José Mário Leite

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Celso Matias e a Partex

Ainda não se calaram todas as vozes que clamam que a alienação da empresa criada por Calouste Sarkis Gulbenkian representa um desvio inaceitável, ou pelo menos exagerado, da missão confiada à Fundação com o seu nome. É verdade que a Partex tem representado, ao longo dos últimos sessenta anos, não só uma das principais fontes de receita para o financiamento das suas atividades como, igualmente, um estabilizador no meio da instabilidade constante que envolve os restantes investimentos vulgarmente agrupados no que se convencionou chamar de "carteira". E se esta, ao que já é sabido, este ano teve um  bom desempenho, outros houve em que a "volatilidade" do mercado trouxe prejuízos consideráveis com reflexo imediato no valor total da fortuna. O Conselho de Administração já deu provas de ter o assunto muito bem estudado e estar a conduzi-lo com todo o cuidado e precaução. Não deve ser, pois, uma preocupação para mais ninguém. Não há nada escrito, no testamento do fundador sobre o destino futuro da petrolífera. O essencial do "caderno de encargos" do senhor Calouste pode ser traduzido em duas ideias base: a perpetuidade da Fundação e a prossecução de quatro fins estatutários: arte, educação, ciência e benemerência. Sendo essa uma preocupação constante do CA, não há, na alienação em curso, nada que possa colocar em causa a sua manutenção e execução total e completa.
Mesmo sendo certo que a importância relativa, na sociedade portuguesa, já foi muito superior à atual, também é verdade que a principal fundação lusitana continua, a ser brindada pela população com elevadíssimos índices de apreço e aprovação como o demonstram estudos recentes. A imagem da Gulbenkian nunca foi afetada pelas crises nem pelas opções de gestão, independentemente das polémicas que algumas tenham proporcionado. Porque no seu código genético, a "embrulhar" a marca de qualidade, competência, generosidade e disponibilidade, patentes desde o ato fundador, está a gratidão, gravada pelo seu patrono, logo à nascença. A Gulbenkian é generosa e grata para todos os que a servem com dedicação e lealdade e isso traduz-se na reciprocidade de todos os seus beneficiários sejam, utentes, parceiros ou colaboradores. Celso Matias é mais um exemplo recente, entre muitos outros, de alguém que, tendo-se reformado depois de largos anos de atividade profissional na Avenida de Berna, não hesitou em colocar toda a sua capacidade, tempo e outros recursos, ao serviço da antiga entidade patronal para levar ao melhor porto a preciosa ajuda no apoio às martirizadas populações vítimas dos incêndios de verão.
A generosidade e gratidão com todos aqueles com quem se relaciona, sejam colaboradores, parceiros ou beneficiários, que lhe foram legadas pelo seu instituidor, representam, tendo em vista o cumprimento da vontade testamentada, um ativo de valor muito superior ao da Partex ou do desempenho da carteira.

