José Mário Leite

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Rebofa (O Tsunami do Nordeste)

A última grande rebofa aconteceu no final dos anos sessenta. Ainda hoje me lembro dela. Se bem que, tenho de confessar, alguns dos pormenores da mesma provavelmente não serão genuínos e originais dessa longínqua vivência mas uma mistura do que vivi e do que li do belíssimo texto que Campos Monteiro dedica a este tsunami nordestino.
Esta cheia destruidora que, ao contrário das enchurradas normais, cresce da foz para a nascente é característico do Vale da Vilariça e, sendo um drama sempre que acontece, pela destruição com que se faz acompanhar, não deixa de ser uma das causas do excelente solo de aluvião que atapeta o mais fértil vale lusitano.
O Douro, depois de passar o Pocinho, em vez de se encaminhar diretamente para o mar, entre o Porto e Gaia, contorna o Vale Meão, célebre pela excelência dos seus vinhos e vem receber o Sabor na parte final da Vilariça. Este apresenta-se à centenária estrada fluvial do Vinho do Porto, na recente companhia da ribeira que desde a sua génese na Burga, no sopé da Serra de Bornes sublinha e marca o Vale. É, aliás, esta que acaba por acarretar com as consequências da fúria dos elementos quando estes assumem proporções de catástrofe.
Quando o rio Douro enche em demasia, as suas águas caudalosas chegam à aldeia da Foz do Sabor em oposição frontal às do seu afluente e entram por este dentro. Não se compara o caudal de um e outro rio, e, obviamente, é o Sabor que recua cedendo à força duriense. Mas é um recuo contido, não só, porque apesar de diferentes, as torrentes têm forças de ordem de grandeza parecidas como porque o vale onde este corre é apertado  e a subida das águas só se faz desde que outra escapatória não encontrem. Esta “válvula de escape” é, precisamente, a ribeira da Vilariça que, sendo de grandeza incomparavelmente inferior, corre num território plano e que fica completamente inundado pelas águas barrentas e revoltosas que, desde Espanha, se precipitam pelo vale acima destruindo tudo à sua passagem.

A construção de barragens no rio Douro veio “domesticar” esta fúria e as rebofas deixaram de aparecer, pelo menos com a ferocidade e poder destrutivo que tinham antigamente. Era suposto que as duas barragens do Baixo Sabor (uma delas de contra-embalse – portanto com capacidade de bombear água para montante) pusessem os agricultores de região a salvo dos caprichos metereológicos. O que aconteceu este ano e a que a comunicação social deu relevo, veio demonstrar que não.
Não porque não é possível lidar com a “fera” ou porque a EDP não acionou os meios e mecanismo que deveria fazer? É urgente saber-se para que, quem investe a vida e os meios disponíveis, por estas paragens, saiba afinal com o que pode contar, para além das afirmações genéricas de que o aproveitamento hidroelétrico contribuirá para a regulação e controlo dos caudais. Provavelmente a EDP já terá dado as suas justificações nos locais e às entidades onde é obrigada a fazê-lo. Mas era bom que as publicitasse e tornasse acessíveis para a generalidade da população.

A VISÃO (e o resto)

