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Os Sinais

Escrevo este texto, para publicação no Jornal Nordeste, ouvindo, na cristalina voz de Isabel Silvestre, a canção “A Gente não lê” da famosa dupla Carlos Tê/Rui Veloso. Retenho as palavras cantadas pela conhecida professora de Manhouce: “Falar o dialeto da terra, conhecer-lhe o corpo pelos sinais!” Não há outra solução para quem não conhece aprofundadamente alguns temas do que ajuizá-los e avaliá-los, pelos sinais. Conheço mal o Tribunal de Contas. Senti-me confortável na única vez que lá estive há perto de um quarto de século, a pedir apoio para o lançamento do concurso para a construção do Aterro Sanitário da Terra Quente. Conheço pessoalmente, desde que veio para a Gulbenkian, como administrador, o antigo Presidente, Guilherme de Oliveira Martins. Nada mais sei e, como tal, a minha opinião, a que tenho direito, formo-a, pelos sinais. E, confesso, os sinais que chegam não são claros. “Ai senhor das furnas, que escuro vai dentro de nós.” Insiste Isabel Sivestre. Haverá, não duvido, algumas razões que possam dar suporte à decisão de dispensar Vítor Caldeira do lugar de Presidente do Tribunal de Contas mas há, a avaliar pelas dezenas de opiniões de comentares e analistas, muitas mais para o manter no lugar para onde foi nomeado há quatro anos. Destas, sobressai, de entre as mais relevantes, a circunstância especial de estarmos em vésperas de receber da União Europeia uma contribuição avultada de verbas que carecem de execução célere para garantir a sua eficácia e a sua própria elegibilidade. É certo que a burocracia e as garantias de defesa da concorrência e do interesse público consomem muitos recursos e, sobretudo, tempo que pode, no caso corrente, prejudicar o objetivo principal. É essa a razão pela qual o Governo já anunciou um pacote legislativo para aligeirar os procedimentos e dispensar algumas formalidades. Ora se a complexidade do processo concursal foi instituída para prevenir e evitar “compadrios, clientela e corrupções” que têm, segundo o Presidente da República, de estar arredados da execução da chamada “bazuca” para combater a crise e se as alterações legais propostas irão, segundo Vitor Caldeira, fomentar o “conluio, cartelização e até mesmo corrupção”, não seria lógico aumentar e reforçar o Tribunal que controla e fiscaliza a atividade económica do setor público? Não se fortalece uma instituição de fiscalização decapitando-a de forma repentina e inesperada (toda a gente, incluindo o próprio, soube, já depois de expirado o prazo, que pela primeiríssima vez, o mandato de presidente se restringia a um único mandato), nem substituindo na sua liderança alguém com um vastíssimo curriculum nesta matéria, ao nível europeu, por alguém que, independentemente da sua competência e honorabilidade, não tem percurso profissional que se lhe compare. Justificam, o Primeiro-Ministro, repetente no cargo e o Presidente, preparando-se para o ser, que o cumprimento de um único mandato é a melhor forma de assegurar a independência dos altos dignitários. Dos que não são eleitos, acrescentam, temendo ficar mal na fotografia. Pois. Mas será que ignoram as dezenas e dezenas de posições de nomeação a que essa regra não se aplica, desde assessores, diretores gerais e regionais, chegando, inclusivamente a chefes de gabinete, secretários de estado e até ministros? Também não são eleitos para os cargos que ocupam e nem por isso estão sujeitos a tal regra! Para não falar dos “eleitos” que o são, já antes de o serem, como está a acontecer para as chefias das CCDR. E, que dizer dos que se vêm preteridos pelos escolhidos pelo governo, como aconteceu à magistrada Ana Almeida, classificada em primeiro lugar pela Comissão Independente para a Procuradoria Europeia e cujo lugar foi atribuído a José Guerra? Ecoa ainda a voz de Isabel Silvestre: “E do resto, entender mal, soletrar assinar em cruz, não ver os vultos furtivos, que nos tramam por trás da luz”