O factor P

Um dos temas quentes da atualidade, prende-se com a forma como o Facebook foi usado pela empresa britânica Cambridge Analytica para ifluenciar as últimas eleições presidenciais americanas. A partir deste caso choveram críticas, gritos de revolta, sinais de alarme, declarações inflamadas, rasgamento de vestes e anúncios apocalíticos, sobre o risco de morte da democracia. À mistura com muita verdade, verdadeira reflexão sobre o papel das redes sociais e denúncia de metodologias desapropriadas veio igualmente muita demagogia, falsa indignação e hipocrisia, de politólogos, comentadores e, sobretudo, políticos. Estamos a falar de quê? Ao que parece uma empresa de marketing vendeu os seus serviços à campanha de Donald Trump tendo em vista contribuir para a vitória nas respetivas eleições. Esta, no âmbito do trabalho que lhe foi encomendado, estudou o universo eleitoral e preparou uma série de ações destinadas a influenciar o sentido de voto dos oponentes, sobretudo o dos indecisos. Um dos casos relatados tem a ver com a contratação de última hora de um anúncio na Google Ads para que uma notícia favorável ao magnata surgisse em primeiro lugar sempre que alguém pedisse ao motor de busca, informações sobre a guerra no Iraque (“Hilary votou a favor, Trump opôs-se-lhe”). Este anúncio só foi possível porque a campanha da senadora que tinha reservado o espaço na gigante tecnológica, desistiu do mesmo por estar confiante na vitória. Afinal o “crime” da consultora terá sido o de aproveitar uma oportunidade rejeitada pelos democratas. 
Não se limitou a esse aproveitamento fortuito e providencial. Terá igualmente cozinhado e divulgado notícias em que o papel do seu candidato era exageradamente exaltado por contrapartida da depreciação da sua oponente. Vejam só! E, pasme-se, para além disso, adequou a mensagem ao perfil conhecido dos destinatários. Essa agora! O que é que isto tem de inédito? Ah, já sei, tudo isto baseado num algoritmo científico! Bom, em boa verdade isso é novo! “So what”? 
Consta ainda que foram recolhidos dados de quase cinquenta milhões de utentes do Facebook para construir os vários perfis e, com base nisso, estratificar o público alvo de forma a melhor personalizar e dirigir a mensagem pretendida. A classe política entrou em pânico: estão a destruir a Democracia! Se estudar o universo eleitor (ou parte dele) e moldar o discurso ao que é esperado e suposto agradar aos ouvintes é a sentença de morte do regime democrático... então a condenação não é de agora!
Ah, mas a recolha de informação foi feita, recorrendo às redes sociais e sem o devido consentimento explícito. Pois. Sem o consentimento, mas não sem o conhecimento, a menos que fôssemos ingénuos! Quem quer que seja que navegue no ciberespaço não deve ignorar que a cada clique, a cada like, a cada comentário, a cada publicação, a cada partilha, a cada recusa, está a dar sinais claros do que é, do que gosta, do que detesta, do que o identifica, do que o diferencia e até do que pensa, apoia ou rejeita. Mas não é só quando “navega” nas redes sociais. Igualmente quando viaja com o GPS ligado, quando reserva um hotel ou uma viagem de avião, quando telefona de um telemóvel, quando paga a crédito, quando levanta dinheiro ou quando muda de canal de televisão. Quando usa a tecnologia atual ao seu dispôr (e que a pouco e pouco invade total e inevitavelmente a vida de cada um) está a definir um percurso e uma opção de vida, está a esculpir uma identidade. Que não haja qualquer ilusão: do outro lado do ecrã olhando para esta movimentação, recolhendo esta exposição, tratando-a em conjunto (e em particular se tal for adequado) estão, já há muito tempo, grandes corporações digitais desde a Google, à Apple, passando pela Amazon e Facebook. E é por isso que dominam o mercado e apresentam valores estratosféricos de Goodwill. 
O facto novo é apenas este: a possibilidade de conhecer, estratificar e manipular a opinião deixou de ser um exclusivo da classe política. Será talvez isso que tanto os perturba, mas não há nada a fazer. O velho caciquismo tem agora novas formas e novo paradigma: chama-se fator F. Amigos, familiares, apoiantes e seguidores (em inglês friends, family, fans and followers) são quem mais condiciona a opinião de cada um.
E, cada vez mais vai ser assim, já que é assumido que em 2025, mais de 90% da população mundial estará conectada, gratuitamente, à Internet. 

A TORRE DE TATLIN

A que ficou conhecida como Torre de Tatlin não passou de um projeto do arquiteto e pintor russo Vladimir Tatlin. Nunca foi construída.  Era um monumento revolucionário em ambos os significados do termo, seja o real, seja o figurado. Por um lado era composto por elementos que rodavam sobre si mesmos em movimentos cíclicos de diferentes velocidades, que a seguir descreverei, e, por outro lado, pretendia celebrar a Revolução de Outubro de 1917 e as alterações sociais em curso, na terra dos sovietes. Deveria servir de sede à Terceira Internacional que, no entender dos intelectuais e revolucionários russos, haveria de estabelecer uma nova ordem em todo o mundo, a partir das margens do rio Neva em Petrogrado.
A projetada construção era constituída por uma dupla espiral metálica, antecipando a forma adotada pelo DNA de todos os seres vivos, recordando a escada espiralada do castelo Chambord, projetada por Leonardo da Vinci e assemelhando-se ao minarete da Grande Mesquita de Samarra que, por sua vez, se terá inspirado na bíblica Torre de Babel.
Segundo o projeto do seu autor, integrado no movimento construtivista (que viria a ser perseguido pela corrente do realismo socialista, imposta por Estaline), no interior da formação helicoidal seriam construídas quatro estruturas diferente, que rodariam, continuamente e a velocidades diferentes. A maior de todas, na base, um cubo, rodaria de forma a perfazer uma volta completa num ano. Logo a seguir, uma pirâmide, demoraria um mês a rodar sobre si própria. Um cilindro iria consumir um dia para fazer uma rotação. Mais rápida seria a esfera do topo cujo tempo de rotação era de apenas uma hora. Estes espaços cinéticos teriam funções diferentes sendo o primeiro dedicado às atividades legislativas, o segundo às executivas e o terceiro à informação. A última iria servir para albergar um ecrã de projeção de onde emergiriam a antena duma estação radiofónica. Elevadores elétricas estariam encarregados de ligar todos estes corpos e, também eles, com velocidades diferenciadas, asseguravam o funcionamento de todo o edifício e facilitavam as intercomunicações.