Desde há dez anos que a Fundação Champalimaud atribui o Prémio da Visão no valor de um milhão de euros no que é o maior prémio mundial nesta área. É conhecido nos meios científicos como o Nobel da Cegueira. Inicialmente apresentado nos jardins do mosteiro dos Jerónimos, transferiu-se para o belíssimo anfiteatro que a Champalimaud tem em Algés, com vista para a foz do Tejo proporcionando expetáculos de grande beleza. Este ano cumpriu a tradição com um ecrã gigante em pleno Tejo de onde surgiu, qual tritão, André Gago declamando o Mostrengo de Fernando Pessoa acompanhado à guitarra portuguesa em diálogo com uma pequena orquestra clássica que tocava no topo leste e com um grupo de percussão que marcava o ritmo no cume poente. A cerimónia do décimo aniversário trouxe como novidade ser a primeira patrocinada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e isso não foi de menos, como se verá.
Leonor Beleza abriu, cumprindo a tradição e repetindo uma história encantadora que já tinha contado numa edição anterior com a justificação de estarem na assistência dois dos seus protagonistas e que não resisto a partilhar. Este casal lusitano fez uma longa viagem pela Índia em scooter levando sempre visível a bandeira nacional. Pararam num local remoto, no sul, junto a um restaurante de estrada em cuja esplanada um velho indiano estava sentado. Despertou-lhe a atenção a bandeira verde e vermelha ostentada pelos forasteiros e, apontando para ela, começou a falar algo que estes não entendiam. Um tradutor ocasional, permitiu-lhes um breve diálogo. O que o velho dizia era muito simples: sabia bem de que país era aquele símbolo pois fora devido ao financiamento vindo de lá que ele podia agora ver. O primeiro beneficiário do Prémio Visão foi o Instituto Indiano Atavind Eye Care System que tem como maior finalidade erradicar a cegueira evitável. Tem a sua ação nas zonas rurais junto de pessoas sem recursos, tendo sempre o cuidado de explicar aos seus utentes a fonte dos financiamentos que proporcionam os tratamentos, gratuitos para quem não os pode pagar.
A curiosidade sobre a forma como Marcelo iria marcar a diferença, não saiu defraudada. Começou por garantir que o seu nome não era precedido por qualquer título universitário o que tem especial significado naquele lugar povoado, é certo pela nata da sociedade lisboeta mas, igualmente, pela elite dos cientistas que exercem em terras lusas. O anterior foi sempre anunciado como Professor Aníbal Cavaco Silva. Estando presente seria óbvio que Marcelo não o iria ignorar. Como iria tratá-lo? Com a argúcia que lhe é reconhecida dirigiu-se ao seu antecessor e a Ramalho Eanes, também presente,  tratando-os por “Presidente”. Não deixou, contudo de deixar uma subtil alfinetada quando, perante a emocionada Maria Luisa Champalimaud, anunciou a condecorção a título póstumo de António Champalimaud, lamentando que a “República” não tivesse já reconhecido o gesto generoso do filantropo. Independentemente dos juízos sobre a carreira profissional do empresário assumindo claramente que ele próprio no passado o elogiara algumas vezes e criticara algumas outras.

Ciência cidadã (e a participação cívica)

Desde o final do século XIX que milhares de cidadãos, de forma consciente e voluntária, analisam grandes quantidades de dados, partilham e discutem o seu conhecimento apresentando publicamente os resultados. Esta participação cívica começou nos Estados Unidos com a contagem coletiva de pássaros, atividade que ainda se mantém sob a coordenação da Audubon Naturalist Society. O avanço das tecnologias de informação permitiram que a Ciência Cidadã se ampliasse e alargasse a outros domínios.

Foi com base neste conceito que um grupo de portugueses lançou uma iniciativa de monitorização dos níveis de radioatividade na zona de Castelo Branco, preocupados com os efeitos nesse território da atividade da Central Nuclear de Almaraz. Esta central de produção de energia elétrica é a mais antiga de Espanha e já deveria ter sido encerrada em 2010, tendo sido prolongada a sua licença de funcionamento até 2020. Os seus acionistas pretendem a extensão adicional deste período para lá daquela data. Nas margens do rio Tejo dista menos de 200km da cidade de Castelo Branco sendo óbvias e evidentes as consequências para Portugal e para os portugueses de qualquer acidente grave que ali possa, eventualmente, ocorrer. A perceção de qualquer desvio aos padrões normais assume uma importância vital.