O Cristo Maconde

Nangololo é uma localidade situada no Planalto dos Macondes, bem no coração de Cabo Delgado, a província mais a norte de Moçambique. Ali, em 1924, padres holandeses fundaram uma importante Missão Católica a partir da qual cristianizaram o aguerrido povo maconde, animista, especialmente notado porque os homens desfiguravam o rosto com golpes profundos e as mulheres usavam brincos aguçados no lábio superior, à laia dos modernos piercings e tatuagens, tão na moda hoje em dia. Enfeites que, dizem os antropólogos, se destinavam, nos primórdios, a dissuadir os esclavagistas árabes de os escravizar, acabando por se constituir em emblemas tribais. O Cristo Maconde Sublime de amor e sofrimento era o Crucifixo que se erguia por cima do altar-mor da enorme igreja da mítica Missão. Talhado em pau-preto, dizia- -se que o artista maconde que o esculpiu se representara a si próprio, em tamanho real, negro e luminoso como o mais puro ébano, não faltando no sagrado rosto do Crucificado tatuagens iguais às que o seu humilde criador exibia na sua própria face. Muito perto de Nangololo teve lugar o primeiro episódio funesto da guerra da independência com o assassinato por guerrilheiros da Frelimo, no dia 24 de Agosto de 1964, de Daniel Boormans, um jovem padre holandês que contava 33 anos à hora da morte, a idade do próprio Cristo. De salientar que o povo maconde, de moto-próprio, acalentou o sonho de se constituir numa pátria autónoma, razão pela qual os nacionalistas principais, de entre os quais destaco Lázaro Kavandame, foram fuzilados pela guerrilha marxista-leninista que na sua sanha totalitária reivindicou a herança colonial íntegra, um tanto à semelhança do que hoje acontece entre Angola e Cabinda. Surgem agora, decorridos quase 50 anos, notícias dramáticas da eclosão de violentos conflitos armados por todo o Cabo Delgado sendo que a mais amarga de todas refere a destruição daquela notável Missão Católica, apontando-se o dedo a islamitas radicais, motivados pelo mais cruel fanatismo religioso. Também se noticia que Cabo Delgado possui riquíssimos recursos energéticos de que o colonialismo português não ousou tirar partido e que igualmente poderão explicar a guerra, a par do remanescente nacionalismo maconde. Reconhecendo a sua incapacidade para controlar a situação o governo de Maputo terá pedido o auxílio da União Europeia e o Governo português ter-se-á declarado disponível para colaborar, designadamente no campo militar. Em Cabo Delgado a História fala por si, a defesa da língua portuguesa conta, a solidariedade com o martirizado povo maconde é um imperativo moral e a possibilidade de uma mais alargada cooperação com o Estado moçambicano não deve ser descurada. Acresce que forças militares portuguesas estão empenhadas, com assinalável sucesso, noutras regiões africanas que nada dizem a Portugal e que a defesa da Europa, ameaçada pelo terrorismo islâmico, se trava igualmente no planalto maconde. Sem esquecer que a memória dos muitos militares portugueses, combatentes da I Grande Guerra e da dita Guerra Colonial, que por lá permanecem sepultados, deve ser honrada, da mesma forma que os mártires nacionalistas macondes não podem continuar esquecidos. É por tudo isto que a disponibilidade declarada pelo Governo português para prestar auxílio militar a Moçambique deve ser encorajada. Sobrepensando, claro está, eventuais baixas em combate.