Há quem ainda veja no magnífico projeto uma alegoria ao grande relógio cósmico que replicava, nas suas diversas revoluções, os movimentos terrestres e a cadência dos signos do zodíaco. Outros relevam a harmonia dos movimentos de rotação dos sólidos interiores semelhante ao novo processo revolucionário em curso no reino dos antigos czares.

No seu livro “Reinventar a Democracia”, Manuel de Arriaga,  propõe uma outra analogia. O economista, gestor e professor na Universidade de Nova Iorque, aponta a edificação como um ícone figurativo da realidade política dos nossos tempos: o interesse público terá de identificar e incorporar o reconhecimento de que a realidade comporta em si diferentes ritmos e diferentes temporalidades. Tal como a movimentação dos elementos móveis está relacionada entre si igualmente o sucesso prático das decisões políticas passa pelo entendimento que os interesses a curto prazo têm de se encadear e basear nos de longo prazo. Ora o maior problema dos nossos políticos e decisores públicos passa, precisamente, pelo foco no imediato esquecendo as opções estruturais de visão mais alargada e de horizonte mais longíquo. Trepam até à esfera da Torre e, uma vez ali chegados, esquecem todo o resto do sistema preocupados em manterem a sua posição junto do centro emissor, independentemente da necessidade de conceber, produzir, aprimorar e operacionalizar as decisões e ações necessárias ao efetivo benefício público.
Esta atitude, embora errada, nem sequer nos é estranha. Afinal mais facilmente tentamos evitar um cumprimento de alguém constipado, com receio de contágio no imediato, do que deixamos de fumar, sabendo que os riscos de cancro de pulmão, a longo prazo, são reais e muito mais graves.

O LEMA DO HOMEM ARANHA

O Homem Aranha apareceu, pela primeira vez na revista Amazing Fantasy publicada nos Estados Unidos a 15 de agosto de 1962. Logo no primeiro episódio enunciava o seu lema: “with great power there must also come great responsibility” (Com um grande poder vem também uma grande responsabilidade). Essa sua divisa levou-o a altos voos. Seguramente maiores que os proporcionados pelos tirantes que lhe saltavam dos punhos após um leve do dedo anelar. As correias elásticas e super-resistentes permitiram-lhe saltar entre o topo dos arranha-céus dos locais onde exercia a sua atividade em prol da justiça. A máxima que o lidera permitiu-lhe o reconhecimento público, o apreço dos leitores e a glorificação entre os míticos heróis da Marvel com consagração nos estúdios de Hollywood
Altos voos requerem altos compromissos. É natural. Foi assim com o Homem Aranha e nada de relevante, a este nível, mudou, mais de meio-século depois. Numa altura em que tanto se fala de ética seria bom olhar para este “exemplo” que vários gurus e manuais sobre moralidade referem e apontam como um pilar do ideário normativo de todos os que devem, pela sua atividade ou poder, reger a sua vida por principios de elevado valor deontológicos.

Qualquer um que se proponha governar, em nome da comunidade que pretende representar, direitos e recursos comuns tem de elevar a fasquia comportamental ao nível correspondente e mantê-la lá, de forma estável e não permitir a sua flutuação ao sabor das conveniências.
É conhecido e reconhecido (porque muitas vezes lembrado e repetido, tantas quantas as oportunas) o lema de que o que é feito ao nível local é melhor, mais eficaz e com menores custos. É esse o racional que está por trás da reclamada (e justa, diga-se) descentralização do poder público. É esse o preceito que suporta princípio da subsidiariedade que garante que só deve passar para um nível superior o que não puder ser feito bem a um inferior. Vem isto a propósito da recente determinação impositiva, como deve ser, de obrigar à limpeza das matas que circundam as povoações e que são, sem qualquer margem para dúvida, o melhor anel de defesa contra os terríveis fogos de verão, cada vez mais perigosos e fatais. Ora aí está uma atividade que facilmente se credita ao poder local, no balanço do deve e haver da subsidiariedade. E contudo assistimos, perplexos, a uma reação unânime de recusa dos autarcas para esta tarefa. Que não há tempo e que não têm meios. A perplexidade começa pela unanimidade. Haverá certamente casos mais difíceis e complexos. Mas não há a menor dúvida que os há simples e óbvios. Então porquê a recusa imediata e sindicalizada? É perfeitamente credível que os custos da operação sejam elevados. Cuidado portanto com o efeito bumerangue: todos estão lembrados de ouvir os eleitos municipais garantir que os empreendimentos, localmente são feitos melhor, mais rapidamente a a mais baixo preço. Portanto se os mesmos garantem que esta tarefa, se autárquica, é complexa, morosa e cara... imagine-se como será, feita centralmente! E contudo é algo que TEM DE SER FEITO!

