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NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Diogo Henriques, aliás, Abraham Bueno (n. Medina de Rio Seco c. 1620)

Um dos filhos de António Henriques, o Fastio, chamou-se Pedro Henriques, o qual casou com Ana Vaz, irmã de Pero Henriques, o Cavaleiro. O casal morava na Rua do Concelho, em Torre de Moncorvo, aquando da visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa, em 1583. Foram denunciados como judaizantes, por uma Ana Pires, nos seguintes termos:

- Disse mais que ela foi forneira haverá dois anos, em um forno da Fonte do Concelho e tinha por vizinhos (…) Pedro Henriques Fastio, mercador, casado com Ana Vaz (…) e as mulheres destes eram suas freguesas e coziam no seu forno, e nunca cozeram ao sábado, e nunca as viu fiar nem fazer outro serviço, levantavam-se muito tarde e abriam as suas portas e janelas tarde, o que ela via por estar atenta a isso, e que nos outros dias, assim aos domingos como pelos mais dias da semana, se levantavam sempre muito cedo, o que faziam elas e seus maridos e assim os via nos ditos sábados trazerem camisas lavadas e as mulheres toucados limpos e visitavam-se umas às outras. (1)

Talvez por não haver mais denúncias, Pedro e Ana não foram incomodados pela inquisição, naquela altura. Por 1620, na sequência da prisão de Manuel Rodrigues Isidro, certamente receando ser também presos, meteram-se em fuga para Espanha, levando consigo os filhos, que seriam dois: o Manuel e uma rapariga cujo nome ignoramos.

Ana levava no ventre um terceiro filho e, chegando a Medina de Rio Seco, não aguentou mais, dando à luz uma criança que ali batizaram com o nome de Diogo Henriques. Em Medina terão permanecido por 10 meses, posto o que se meteram a caminho de França, indo assentar casa em La Bastide de Clarence, região da Gasconha. Ali chegariam nessa mesma altura outros membros do clã familiar dos Fastio, nomeadamente, o tio paterno de Diogo, António Henriques e sua mulher Filipa da Mesquita, também sua tia, pelo lado materno. Assim como a filha destes, Filipa da Mesquita e o marido, Francisco Álvares Frade, natural de Mogadouro. (2)

Nesta parte de França haveria uma certa liberdade religiosa e os hebreus professavam mais ou menos publicamente a lei de Moisés, se bem que não lhes fosse permitido ter sinagogas, nem manifestações públicas de sua religião. Diogo seria logo mandado circuncidar, recebendo então o nome judeu de Abraham Bueno. E, se bem que frequentasse a catequese com as crianças católicas, aprenderia, em paralelo, a lei de Moisés, uma educação algo esmerada, com um mestre “judeu”. E chegado aos 12-13 anos, começaria a acompanhar o pai e os parentes na vida de mercador ambulante. Nas suas deambulações terá conhecido a cidade de Tartas, onde morava Cristóvão Luís, com sua família, fugido de Bragança, em cuja casa ficaria hospedado. A relação com um dos filhos de Cristóvão (Isaac Tartas) (3) haveria de prolongar-se por Amesterdão e Recife.

Aos 15 anos, Bueno andava comprando e vendendo pelos reinos de Castela, Aragão e Navarra, detendo-se em Madrid por espaço de 7 meses.

Por 1637, faleceu o pai, Pedro Henriques e Ana Vaz e os filhos deixaram La Bastide e foram-se a viver em Amesterdão, a grande metrópole judaica da época. Ali, sim podiam abertamente professar a lei de Moisés e apresentar-se com os nomes judeus que, entretanto tomaram, dos quais conhecemos: Rachel Baruch (Violante Henriques), Ester (Catarina) e Jacob Bueno. Escusado será dizer que, em Amesterdão encontraram os Bueno alguns parentes e muitos conhecidos e amigos de Vila Flor e Torre de Moncorvo.

Naquele tempo os Holandeses tinham uma grande marinha mercante e adotaram uma política de criação de colónias e construção de um império. E, contrariamente aos espanhóis e portugueses, onde o comércio marítimo e a defesa das colónias dependia do Estado, na Holanda criaram-se duas grandes empresas capitalistas que receberam do Estado o monopólio do comércio e responsabilidades de administração e defesa das colónias: a Companhia das Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais.