Política com guião

A indiferença com que as sociedades, nomeadamente as ocidentais, têm encarado a política tem sido objeto de debate sem que, contudo, se tenha alterado a forma como esta dimensão é olhada pelas gerações que se sucedem. E se, até agora, o dedo era apontado às gerações mais novas, este sentimento é agora transversal, seja em termos de nível etário ou de grupo social. Ora, se o resultado é este, pode concluir-se que a receita ou não funcionou ou não foi aplicada, ou quem tem o dever de zelar para que todo o cidadão se sinta envolvido na vivência política decidiu não colocar este assunto na ordem do dia. Não admira pois que, sempre que surgem figuras disruptivas consigam tanto sucesso em tão pouco tempo. Ora, quando se assiste à discussão de quem irá aprovar o orçamento de estado e se perfilam os candidatos às eleições presidenciais, mais do que esgrimir argumentos sobre o modo como o dinheiro dos contribuintes vai ser gasto, parece mais relevante a reflexão sobre a forma como os valores democráticos são assumidos. Neste campo, as expectativas não poderão ser outras senão as que se esperam de quarenta e cinco anos que deveriam ter sido de plena democracia. Porém, esta quando nasceu não foi igual para todos e assim continua, desvirtuando-se o seu sentido e os valores e acentuando-se as desigualdades. Ao analisar as grandes opções orçamentais para o próximo ano, parece que, pela primeira vez, se pensou no aumento dos rendimentos das famílias, pela redução de impostos, nomeadamente o IRS, mediante a redução do que é retido na fonte. O problema é que, quando se proceder à liquidação do imposto, o valor a reembolsar será muito menor, podendo o contribuinte, em alguns casos, ser obrigado a devolver dinheiro ao estado; sobretudo e porque não haverá atualização dos escalões – o que, só por si, irá mais uma vez penalizar as famílias de classe média. Outra das medidas que, à partida, pode ser considerada positiva é o aumento do salário mínimo. É claro que, por princípio, este indicador não só é bom para a economia, como também se reveste de particular importância para as famílias. Numa lógica de mercado, esta medida irá, obviamente, aumentar a procura já que, quem mais precisa, é quem mais tem de gastar. E, nesta perspetiva, mais do que criar condições para que as famílias de baixo rendimento possam ter uma folga no seu orçamento familiar, é um estímulo ao consumo que, a não haver o critério de poupança no agregado, pode resultar num maior endividamento e no aumento do crédito malparado a curto prazo. A melhoria das condições dos grupos socialmente desfavorecidos deveria ser um desiderato nacional sobretudo porque só deste modo se poderão criar condições para que haja maior capacidade de resistir às oscilações de mercado, no futuro. Porém, o momento atual já é de crise e, se por um lado, não se pode por em causa esta necessidade, não se compreende como, no meio de uma crise, se quer pedir às empresas para aumentar os seus esforços em termos de índices remuneratórios, quando são sobejamente conhecidas as fragilidades endémicas que as constrangem. Neste campo, não se pode ser adepto das ideias da direita que considera qualquer aumento salarial como um atentado à viabilidade financeira das empresas o que coloca em causa os postos de trabalho de todos, em benefício de poucos; no entanto, qualquer medida por melhor que seja, desenquadrada do seu contexto redundará em fracasso. Fará, por isso, todo o sentido que se reforcem os programas de recuperação e as políticas orçamentais se alinham com as políticas europeias de onde poderão surgir fundos de sustentabilidade que alicercem as empresas, possibilitando assim alguns investimentos e a recuperação da cota de mercada perdida durante estes meses de pandemia. Em tempos de crise, e embora se lhe continue a chamar de pandemia, importa, sobretudo, deixar de fazer política de acordo com o guião e ser capaz de fazer rupturas com o estabelecido de modo a dar resposta a problemas que não se resolverão de outra forma e continuarão a alimentar populismos tão prejudiciais à própria democracia. Num novo guião não poderá ficar de fora a ideia de que política é mais do que partidos, e o modelo não pode continuar a assentar na ideia de um crescimento infinito quando vivemos num mundo finito.