É certo que o ministro ao recomendar o corte nas festas e romarias estava a ser demagógico e populista. Mas isso não se combate com mais do mesmo. Não basta “denunciar” o ministro. Não chega dizer que não existem meios. Se os programas das festas e das feiras da moda, continuarem sem qualquer corte significativo, desaparece toda a moralidade para acusar o ministro!

 

 

QUAL FACEBOOK?

Passado o túnel do Marão é num ápice que se ultrapassa Vila Real e começa a haver condições para sintonizar as rádios locais do Nordeste. Motiva-me a curiosidade sobre as notícias locais, ditas em primeira mão, com entrevistas no local com os protagonistas. É uma forma de continuar a alimentar as raízes, sedentas da cultura materna, seja pela revisita das tradições, seja pelo doce sabor do som do linguajar local. Mas não só. Entre os vários programas radiofónicos que preenchem o espaço hertziano há os que, diferençando-se entre si por alguns pormenores e estilos, obedecem a um padrão que me remete para os meus tempos de infância – o dos discos pedidos. Nessa altura ouvia com atenção e curiosidade as preferências de ouvintes distantes, tão anónimos como o próprio locutor, mas com que, naturalmente, mais me identificava. Os que hoje nos são oferecidos pelas diferentes Rádios Locais são muito mais que isso e vão mais longe. Sem grandes exceções os participantes são repetentes, usuários habituais deste espaço público, conhecem o locutor (mesmo que se adivinhe um conhecimento especial, sobretudo baseado na voz) e conhecem-se igualmente entre si.
– Então como está? Já melhorou da gripe? Tenha cuidado que o frio anda por aí e se apanha um resfriado ainda acaba com uma pneumonia e isso pode ser-lhe fatal.
– Ai credo, nem me diga tal coisa. Mas olhe que eu agasalho-me bem. Você já sabe que comigo o frio não quer nada.
– Sei, sei. E qual é a música para hoje?
– Hoje a escolha é sua. É a que você quiser...
– Ai eu é que escolho? E como sabe que é essa que quer? Bom, mas diga lá então a quem é dedicada.
Lá vem um enorme rol de amigos, conhecidos, familiares e outros. Não raramente termina com “ e para todos os ouvintes” fechando o círculo universal e que, aparentemente, inutilizaria a anterior “indispensável descrição”. Mas também há lugar a ralhetes, recados e acusações.
– Olhe, também quero mandar uma saudação para o senhor Zeferino. Ele falou há pouco para aí e não disse nada para mim. Não me nomeou e eu nunca me esqueço de falar nele.
E ainda, frequentemente, por parte do locutor, uma “necessária” separação de águas.
– Olhe ti’António...
– António, só. Trate-me apenas por António. Isso dos tios é de outro programa e de outra rádio e eu não quero confusões!
Não posso deixar de estabelecer um paralelo com as redes sociais tanto em voga agora e usadas preferencialmente pelas camadas mais jovens embora haja uma participação, cada vez maior, de outras faixas etárias. No caso destes programas, pressente-se pela voz, discurso e conteúdo, uma pirâmide de forma invertida à anterior. Mas no resto são mais as semelhanças que as diferenças. É verdade que uma se baseia na escrita e na imagem e a outra é exclusivamente baseada na palavra. Mas em tudo o resto são semelhantes: Uma lista grande de amigos, alguns encontrados e conhecidos neste espaço restrito; a frequência da plataforma com regularidade; o convite para a partilha de pensamentos, de estados de alma; a descrição com ou sem pormenores da última ou da próxima refeição. Numa das edições recentes uma belíssima voz feminina entoou, à capela, um hino à sua aldeia. Encantador. O facebook não faria melhor. Merecedora, sem dúvida de um “like”! Gesto que no caso da rádio passa pela vontade a concretizar de ouvir o programa, de novo, que as vicissitudes da vida me permitam regressar ao Nordeste e logo que ultrapasse a luz ao fundo do túnel do Marão ou que comece a descer da Guarda para Celorico. Os próprios modelos de negócio são semelhantes. Quer um quer outro têm o seu sustentáculo económico na publicidade associada que vendem e que é proporcional ao número de pessoas que os vêm ou ouvem.
De regresso a Lisboa e pensando já nesta crónica para o Jornal Nordeste interrogava-me como seria a audiodescrição das interações entre os utentes do Facebook. Fazendo as necessárias alterações e que passam pela substituição óbvias das fotografias pessoais, recolhidas na internet ou pedidas emprestadas a amigos, pelas canções dos artistas preferidos, gravações de um grupo regional ou mesmo executando-a pessoalmente e em direto e substituindo o acesso à internet e à respetiva plataforma, pelo telefonema para o locutor de serviço,  não encontraria melhor exemplo que o destes encantadores e úteis programas característicos das nossas rádios locais.