Nesta política de expansão, os holandeses, que já dominavam algumas regiões do mar das Caraíbas, tomaram o Recife, no coração da região açucareira do Brasil e implantaram ali a capital do chamado Brasil Holandês, que se estendeu pelo Rio de S. Francisco e capitania de Pernambuco. E ao Brasil Holandês acorreram muitos portugueses da nação hebreia, com financiamento e apoio comercial da Companhia das Índias Ocidentais.

Entre os muitos dos nossos conhecidos de Vila Flor, Torre de Moncorvo e Trás-os-Montes que então deixaram Amesterdão e rumaram ao Recife e Pernambuco, contaram-se Ana Vaz, os seus 4 filhos solteiros, as duas filhas e respetivos maridos. (4) Dos filhos de Ana Vaz, apenas um terá ficado pela Europa, na região da Gasconha, em França – Jacob Bueno. (5)

A partir de 1644, quando Maurício de Nassau entrou em choque com os diretores da Companhia das Índias Ocidentais e deixou o governo do Recife, os Portugueses iniciaram a recuperação da colónia. E entre os prisioneiros que os Portugueses fizeram, mereceu tratamento especial um grupo de 10 “judeus”, entre eles o já citado Isaac de Tartas, aliás, José de Lis e o nosso biografado, pelos outros identificado como “o Judeu francês”.

Depois de preso no Rio de S. Francisco, em Maio de 1646, Abraham foi enviado para a Baía e ali interrogado pelo bispo D. Pedro da Silva. Dali foi embarcado para a inquisição de Lisboa, dando entrada nos cárceres da penitência. A qui, tratava-se de averiguar se Abraham era mesmo judeu e nunca fora batizado. Nesse caso, não seria processado pela inquisição.

Foi este o caminho que Abraão tentou seguir, na sua defesa. Disse que nunca foi batizado e logo em pequeno foi circuncidado, pois no lugar onde os pais moravam havia liberdade de crença, por um tributo que pagavam ao rei de França. Sobre isto foram ouvidas várias testemunhas, entre elas o embaixador de França em Lisboa, que todas afirmaram que só na cidade de Metz isso era possível. De resto, em toda a França era obrigatório o batismo de todas as crianças.

Acabou o prisioneiro por contar toda a verdade sobre a sua vida, confessar que foi batizado em Espanha, onde lhe puseram o nome de Diogo Henriques e que foi depois circuncidado, secretamente, tornando-se judeu, com o nome de Abraham Bueno.

Logicamente, foi então mandado meter nos cárceres secretos, (5) com sequestro de bens. O processo correu, com o promotor a formular a acusação de herege, apóstata, diminuto e fingido e a pedir que fosse relaxado à justiça secular.

Entre os companheiros de cela, teve o padre António Nabo de Mendonça, cuja missão seria ensinar-lhe a doutrina cristã, mas que, na realidade, servia de bufo, em busca de mais culpas contra ele. Foi contar aos inquisidores que Abraham era um fingido, que sabia perfeitamente a doutrina cristã e que até sabia ajudar à missa. Acrescentou que sabia latim “mostrava ter princípios de ciência e filosofia e sabia muitas escrituras do testamento velho e novo”. Mais disse que, falando da teologia sagrada, Bueno lhe dissera que a teologia de Portugal “era uma pequena de trampa e uma panela sem água e adubo e somente as nações que sabiam o hebraico tinham verdadeiro sentido da sagrada escritura”

O padre Mendonça fora também companheiro de cela de Isaac Tartas. Testemunhou que ambos argumentavam e se defendiam de maneira muito semelhante e usando argumentos parecidos. Por isso, em uma das audiências, perante os inquisidores, aventou mesmo a hipótese de Bueno e Tartas serem irmãos e que o Bueno já fora prisioneiro da inquisição de Madrid e contara ao Tartas como era a vida dentro dos cárceres. Defendeu-se o Diogo, dizendo que o padre se movia por ódio contra ele e contra o Tartas. E explicou aos senhores inquisidores que o seu arrependimento era tão verdadeiro e a vontade de ser bom cristão muito grande, que se empenhou com toda a força a aprender a doutrina cristã com os companheiros de cela, pelo que rapidamente a aprendeu.