Sayago onde há perto de 35 anos se pretendia instalar uma central nuclear fica a menos de 30km de Miranda do Douro. Aldeia d’Ávila fica ainda mais perto da fronteira e esteve quase a receber um cemitério nuclear que a oposição popular ibérica conjunta acabou por suspender. Não se suspenderam as castelhanas intenções radioativas e recentemente nuestros hermanos anunciaram a intenção de iniciar em Retortillo/Villavieja, mesmo nas nossas barbas, uma exploração de urânio. Toda a bacia do rio Douro volta, de novo, a ficar ameaçada.

É necessário ficar alerta perante tantas e tão ameaçadoras investidas do lado de lá da fronteira. A democratização da ciência cidadã, com o uso adequado da internet e demais ferramentas de comunicação e partilha de dados, associado ao crescente baixo custo dos instrumentos de medição e monitorização escancara as portas ao controle público de dados e indicadores que até há bem pouco tempo estavam restringidos aos departamentos governamentais.

A monitorização da radiação na zona raiana de Castelo Branco irá ter um custo da ordem dos 2.500 euros. Nada que não possa ser dispendido pelos municípios nordestinos que em conjunto pretendam permitir a participação cívica que, nestes casos e com estas ferramentas acaba por ser mais eficaz, mais célere e mais confiável que os processos diplomáticos intergovernamentais.

OS AMIGOS

A amizade é um sentimento nobre que deve ser cultivada com empenho, desprendimento e lealdade. Cultiva-se, alimentando-a ao logo da vida e estacando-a, quando velha, como recomenda Miguel Torga. Os gestos de solidariedade e lealdade para com os amigos são sempre apreciados. É igualmente reconfortante estar rodeado de verdadeiros amigos sobretudo quando nos são exigidos esforços e trabalhos acrescidos em tarefas coletivas como acontece com os vários protagonistas políticos que ascendem ao poder.

Conforto que, contudo, não devia ser suficiente, quando outros requisitos são exigidos e, por isso mesmo, acaba por acarretar, por vezes, um preço elevado. Foi assim com Pedro Passos Coelho quando se sentiu obrigado a prestar o devido tributo à amizade que de há muito o ligava a Miguel Relvas. Igualmente António Costa, de forma mais célere e mais intensa (em menos de um ano são já dois os casos de amargos de boca) se viu envolvido em polémica para justificar o preito que a amizade de dois colaboradores lhe colocou a “pagamento”. No início de Abril viu-se forçado a celebrar contrato de prestação de serviços com Diogo Lacerda Machado para que este continuasse a poder, legal e formalmente, representá-lo em várias reuniões onde já ia a mando e por conta do Primeiro-Ministro. Estava a iniciar as férias e teve de se fazer valer do lugar que ocupa para segurar outro dos amigos chegados, Fernando Rocha Andrade, depois da forma descuidada e aligeirada como aceitou ser patrocinado pela Galp para ir ver jogar a seleção portuguesa de futebol. Amizade que será, seguramente, apreciada não só pelo próprio mas igualmente pelos seus colegas Jão Vasconcelos e Jorge Oliveira a quem idêntica e imprudente conduta poderia tê-los excluído da equipa governamental, a avaliar pelo ocorrido com João Soares.

Deve alguém ser beneficiado, num lugar de serviço público, só por ser amigo de quem detem a liderança do poder? Não. Mas também não deve ser prejudicado. Desde que seja igualmente competente, parece-me óbvia a opção por um amigo de confiança. Até porque a responsabiidade final, sobretudo política, nestes casos, passa quase integralmente para o chefe do Governo já que uma eventual queda arrastará consigo todo o elenco governativo. Os amigos caem na altura em que quem os promoveu abandone as funções que exerce.

Caso diferente seria se a única “qualidade” do escolhido fosse exatamente a amizade que o liga ao chefe. Se isso ocorrer numa autarquia então a questão é séria porque uma eventual renúncia ou impedimento do cabeça de lista não só não arrasta igual sorte para quem lhe segue mas, pelo contrário, coloca no topo da hierarquia quem estiver em segundo lugar na lista ganhadora.