ESTOU CERTO OU ESTOU ERRADO?

Na novela “Roque Santeiro” da segunda metado dos anos oitenta do século passado, Sinhozinho Malta, interpretado por Lima Duarte, tinha um bordão que ficou célebre: com um pequeno abanão, puxava o relógio e algumas pulseiras de ouro para o pulso que erguia, agitando os adereços perguntava enfaticamente – Estou certo ou estou errado? Embora a resposta induzida e por ele esperada fosse obviamente de concordância, o certo é que, precisamente, na maioria dos casos a resposta correcta e fundamentada deveria ser: – Está errado!
Assim acontece tantas vezes não só porque a simples resposta pode ser redutora como ainda porque, muitas vezes, a análise detalhada dos componentes que a enformam pode, com alguma facilidade, induzir precisamente o caminho oposto. Enquanto que o certo traduz uma situação de total conformidade já o errado pode encerrar vários graus de divergência pelo que a sua simples evocação ou aplicação não evidencia os vários graus de divergência com distâncias distintas à solução acertada. Se não vejamos. Se for pedido a alguém que soletre a “chave” e a resposta for c-h-a-v-e será obviamente classificada como estando certa. Qualquer outra resposta estará errada. Não só a resposta d-i-b-x-f como e-j-c-y-g e também x-a-b-e. Contudo o erro não é, seguramente, o mesmo pois apesar de estar errada esta última parece mais próxima da resposta verdadeira. Porque a fonética das duas palavras “chave” e “xabe” são muito parecidas, podendo inclusivé ser facilmente confundidas ao ouvi-las. E, contudo, numa ótica de mera codificação, qualquer uma das outras facilmente se converte na solução esperada já que no primeiro caso basta procurar, para cada letra, a letra anterior no alfabeto e no segundo a segunda letra anterior. De qualquer forma apenas uma resposta é verdadeira e todas as restantes são falsas.
Vejamos agora uma pequena história onde se pode igualmente procurar algum ensinamento adicional sobre este mesmo tema.
O Presidente da Câmara, nesse dia, resolveu ir visitar as obras municipais e fez-se acompanhar do vice e de dois estagiários que o IEFP tinha colocado no município. Um deles deveria ser selecionado para integrar o quadro no departamento de Obras e Projetos. Fizeram uma paragem na Praça Central onde se ultimavam os trabalho da nova torre. – Agora só falta colocar, no topo, um pára-raios que servirá de antena. É preciso encomendá-la. – Pois. Mas é preciso determinar o seu tamanho. – Ah, isso é fácil. A distância da ponta ao solo tem de ser oito metros. Basta subtrair a esse valor o da altura atual da torre. Algum dos dois estagiários me saberá dizer quanto é é que mede?
Foi tomar um café com o vice e, no regresso indagou junto dos dois jovens qual a opinião deles sobre a real dimensão da torre. – Sete metros – diz um deles, o Manuel – mais ou menos! – Seis metros e oitenta – diz o outro, o João.
De volta aos Paços do Concelho perguntou ao vice: – Então o que achas? – O João acertou em cheio! – Pois acertou, mas quem fica com o lugar é o Manuel.
E com razão. Efetivamente o valor correto é o apontado pelo João que o obteve, do projetista da Câmara de quem é amigo e a quem perguntou por SMS. O Presidente observou isso sentado na esplanada e também viu que o número avançado pelo Manuel resultou da medida da sombra da torre, medida em passos e que depois comparou com a sua própria sombra. Não estando certo estava seguro de que o valor teria aquela ordem de grandeza e que se fosse necessário chegaria, pelos seus próprios meios ao valor exato se tivesse acesso aos meios de medida adequados.
Neste caso especial, andou bem o autarca!

QUEM CABRAS NÃO TEM (Evite matar a galinha)