Entrou também a denunciar familiares, amigos e conhecidos que com ele judaizaram em La Bastide de Clarence, em Amesterdão e Pernambuco. Acabou o processo com Diogo Henriques saindo condenado em cárcere e hábito perpétuo, no auto da fé de 15 de dezembro de 1647. Tinha apenas 27 anos quando ganhou a liberdade. Nós, porém, não temos informação segura sobre a sua vida a partir daí.

Notas:

1-ANTT, inq. Coimbra, livro 662, f. 65v.

2-António Henriques, a mulher, a filha e o genro foram depois para a Itália.

3-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontano… jornal Nordeste nº 1023, de 21 de junho de 2016.

4-A irmã Violante Henriques, aliás, Rachel Baruch, casou com Isaac Baruch. Este fora de pequeno para Itália. Catarina Henriques, a outra irmã, era casada com Jacob Levi, originário de Vila Flor, filho de Manuel Francisco Resio, conhecidos também de Amesterdão.

5-ANTT, inq. Lisboa, pº 1770, de Diogo Henriques.

PARTIS - (Arte e Inclusão)

No próximo mês de Julho a Fundação Gulbenkian vai lançar mais uma edição do Programa PARTIS (Práticas Artísticas para a Inclusão Social). Este programa pretende promover e valorizar cidadãos socialmente excluídos ou em estado de vulnerabilidade social, recorrendo a práticas artísticas. Nas edições anteriores foram vários os projetos apoiados, alguns com relevância pela força que trazem e, sobretudo, pelo meio onde se inserem.

Nos vários projetos da primeira edição chamam a atenção, entre outros, a Ópera na Prisão que ocupou 50 jovens  dos 16 aos 25 anos da prisão escola e estabelecimento prisional de Leiria; Mãos que cantam que ousou integrar 25 alunos surdos num coro em Oeiras; Dormem mil gestos nos meus dedos para ajudar na aprendizagem da Língua Portuguesa, como forma de integrar refugiados apoiados pelo CPR (Conselho Prtuguês para os Refugiados);

Na segunda edição, a decorrer merecem relevo o Projeto Zéthoven – Plante um Músico destinado a crianças provenientes de famílias carenciadas das zonas da Covilhã, Fundão e  Guarda;  Fado Dançado que recupera, em bairros da região metroplitana de Lisboa, uma tradição do século XIX, com jovens provenientes dos PALOP; o projeto Tum, Tum, Tum coloca nas mãos de desempregados e de crianças e jovens em risco, de Gondomar, instrumentos musicais de percussão feitos de materiais reciclados e ainda  Dormem mil cores nos meus dedos igualmente com refugiados entre os 14 e os 18 anos, na sequência de um projeto da edição anterior.

Não querendo fazer quaisquer comparações valorativas, não posso deixar de relevar e chamar a atenção para o significado que tem para a nossa terra o projeto Há festa no Campo, da primeira edição e que fomentou o sentimento de pertença das populações envelhecidas das aldeias de Juncal do Campo e Freixial do Campo, em Castelo Branco.

 

Apesar do elevado número de apoios, as solicitações são muito mais. Na última edição “apenas” foram selecionados 16 das 160 candidaturas, pelo que a qualidade e adequação destas últimas é crucial para poder aceder ao financiamento. Tendo-se circunscrito às grandes áreas urbanas, nos anos anteriores, a Gulbenkian pretende estender os projetos ao interior do país. Para tal uma delegação da instituição da Avenida de Berna vai a Bragança brevemente. No próximo dia 12 de junho, entre as 10h00 e as 12h30 no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, com a colaboração, apoio e empenho do seu Diretor, Dr. Jorge Costa, será apresentada a próxima edição desta iniciativa.