O RAPAZ QUE APANHAVA ENGUIAS COM A MÃO

Esverdeadas, colubriformes, masjestosas, nadavam, normalmente em águas pouco agitadas. Tempos houve em que as enguias apareciam entre as demais espécies piscícolas que habitavam os cursos de água nordestinos. Com a construção das barragens no Douro Nacional acabaram-se. Já não há enguias. Da sua pesca resta a lembrança.
Havia várias formas de as pescar.
Na mais frequente usava-se um garfo comprido, com dentes finos, redondos e espessos. Nem sempre resultava pois como era normal andarem em zonas com muito lodo, faltava terreno firme por baixo e com alguma frequência se escapavam, apenas com pequenos arranhões.
Mas também havia quem as apanhasse com a mão, como o Fernando, que para isso tinha a necessária  mestria e engenho.
Para além das águas serenas correntes, chegavam mesmo a aparecer em poços e noras para onde caíam e onde ficavam aprisionadas. Na minha aldeia diziam à boca cheia e com ar de entendidos que isso acontecia porque as enguias saiam à noite para pastar. Soube mais tarde que como eram muito resistentes e aguentavam muito tempo fora de água a humidade do orvalho era suficiente para lhes permitir viagens noturnas, que às vezes lhes eram fatais, pelo meio da verdura dos campos.
Quando se esvaziavam os poços de rega para limpeza era vulgar no meio do lodo aparecerem o apetecido petisco. Mas era na ribeira da Vilariça que o Fernando as pescava. Revejo-o, de calças arregaçadas até às virilhas, caminhando lentamente como um felino numa poça que a ribeira fizera por baixo de umas raízes de choupo, nas Olgas, a seguir à ponte velha. Era muita a sabedoria e experiência que na sua dúzia de anos de existência já tinha, na arte de bem apanhar os murenídeos que se atreviam a aparecer-lhe pela frente.
Não usava garfo. Uma folha de figueira, dizia, era mais eficaz. Desde que conseguisse apanhá-la a jeito. Para isso não podia ser sobre o lodo onde ela facilmente se enterrava e depois nunca mais lhe punha a vista em cima. Tinha de a empurrar para uma pequena cascalheira onde a água era mais limpa, onde a via melhor e onde, se fosse necessário, a podia apertar contra areia grossa do chão. Esse era o segredo e essa era a fina arte do Fernando. Encaminhá-la para a água corrente sem a espantar. Com paciência. Muita paciência. O olhar fixo nos seus movimentos serpenteantes e a mão pronta a cair-lhe em cima, quando chegasse o momento. A superfície áspera da folha da figueira servia para se agarrar à pele escorregadia do animal. Cravava-lhe todos os pequenos picos vegetais e já não a largava. Para isso tinha de a apanhar no meio do lombo e com um gesto único. Se lhe tocasse antes, em qualquer uma das partes, ela sentia a ameaça, fugia para um dos buracos por baixo das raízes ou enterrava-se no lodo e, pronto, não havia nada a fazer. Cada passo que dava servindo para a encaminhar para o local pretendido tinha de ser suficientemente calmo e suave para a não espantar.
Foram várias as vezes que o vi erguer o braço com o troféu a espernear na mão. Muitas se lhe escaparam, é certo, mas o saldo era-lhe largamente favorável.

Num jantar de velhos amigos e colegas de curso estava um jovem que entrara há pouco para a polícia judiciária. Descrevia, deslumbrado, fruto da novidade e do entusiasmo, sem concretizar, claro, a forma como alguma investigação tinha de ser conduzida, nomeadamente os avanços lentos, os recuos estratégicos e a paciência necessária para obter as provas absolutamente necessárias ao sucesso das operações. Ouvimo-lo interessados.
– Tenho de te apresentar o Fernando – disse-lhe eu. 
– Quem é o Fernando? –  perguntou-me ele.
– Um rapaz que apanhava enguias com a mão –  concluí, em jeito de despedida.