O título desta minha crónica parece ser um nonsense, contudo há uma lógica para o mesmo que a seguir demosntrarei. O provérbio “quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem” ficou famoso como justificação de uma decisão judicial no processo Sócrates, no caso, se a memória não me atraiçoa, para a manutenção da prisão preventiva em Évora. Não havendo naquela data provas sobre a sua culpa, havia, segundo o ministério público, indícios suficientes, que sustentavam a sua tese. Contudo, essa “regra” de tempos idos, começa a perder razão e força, nos tempos modernos. Em crónica recente dei conta que quem mais alojamentos “vende” na internet é a AirBnB que não tem nenhuma casa. E é a Uber, que não tem nenhum carro, quem mais fatura no serviço de transporte individual. Poderia citar outros exemplos mas o que hoje importa referir é o caso da energia em que esta situação é ainda mais evidente e peculiar. Há, inclusivamente um novo termo para caracterizar o novo cliente energético: o prosumer. O vocábulo, de origem britânica junta os dois conceitos de produtor (prodicer) e consumidor (consumer). A atual tecnologia permite inclusivamente que seja possível vender energia, sem a produzir. Vejamos como:
Tomemos para exemplo um cliente de energia igualmente que seja também possuidor de um carro elétrico. Estas viaturas atualmente têm baterias que lhes permitem armazenar energia para viagens de distâncias consideráveis! Ora, como é sabido, a viatura particular é, no dia a dia, usada, essencialmente para ir até ao trabalho e regressar. Seguramente usará muito menos que um quarto da energia acumulada na ida e outro tanto no regresso, deixando assim disponível mais de meio depósito... que o feliz contemplado poder vender à empresa onde trabalha. E o que ganharia ele com isso? Ganha ele e a empresa. E todos nós!
A energia elétrica tem preços diferentes segundo as várias horas do dia. É mais barata à noite, mais cara durante o dia e ainda mais durante o período do meio dia que é quando há mais consumo. É mais cara porque a procura é maior e isso chegaria. Mas não só. A produção de base de energia está ajustada ao consumo médio. Os picos de procura são satisfeitos com importação, por um lado, e, por outro, recorrendo a centrais térmicas que usando hidrocarbonetos, produzem energia com um custo mais elevado e com muito maior poluição, libertando várias toneladas de CO2. Como a carga dos carros elétricos se faz durante a noite, quando a energia é barata, é possível entregá-la na hora de ponta a um valor mais elevado e, mesmo assim, menor que o cobrado pelas operadoras energéticas. Todos ganham e o ambiente também!
Vamos agora à galinha que, obviamente, se refere a outro refrão popular, nomeadamente a dos ovos de ouro. E porquê? Porque este novo negócio (em que já há várias empresas a iniciar a exploração) baseia-se na realidade de que a há uma diferença de preço por causa das exigências de consumo. A exploração desse diferencial vem, precisamente, diminuir essa diferença. Em última análise se este negócio for muito bem sucedido e toda a necessidade de energia adicional for compensada por energia armazenada a baixo custo... deixa de fazer sentido pagá-la mais cara pois a situação passa a ser uniforme. Ou seja, quanto maior for o sucesso deste novo negócio, maior é a ameaça que sobre ele paira!
Mas o caminho é esse. Um caminho estreito, pois necessita de um elevado grau de equilíbrio: tal como a galinha que, enquanto enriquecia o seu dono, tinha de recear pela sua vida por causa da possível ganância do mesmo.

CONTRATAÇÃO PÚBLICA (Notas de reflexão)

Entrou em vigor, a 1 de janeiro do corrente ano de 2018 o novo Código dos Contratos Públicos de acordo com a redação que lhe é dada pelo Decreto Lei 111-B/2017 de 31 de agosto. Numa altura em que está na ordem do dia o tema do financiamento dos partidos e a sua respetiva regulação é oportuno abordar este assunto de forma direta, clara e sem qualquer escamoteamento. Sendo a última alteração significativa de 2012 (DL 149/2012 de 12 de julho) deve atentar-se, por um lado nas alterações introduzidas, enquadrá-las nas justificações inseridas no preâmbulo do diploma e olhar para o passado recente de vigência legal que, temporalmente se sobrepõe ao último quadriénio autarquico.
Comecemos por aqui. Em consulta ao portal da contratação pública, verifica-se que, no distrito de Bragança, que é o que interessa para o caso, (nada indica que tenha sido diferente no resto do país) o recurso à contratação pública por parte das autarquias atingiu valores notoriamente exagerados. Não é preciso recorrer ao estafado adágio de que à mulher de César não basta ser séria, para ter como certo que o uso dos dinheiros públicos deve ser criterioso, transparente e parcimonioso. Ora, dos procedimentos habituais para adjudicação de obras e fornecimentos, o Concurso Público e o Ajuste Direto é aquele e não este, que cumpre esta norma que deveria ser a diretiva primordial dos responsáveis das autarquias. E tanto assim é que se atentarmos nas declarações públicas de Presidentes de Câmara, sobretudo na apresentação de contas às respetivas Assembleias Municipais, usam e abusam de terminologia onde abundam qualificadores de rigor, transparência e equidade. Curiosamente, tal acontece quando na respetiva Câmara o Ajuste Direto foi regra quando devia ser exceção. No nosso distrito as adjudicações diretas ultrapassaram, em valor, as concursais e se é certo que houve municípios em que não chegaram aos 32%, outros houve em que ultrapassaram os 80% o que é, notoriamente, exagerado!
Ganha pois significado a intenção do legislador expressa no preâmbulo legislativo de melhoria da transparência e boa gestão pública sendo uma delas, precisamente a limitação do uso do Ajuste Direto. Assim é pois os limites para esta modalidade já que os anteriores valores de 150.000 euros nas empreitadas e 75.000 euros nos fornecimentos baixam drasticamente para 30.000 e 20.000 respetivamente. Igualmente se acabam com os malfadados CPV cuja manipulação habilidosa “permitia” aos cotratantes ultrapassarem os limites cumulativos de adjudicações à mesma entidade. Apesar da nítida melhoria, neste aspeto não se foi tão longe quanto se podia e devia, na minha modesta opinião. Os valores acumulados deviam ter um âmbito temporal superior e abranger a totalidade da legislatura autárquica precisamente para prevenir outros riscos que, como é sabido, mesmo que não admitido, têm a ver com o financiamento das campanhas eleitorais.
É sintomático que o legislador tenha a preocupação de para a necessidade de introduzir “medidas para prevenir e eliminar conflitos de interesses nos procedimentos de formação dos contratos” e ainda que o convite a apresentação de propostas esteja proibida a entidades que tenham feito fornecimentos, a título gratuito, no ano em curso e nos anteriores o que parecendo um nonsense, em boa verdade não o é. Então receber gratuitamente bens não é vantajoso para o erário público? Com toda a probabilidade, não. Como não se cansa de repetir João César das Neves, não há almoços grátis e a esmola, quando gorda, leva o pobre a desconfiar. Neste aspeto também penso que se deveria, se possível, ir um pouco mais longe. Os convites a apresentação de propostas deveriam ser igualmente vedados a todas as entidades que tenham contribuído em dinheiro ou em géneros, para as campanhas eleitorais das entidades que governam as respetivas autarquias. Seria aliás relevante que todos os presidentes de Câmara tivessem a iniciativa de divulgarem publicamente a lista completa de todos os contribuites privados das atividades partidárias. Igualmente deveria ser sabido quem foram os fornecedores dos materias de campanha, onerosamente ou não (sobretudo neste último caso) para que fosse afastada a suspeição de “compensação” posterior com recurso a adjudicações futuras pagas com o dinheiro público.