As várias e boas instituições de solidariedade do distrito, as vereações com o pelouro do apoio social das Câmaras Municipais e a sociedade civil, em geral, terão tudo a ganhar se na terça, dia 12, rumarem à Rua Abílio Beça, nas imediações da Praça da Sé para escutarem e perceberem bem os objetivos e, sobretudo, a melhor forma de concorrerem a mais esta iniciativa. Independentemente dos resultados futuros, só pela apresentação com que serão brindados, já não darão o tempo por perdido.

 

Portugal está em guerra

O Estado Português continua a saque e a economia nacional em roda livre, a mover-se perigosamente sem que o Governo dê aos pedais. A dívida pública que o diga, que não pára de aumentar. Portugal sofre, em surdina, os efeitos duma guerra civil generalizada, subversiva e insidiosa. Não declarada.

 Os inimigos da Pátria, chamemos os bois pelos nomes, não lhe dão tréguas. São políticos, de esquerda ou de direita, banqueiros, grandes empresários ou simples sucateiros. Cuja arma principal é a corrupção embora também façam uso do compadrio, do tráfico de influências e de outros expedientes ilícitos.

Cedo tomaram de assalto os principais bastiões do Estado democrático, os partidos políticos, as grandes agremiações desportivas, as empresas públicas e a própria Assembleia da República, valendo-se das fragilidades do Regime

É uma modalidade de guerra que não coloca forças militares em terra, no mar ou no ar, mas se trava nos gabinetes, em combates ininterruptos conhecidos pelos códigos que lhes são atribuídos, como operação Marquês, operação Face oculta, ou operação Fizz.

Uma guerra de guerrilha que força populações inteiras a abandonar os campos e o interior e a procurar refúgio no litoral e mesmo no estrangeiro.

Uma guerra camuflada de paz social, de estabilidade política, de democracia do faz de conta, em que os soldados da pátria, que é como quem diz da Lei, estão em desvantagem porque manifestamente mal armados, mal equipados e em número insuficiente.

Uma guerra em que invariavelmente são apanhados políticos agachados atrás da moita, a fazer o que facilmente se adivinha e que a comunicação social seraficamente trata como escândalos.

 Já lá vai o tempo em que as portuguesas e os portugueses se escandalizavam quando viam um casal de namorados beijarem-se em público. Presentemente só a democracia que todos os dias é prostituída os parece ofender muito embora, e justamente, a não repudiem, o mesmo não se dizendo dessa guerra traiçoeira de que são as grandes vítimas.

Os portugueses repudiam, sim, quem assalta paióis militares mas também os responsáveis que permitem que os paióis sejam assaltados.

Repudiam os incendiários e igualmente os governantes que durante décadas desleixaram as florestas originando a morte de centenas de infelizes. Repudiam os grandes agiotas que desfalcam bancos e também os governantes que se apressam a salvá-los com o dinheiro dos contribuintes.

 Repudiam a Justiça que não ata nem desata, que é como quem diz não prende nem solta ninguém, e repudiam por igual todos os políticos que a enredam em novelos de insuficiências e contradições.

Os portugueses, cima de tudo, repudiam os governantes que, como diria o imortal Eça de Queiroz, persistem em cobrir com o manto diáfano da democracia do faz de conta a nudez crua e dura da corrupção.

Que importa que o senhor Presidente da República venha agora, a propósito do acto terrorista ocorrido em Alcochete, dizer que não “podemos continuar a fazer de conta, temos de parar para refletir e pôr as instituições a funcionar”, se as suas palavras entram por um ouvido do governo da Geringonça e saem pelo outro?

 Governo que no que toca a reformas fundamentais é completamente cego, surdo, mudo e deficiente. Limita-se ao óbvio, ao mais fácil e que dá votos: esmolar os pobres e presentear os ricos. É por isto tudo que os portugueses de bom senso e boa vontade se devem mobilizar para o combate.

A guerra continua. A vitória não é certa!

Este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico.

Samões vence 1ª edição da Taça Distrital de Veteranos

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Ter, 29/05/2018 - 15:25


A Associação Cultural e Desportiva de Samões conseguiu o feito, no domingo, e cedo chegou ao golo. Cubano abriu o caminho para a vitória aos cinco minutos e bisou aos 30’, num período de jogo dominado pela formação de Vila Flor.

