dinastia comercial, que se ligou a outras importantes famílias da nação hebreia de Bragança, como a dos Raba, dos Ledesma, dos Pissarro e dos Lopes da Silva. (4) E tornaram-se fabricantes de seda, ato revelador da ascensão social dos curtidores e tendeiros. Maria Henriques, uma das 7 filhas de Pedro e Esperança, casou na família, com Diogo Ferreira, seu tio paterno, também fabricante de sedas, preso pela inquisição de Coimbra, em cujos cárceres faleceu em 5.6.1699. (5) A ligação à família Ledesma foi estabelecida com o casamento de Luísa Josefa Henriques, com o Dr. Gabriel Ledesma, então já viúvo de Angélica da Silva. E foi exatamente em Agosto de 1713, com a prisão do Dr. Gabriel Ledesma e de António Rodrigues Ferreira, (6) seu cunhado, tecelão de mantos de seda, que começou a tormenta dos filhos de Pedro e Esperança na inquisição. Aos 25 anos, António continuava solteiro, como solteiros se mantinham seus dois irmãos Manuel e Francisco Rodrigues Ferreira, que foram igualmente presos no ano seguinte, em Novembro de 1714, integrando a “leva” a que nos vimos referindo. (7) Os 3 moravam na rua dos Oleiros, juntamente com as 3 irmãs solteiras, e eram vulgarmente chamados os irmãos Cardoso. E também na Rua dos Oleiros era a casa de Gabriel Ledesma, onde se reuniam em sinagoga, como testemunhou Domingos Pires, criado que foi do Dr. Ledesma, perante o comissário Roque de Sousa Pimentel: - Disse que sabe por ver, que alguns cristãos-novos desta cidade se ajuntam às noites uns em casa dos outros, porque na rua aonde ele testemunha mora viu que vão para casa do médico Gabriel Rodrigues Ledesma, morador na mesma rua António Rodrigues Ferreira e seu irmão Francisco Rodrigues Ferreira, cunhados do mesmo médico (…) e os dias em que fazem os ditos ajuntamentos é nas sextas-feiras e sábados pelas 8 para as 9 horas da noite, e as cerimónias que fazem não sabe, porém que assistiu em casa do dito médico, por tempo de um ano, que cerram as portas e não admitem cristão-velho algum e ainda os próprios criados mandavam para fora de casa ou para a loja. (8) Do ponto de vista profissional, já vimos que os irmãos Cardoso eram fabricantes e mercadores de sedas, competindo esta última tarefa sobretudo a Francisco Rodrigues Ferreira, o líder da empresa familiar, que se tornou conhecido por “trazer cargas de mantos” de Bragança para vender em Lisboa, “aonde estava 8 a 9 meses efetivos” em cada ano. Aliás, acabaria mesmo por estabelecer morada em Lisboa, ”aonde não só se achava nas arrematações das comendas vagas das três ordens militares, mas ainda em vários tribunais, como são a Junta dos 3 Estados, a Casa de Bragança, o Conselho da Fazenda e Casas de Fidalgos particulares, onde arrematavam vários negócios”, adquirindo “grande crédito e cabedal, com o que se fez conhecido em todo este reino”. Partilhando a casa, também trabalhariam juntos os irmãos e irmãs que ficaram solteiros e terão acumulado um enorme capital, construindo um poderoso grupo económico, em cuja órbita gravitavam interesses de muita gente, do clero e da nobreza, incluídos. E isso explicará por que apareceram conhecidos padres e fidalgos, 3 familiares e um comissário da inquisição, como testemunhas de defesa dos irmãos Cardoso. Veja-se, a título de exemplo, uma declaração de Francisco Xavier de Sousa, fidalgo cavaleiro, escrivão da câmara de Bragança: - O réu é o melhor reputado entre as pessoas da nação. Ou o do comissário do santo ofício, licenciado José Morais Antas: - O Réu, Francisco Rodrigues Ferreira o conheço por falar com ele muitas vezes, assim nesta cidade como em Lisboa e outras partes e nunca lhe vi fazer coisa alguma que tivesse laivos de cerimónia judaica. (9) Deixemos, porém, o processo inquisitorial e voltemos a Bragança à prisão de Manuel e Francisco Rodrigues Ferreira e aos 2 dias que ficaram “depositados” em Bragança enquanto se preparava a leva para Coimbra. Manuel Ferreira foi depositado em casa de Sebastião Gomes, cristão-velho, rendeiro, morador na rua da Costa Pequena. Francisco Rodrigues Ferreira, esse foi entregue ao sargento-mor António Malheiro da Cunha, fidalgo-cavaleiro por alvará de 18.4.1694, morador na rua da Alfândega, filho de Baltasar de Morais Sarmento. (10) Assistiu-se então a um contínuo vai e vem de gente de uma casa para a outra, sobretudo durante a noite, em visita a um e outro dos irmãos, devendo agrupar os visitantes em 3 categorias. Antes de mais, a mãe, os irmãos e os amigos cristãos-novos, a maioria dos quais já antes tinham passado pelas cadeias do santo ofício. Obviamente que iriam ajudar a concertar a defesa dos réus, pois todos se denunciavam uns aos outros, devendo coincidir os depoimentos, no tempo, no modo e nos participantes de eventuais cerimónias e declarações de judaísmo. Naturalmente que cada um arranjaria uma desculpa, para o caso de serem questionados. Assim, um tio deles, que antes passara pelas cadeias da inquisição, diria que foi ao sapateiro encomendar sapatos novos para a viagem até Coimbra e depois lhos foi a levar. Notou-se depois um conjunto de 3 padres, curas de diferentes igrejas da cidade. Possivelmente foram mostrar a sua solidariedade e prontificar-se a servir de testemunhas de defesa. Diriam que foram chamados pelos presos que lhe encomendaram a celebração de missas, sinal de devoção cristã. Compreende- -se que apareçam depois como testemunhas de defesa dos mesmos réus, abonando o seu bom comportamento cristão. Um terceiro grupo era constituído por gente da maior nobreza da cidade. Certamente que lhe deviam favores, porventura deviam-lhe dinheiro e tinham contratos para acertar. Não se estranharia, por isso, que depois aparecessem igualmente como testemunhas de defesa. Claro que tudo isso era contrário aos regulamentos da inquisição, que proibiam qualquer contacto com os prisioneiros. Disso haveremos de falar.