Nascimento e crescimento de um anjo

No momento em que se retoma toda a preocupação com a escola e o «eterno regresso» dos conceitos de como educar, também a mim me interpela esse universo de uma forma nova. Nasceu há exactamente um ano, dia 9 de agosto. Como ele é recente nesta terra. Os primeiros meses passou-os com o rosto mergulhado no seio da mãe que o alimenta. Nunca se separam, esses dois, o que torna as poucas visitas algo ciumentas por não pertencerem a esse mundo mágico e fusional. Pouco a pouco foi abrindo os olhos sobre as coisas e os seres. Mostra- -se surpreendido, estupefacto, por constatar a existência dos outros depois de alguns meses de confinamento. Tudo isto acompanhado por sorrisos que põem à vontade ou em êxtase qualquer ser humano que o vê. Ainda não viu nada da verdadeira vida, este inocente. Há tanta coisa para descobrir. Não pode imaginar que o universo irá limitar-se, durante a vida, ao que gira à volta da sua pequena pessoa. Nem que tudo vai resumir-se à ternura incansável da mãe, às carícias apoiadas dos avós omnipresentes. Será preciso pensar desde já que tem de ser prevenido sobre tudo o que o espera? será necessária a crueldade de lhe dizer a verdade sobre a forma como, na realidade, as coisas e as pessoas funcionam na nossa velha terra ? Seria desperdiçar a inocência da sua primeira juventude; seria correr o risco de desencorajar uma jovem vida nos seu princípio, dissuadir desde logo toda a força de optimismo e capacidade de vitalidade feliz. Não se destroi uma energia no seu despertar. Tão perto do seu nascimento, pode-se fazer muito melhor do que pintar a um menino puro e sem qualquer mau pensamento um quadro representando tudo o que o homem é capaz de inventar no domínio da maldade e da violência, das guerras, das fomes organizadas, das dominações, dos cortejos de refugiados onde se vêem tantas crianças e bebés à espera diante de tanques cheios de água, algo tão raro por esses lados, corpos de afogados no mediterrâneo. Sem falar da abominável estupidez, esta vigorosa imbecilidade que leva tantas pessoas a separar-se, a dividir- -se, a odiar-se, a oporem-se uns aos outros com a única finalidade, dir- -se-á, de acabarem sozinhos na terra, sem o aborrecimento dos que são diferentes. Não, por favor, vamos poupar-lhe estes horrores ainda que estejamos impacientes para o prevenir, para que possa encontrar caracter e valentia para enfrentar e dominar tudo isso, mais tarde. Contudo não se espalham num berço os horrores e bestialidades de que é capaz o ser humano. Há prendas mais simpáticas. Neste estádio do seu desenvolvimento, limitemo-nos a anunciar- -lhe aquilo que, na sua vida futura, pelo menos é o que esperamos, será para ele fonte de alegrias e satisfações de toda a ordem. Descrevamos-lhe a opulência das coisas belas, a magnificência das paisagens terrestres das quais não tem ainda a mínima ideia; falemos-lhe das montanhas que escalará quando for grande, às costas dos pais antes de o fazer sozinho. Façamos-lhe ouvir a fonte palpitante de água pura e o canto do riacho percorrendo a verdura dum prado tranquilo. A catarata duma cascata sobre o rochedo e a suavidade do tapete húmido duma floresta profunda. Evoquemos aquilo que poderá ser o prazer de contemplar um céu imaculado duma beleza de gelo no fundo dum lago duma montanha cheia de neve e a impressão feliz que provocarão nele o canto dos pássaros das auroras radiosas duma primavera que estará sempre de volta. Mostremos- -lhe como se podem oferecer flores e toalhas de lindas cores às avós na festa da vindima para retardar o inverno e as 52 semanas do ano. Haverá tanto e tanto para lhe contar e prometer estes pequenos pedaços de felicidade simples que reserva uma existência, que seriam precisas muitas páginas para fazer uma lista parcial de tudo isso. Será