 

Um novo mundo espantoso

Ainda longe do estereotipo descrito por Aldous Huxley vivemos já um Novo Mundo que não pode deixar de nos causar alguma perplexidade se refletirmos sobre alguns aspetos da realidade do tempo presente. Como não nos espantarmos com a constatação de que, no exato momento que escrevo, o programa informático de criptografia da cybermoeda BitCoin foi o Banco que mais cresceu, que mais se capitalizou, operando uma moeda sem qualquer reserva conhecida, sem divisas, que ninguém sabe quem é o dono e nunca teve nem terá qualquer banco de atendimento. A Uber é hoje a maior companhia de taxis a nível mundial. Não tem um único carro e não contratou um único motorista. A maior plataforma de comunicação social, que mais leitores tem não produz nenhum conteúdo, não tem jornalistas nem editores: é o Facebook. Por seu turno a plataforma de comércio eletrónico, Alibaba, sedeada em Angzhou, na China, sendo o maior revendedor mundial não tem nenhum armazém porque não tem mercadorias suas para guardar. O maior operador tusrístico de alojmento, nos tempos de hoje, o Airbnb, não possui um único hotel, nenhuma casa, nem qualquer rececionista.
Na época natalícia que vivemos o número de postais de Boas Festas vai, provavelmente, superar a astronómica cifra dos anos anteriores e, contudo, é precisamente nesta altura que a empresa dos correios anuncia a sua crise crescente por causa da redução continuada e consistente de serviço.  De qualquer forma, como no romance “O Admirável Mundo Novo” do inglês Aldous Huxley, referido no início, existe igualmente neste tempo que vivemos e que partilhamos uma reserva histórica onde os antigos costumes e regras continuam a vincar as mais ancestrais tradições, crenças e rituais. Que, ao contrário da novela britânica, não causa qualquer conflito junto dos aderentes aos novíssimos modos de vida e facilidades tecnológicas modernas. As couves tronchas podem ser compradas numa qualquer grande superfície com pagamento eletrónico de cartão de crédito, os momentos natalícios, à volta da lareira que crepita os incadescentes toros de carrasco serão, seguramente, partilhados e replicados no facebook e qualquer nordestino da Diáspora pode matar saudades e preservar as tradições de infância comprando numa plataforma digital a máscara de celebração do solstício que mais lhe agradar. 
Não é necessário emigrar para poder regressar a casa, após o jantar natalício, num táxi da rede Uber e a deslocação ao Porto ou à capital para partilhar momentos com amigos e conhecidos pode facilmente garantir alojamento adequada através do Airbnb. 
Queiramos ou não, o progresso faz o seu caminho e não se vislumbra forma de o deter, nem sequer de o abrandar, muito menos de o reverter. Resta-nos a reserva identitária que o interior, cada vez mais despovoado e, mesmo que acompanhando os benefícios civilizacionais, vai mantendo e preservando. E assim será enquanto houver gente que o habite já que não será fácil encriptar o bacalhau, virtualizar o borralho, digitalizar o calor humano das noites gélidas e programar em computador o afeto de um abraço e de um forte aperto de mão.