preciso mostra-lhe e contar-lhe o sorriso das pessoas simpáticas e amáveis que estão perto de nós, a beleza dum rosto dum transeunte que passa a pé, num autocarro, ou num comboio. O sorriso duma rapariga bonita que se volta para trás. Ficará essa recordação para toda a vida mas nunca mais será vista a não ser em sonho. Será necessário fazer valer mil e um encontros e gestos de solidariedade, mãos estendidas que socorrem após um drama ou um crime cometido por desconhecidos cobardes, como quando surge um atentado que desperta o sentimento de pertença a uma grande família humana da qual se diz : esta vale a pena. Será preciso dizer-lhe, ao miúdo, quando for mais crescido, que quando aprender a ler e a escutar, terá acesso às maravilhas acumuladas da literatura, às melodias perturbantes da música, Mozart, Bach, Verdi : as suas criações esperam sabiamente o menino em discos que não se usam. Parecidos aos milhares de filmes, obras primas que esperam os nossos desejos de os ver. Será preciso vislumbrar que um dia, talvez, ele possa também pretender tocar um instrumento para fazer vibrar a vida. Ou uma pena para a descrever. Até que, como qualquer um de nós, cruzará o amor no olhar de outra pessoa, apaixonado tanto quanto possa e cheio de projetos… Nunca chegaremos a terminar de lhe contar a beleza da existência, a este menino cujo olhar nos comove e o sorriso nos ilumina a alma. É preciso dizer-lhe a riqueza da poesia, a maravilhosa pintura, e os talentos dos génios de outras épocas, de todas as categorias, de todas as nações. Essas pessoas que foram também elas bebés vendo a vida com avidez e interrogando-se sobre a forma como as coisas giravam à sua volta e em que mundo viveriam. Esse menino de Bragança, por enquanto, afastado de toda a infelicidade humana bem à sua frente, disponível para viver os aspetos positivos e as juventudes perpétuas da existência. Acaba de chegar. Vai ver tudo. Atravessará as portas do futuro. Tudo lhe é permitido e possível. Amámo-lo e quase temos ciúmes pelo que ele é e pelo que virá a ser.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- OS LEDESMA - Família e Mobilidade: António Gabriel, relaxado em carne

Celebrar o Kipur é condição essencial para ser judeu. E assim o entendiam e praticavam os cristãos-novos de Bragança, ao fim de dois séculos de perseguição inquisitorial e vivência religiosa clandestina. E celebravam-no de forma não muito recatada, juntando-se “em sinagoga” em casas particulares uma dezena e mais de pessoas. Vejamos, por exemplo, uma dessas reuniões, acontecida no Kipur de 1637, contada por Bernardo Lopes de Castro, de 23 anos, solteiro, tecelão de seda: - Há 10 anos, em Bragança, em casa de seu parente Jerónimo Álvares Ramos, tecelão de sedas (…) se achou com (…) e estando todos 16, a saber: ele confitente e os ditos Jerónimo Álvares Ramos, a mulher deste, Bárbara Ferreira, Miguel Cardoso Penha, João Cardoso Penha, José Mendes Borges, Luís Álvares Sá Leão, Laureano de Sá Leão, Alonso Rodrigues Álvares, António Gabriel Pissarro, António Gabriel Ledesma, Manuel Mendes Furtado, Manuel da Costa Carvalho, Gabriel da Paz, Rafael Rodrigues Furtado e seu tio Sebastião Lopes Pereira, tio dele confitente e autor do seu ensino e entre práticas que tiveram se declararam e deram conta como viviam na lei de Moisés e disseram que guardavam os sábados como dias santos, vestindo camisa lavada na sexta-feira à tarde, estando com a cabeça coberta e voltados para o nascente e não comiam carne de porco, lebre, coelho, nem peixe de pele, nem também sangue de animal de qualquer casta que fosse, e faziam o jejum do dia grande que vem no mês de Setembro, aos 10 dias da lua do mesmo mês, estando sem comer nem beber desde o pôr-do-sol até ao outro dia às mesmas horas e então ceavam coisas que não fossem de carne (…) e que quando davam a bênção a algum afilhado seu, por nenhum caso lha davam em cruz e só abrindo a mão lhe corriam o rosto com ela, e na sexta-feira à tarde concertavam as candeias com azeite limpo e torcidas novas e varriam sempre as casas às avessas e quando lhe morria alguma pessoa parenta ou vizinha e conhecida, não comiam naquele dia e vazavam logo a água que tinham nos cântaros e lhe lançavam outra nova, e que assistindo em casa aonde se amortalhasse algum defunto, faziam muito porque fosse amortalhado em pano novo, e lavado todo o corpo com água e sabão, cortando muito bem as unhas dos pés e mãos, e querendo fazer algum sufrágio pelas almas dos tais defuntos, faziam jejuns judaicos dando algumas esmolas pelas ditas almas contanto que não fossem de coisa que não levasse carne e além do padre- -nosso se encomendam ao Deus dos Céus com a oração seguinte: Alto Deus e grande Deus E Senhor do Mundo todo, Senhor de toda a verdade A minha alma Vos clama Meu coração por Vós alaba E que como servo Vos sirva Em vosso serviço acabe. Amen. A qual oração rezavam todos os dias e com efeito fizeram todos juntos na forma sobredita o jejum do dia grande e se ficaram tratando e comunicando todos dali por diante... Escusado será dizer que todos os referidos participantes na celebração acabaram perseguidos pelo santo ofício e muitos confirmaram a confissão de Bernardo, acrescentando alguns pormenores, como, por exemplo, Laureano de Leão, a dizer que “antes de rezarem lavavam as mãos e na véspera do Kipur lavavam todo o corpo”. Antes de prosseguirmos, uma nota sobre aqueles 16 judeus brigantinos para dizer que todos eles estavam ligados por laços familiares mais ou menos estreitos, oscilando a sua idade entre os 20 e tal e os 40 anos, quase todos fabricantes de sedas. Aqui entra o conceito de nação, com o significado de família alargada, cujos membros rezavam em conjunto, casavam na família e trabalhavam em rede familiar. Membro desta “família-nação” era também Gaspar Dias de Castro, que fez a seguinte confissão perante os inquisidores: - Haverá 12 anos, em Bragança, em casa de seu primo direito, António Gabriel Ledesma (…) para fazer o jejum do dia grande, no qual dia não haviam de tomar tabaco e antes de entrar a fazer o dito jejum se havia de lavar todo o corpo e nesta forma faziam o jejum da Rainha Ester, no princípio do mês de Março (…) também havia de fazer no mês de Junho outro jejum chamado da Sentença, em memória da revogação da sentença de morte que se tinha dado contra os judeus e de que eles, depois, ficaram livres… Outras muitas denúncias foram feitas contra António Gabriel Ledesma, 31 anos, solteiro, tecelão de sedas, natural e morador em Bragança, filho de João Rodrigues Ledesma e Francisca Rosa, o qual foi preso em 22.3.1747 pela inquisição de Coimbra onde, em 31.8.1748 foi submetido a tormento, dando-se-lhe “um trato esperto que durou meia hora, no decurso do qual gritou muito, chamando por Jesus e que não tinha culpas”. O processo transitou para Lisboa e prolongou-se até 8 de Novembro de 1750. Trata-se de um processo do maior interesse, a vários níveis. Antes de mais porque, pelas contraditas apresentadas por António Gabriel, ficamos sabendo como estava organizada a venda e distribuição do tabaco, em Trás-os-Montes, nos anos anteriores à sua prisão. Assim, o contrato de toda a província estava arrematado “in totum” pelo contratador Manuel Rodrigues Gabriel, natural de Bragança. Como tal contrato exigia muito capital disponível, o contratador contava com apoios de retaguarda, nos quais substabelecia o arrendamento. E aqui surge novamente a família- -nação como célula fundamental. Assim, a venda de tabaco na comarca de Torre de Moncorvo ficou entregue a João Gonçalves Gabriel, com o pai de António Gabriel (João Rodrigues Ledesma) no