BLOCO, PORQUE NÃO?

Sempre me causou alguma estranheza os mecanismos das sondagens e a extrapolação científica dos dados recolhidos numa pequena amostra para o universo dos votantes. Que estranho elo agarra um cidadão escolhido aleatoriamente a milhares de outros tantos que o mimetizam e seguem, magicamente, por uma regra sobrenatural. Era coisa de defícil compreensão. Em 1999 tive oportunidade de pôr à prova as minhas reticências. Na semana das eleições europeias desse ano fui selecionado para fazer parte da amostra de uma das empresas de sondagens. Pediram-me que antecipasse, numa urna, o meu voto desse domingo. Eu, que em regra votava PSD, o meu partido de sempre e que seria a minha escolha óbvia, se nada de estranho acontecesse, resolvi colocar a cruz no recentemente criado Bloco de Esquerda, no boletim de voto da pesquisa. Resultado, as sondagens da empresa que me escolhera apontava como possível a eleição de Miguel Portas para o Parlamento Europeu. Pude então confirmar as minhas suspeições sobre o mecanismo exploratório pois, contrariamente ao que aconteceria de outra forma, no dia 13 de junho de 1999, na secção de voto do Liceu Carolina Michaelis eu votei efetivamente, pela primeira vez no BE. Mas, tal como suspeitava, não houve nenhuma mão invisível que levasse dezenas de milhar de eleitores a seguirem o meu exemplo e o Miguel Portas não seguiu, nesse ano, para Bruxelas.
Votei no Bloco e nada de mal aconteceu! Pelo contrário fiquei com pena que a minha hipótese acabasse confirmada. O mais velho dos irmãos Portas veio provar, na eleição seguinte que o seu talento, valor, dedicação e competência só prestigiariam o país com a sua eleição logo naquele ano. O BE, não só por influência sua, mas também pela ação de outros dirigentes carismáticos como Francisco Louçã, Fernando Rosas e João Semedo afastou-se do radicalismo esquerdista que caracterizou alguns dos partidos fundadores, conservando, contudo, algumas das bandeiras originais como a denúncia e combate à corrupção, à injustiça social e adotou novos desígnios interpretando corretamente o pulsar da sociedade e, sobretudo, de grupos emergentes. Várias vezes, em família, foi assumido que o voto nos bloquistas era uma séria, correta e útil opção porque, não sendo crível que ganhassem as eleições em causa, era muito bom elegê-los para desempenharem o excelente e utilíssimo papel fiscalizador dos mais diversos agentes do poder vindos dos partidos tradicionais.
Em conversa recente veio de novo à baila, exatamente a mesma conversa, a mesma motivação e a mesma justificação. Só que desta vez eu já não concordei como fazia antes. O voto no Bloco pode ser útil sim, para eleger vereadores e deputados mas não só. É igualmente útil fazer dos dirigentes bloquistas Presidentes de Câmara, de Assembleia e Ministros. Esta análise evoluiu durante os últimos anos ao observar a forma responsável e com enorme sentido de estado que o partido liderado pela Catarina Martins tem apoiado a atual fórmula governativa. O ponto de viragem aconteceu quando a candidatura de Albano Mesquita à Assembleia Municipal de Vila Flor me veio acordar para a forma natural como a prática bloquista pode ser facilmente interpretada por pessoas moderadas desde que com fortes motivações de justiça social e defensoras da verdade e transparência na administração da coisa pública.
Quer isto dizer que me converti ao marxismo? Não. Durante décadas revi-me na ideologia do PSD mas, com o tempo, fui-me sentindo cada vez mais afastado da sua prática. Agora, pelo contrário, não aderindo às teses programáticas do Bloco de Esquerda, cada vez mais me identifico com a  sua atuação prática. O extremismo de alguns dos seus membros está perfeitamente moderado pelo pensamento e atuação da maioria dos simpatizantes e apoiantes e, sobretudo pela sua liderança inteligente e responsável. O governo recente do Siriza veio provar que os devaneios coletivistas e a ditadura do proletariado, fazendo ou não parte do ideário fundador, não têm cabimento no atual exercício do poder.
Ora, no tempo em que vivemos e em que o arco governativo se divorcia consistentemente do centrão e se alcandora nos extremos, olhando para o panorama atual, se o futuro passa por alguma “radicalismo” então que venha da esquerda. Da direita radical é que, definitivamente, NÃO!