cargo de administrador. Na comarca de Chaves ficou José Rodrigues Peinado, cunhado de João Gabriel e na comarca de Vila Real o monopólio do tabaco foi entregue a Francisco Fernandes Gabriel. Na rede familiar deste negócio estava também o brigantino José de Sá Vargas, possivelmente responsável pela distribuição na comarca de Miranda do Douro que incluía a região de Bragança. E em Bragança, o próprio réu, António Gabriel Ledesma vendia tabaco a retalho, pertencente ao mesmo contrato. O contratador teria já então mudado a sua morada para Lamego, prosseguindo certamente outros contratos e negócios. Também no que respeita ao monopólio do sabão, este processo dá informações interessantes que a escassez de espaço nos impede agora de tratar. Por 3 anos de prisão, o réu manteve-se negativo, dizendo-se católico e repetindo que todas as acusações eram motivadas por ódio e vingança de seus inimigos, que apontava, assim como as testemunhas que podiam fazer prova. Isso fez multiplicar as diligências a Bragança, com as respetivas custas, pois que o comissário local, o escrivão e o notário não trabalhavam de graça. Neste ponto, o processo ganha mais interesse, por mostrar a teia de relações, por vezes contraditórias, entre a comunidade cristã-velha de Bragança, em ralação aos cristãos-novos. O comissário, abade José de Morais Antas, natural de Vimioso não hesitou em dar crédito a testemunhas cristãs-novas e desacreditar cristãos-velhos. Veja-se: - Todas as pessoas cristãs-velhas nomeadas na comissão e artigo supra lhe parece a ele testemunha que presume inimigos dos cristãos-novos são inatendíveis os seu depoimentos, no que respeita a dizer ele testemunha e julgar que são inimigos dos cristãos- -novos é por saber que, em certa ocasião, em um jubileu, antes de ser preso Francisco Furtado Mendonça andaram observando os ditos cristãos-velhos se se confessava antes de comungar; e se persuadiram que não se tinha confessado, vendo-o pôr à mesa da comunhão; e depois se averiguou que se confessara ao padre Francisco Xavier de Sousa Pereira, de cuja observação ficou ele testemunha entendendo que a faziam por inimigos dos cristãos-novos e não por zelo da santa fé católica… Trágicos foram os últimos dias de António Gabriel. Quando o informaram que estava condenado à morte, ele começou a confessar e a pedir perdão, o que levou o tribunal, a aprovar o seguinte despacho, proposto pelo inquisidor Manuel Varejão de Távora: - Pareceu a todos que o assento estava alterado visto dizer de suas irmãs e outras pessoas conjuntas, que não estavam indiciadas, com mostras de arrependimento, mas está diminuto por não dizer de 2 sobrinhos segundos e de outras muitas testemunhas da justiça, e ser útil à justiça a sua confissão no que respeita às irmãs, que ainda não foram presas. E vá ao auto-da-fé e abjure em forma e hábito com insígnias de fogo. Não entendeu assim o Conselho Geral que manteve a condenação à morte. No decurso do auto, António Gabriel pediu para ser ouvido, desdobrando-se em confissões. A sentença foi reavaliada por 3 vezes, mantendo o Conselho Geral a sua decisão. E, estando já no cadafalso, quando a sentença final ia ser lida, pelas 3 horas da tarde, António Gabriel, em alta voz e de desespero, continuou fazendo confissão pública e pedindo misericórdia. Vários membros do tribunal opinaram que o réu deveria ser reservado, para o caso ser melhor analisado. Porém, o Conselho Geral manteve a sentença. Veja-se o teor: - Foram vistas pela quarta vez em Mesa estes autos (…) por que foi mandado relaxar e o mais que disse no cadafalso pelas 3 horas da tarde e a confissão que fez pelas 8 horas da noite (…) que se lhe não poderão tomar judicialmente pela penúria do tempo e hora que o fez (…) nem ser verosímil o que diz no cadafalso à vista de todos os mais réus de Bragança…