Reviralho

A respeito destas crónicas, alguém me dizia há tempos que eu era do reviralho. Só podia ser a fazer pouco, tendo em conta que em mim sempre se reuniram ingredientes pouco propícios a lutar por aquelas mudanças que viram as sociedades de pernas para o ar: com o tempo as minhas certezas (se alguma vez tive algo digno desse nome) correm o sério risco de recuar para valores negativos; sou de uma abulia demasiado entranhada para mexer uma palha, a começar pelas palhas da vida pessoal; considero-me absolutamente incapaz de mobilizar duas pessoas, nem que seja para empurrar um carro empanado no meio do trânsito; e por último, a minha insignificância política consegue felizmente bater aos pontos a desse rapaz com fixação pelas câmaras a quem chamam o emplastro. A imagem que melhor me definiria talvez fosse a do canídeo já entrado em anos e com quilos em excesso que, quando o passante assoma à porta do dono, ladra arrastadamente três vezes por hábito e obrigação, não se dando sequer ao esforço de se levantar (quanto mais morder) antes de esmagar outra vez os beiços pendentes contra as ervas.

É certo que aqui ou ali posso dar a ideia de perfilhar uma visão maniqueísta na qual poderosos e humildes, exploradores e explorados, governantes e governados estariam em conflito, comigo a defender como um quixote os segundos de cada par contra a maldade dos primeiros. Não é que não pense ser assim a realidade, mas o meu idílio romântico com o povo foi na casa dos vinte anos. Hoje encaro essa classe de forma bem menos poética, tendo todas as razões para crer que a visão de George Orwel em “O triunfo dos porcos” esteja corretíssima: se por súbito milagre as posições relativas dentro de qualquer daqueles pares se invertessem, no dia seguinte continuaria tudo igual. A natureza de uns e outros é exatamente a mesma, farinha do mesmo saco, de modo que preconizar “uma terra sem amos” tem sido demasiadas vezes mudar apenas de amos, mais viciosos que os que tinham sido depostos. Desconfio da sombria verdade de que os fracos não querem acabar com os fortes, apenas substituir-se a eles. Vítimas hoje, carrascos amanhã. Sempre e por todo o lado abundaram situações em que o povo explorado, em chegando ao poder, faz figuras mais lamentáveis do que a mais reacionária das burguesias, e nem é preciso sair desta cismontana província para o comprovar com magníficos exemplares.  

É claríssimo que a revolução material das últimas décadas era mais que desejável, que a abolição da fome e miséria seculares do povo se impunha como uma urgência civilizacional. Mas sendo certo que passámos a viver incomparavelmente mais aliviados no que respeita às carências do corpo, a deploranda verdade é que em termos culturais, cívicos, éticos, espirituais, não nos edificámos por aí além. Pelo contrário, fico muitas vezes com a impressão desconsolada de que a barriga cheia nos empanturrou também de superficialidade, materialismo, frustração, melindre, intransigência, arrogância, conflituosidade. Nos predispôs à vitimização, a culpar a realidade em vez de procurar criá-la. Os três famosos éfes do salazarismo com os quais se dizia alienar-se o povo nesse tempo (Fátima, fado, futebol) aí continuam, pujantes como nunca, aliados hoje a mais uns quantos. Factos ilustrativos de que a melhoria das condições materiais é apenas um dos lados da coisa. Portanto, idealismos da minha parte, absolutamente fora de questão. A anos-luz de algo que se pareça com desejar “revirar” seja o que for a esse respeito, podem os instalados dormir tranquilos.

Temos um lado luminoso e outro negro, talvez com alguma inclinação para este, o que em geral nos leva a querer tirar proveito do próximo. E a não ser que arranje modo de tomar consciência disso e decidir qual das vertentes quer extrair de si, dificilmente algum dia o homem deixará de ser lobo do homem. Não acredito em mudanças substanciais e duráveis se não as que passam pelo conhecimento, pela sabedoria, em particular os que se operam quando nos voltamos para nós com uma imensa vontade de descobrir o que está bem no fundo dos obscuros subterrâneos das nossas mentes. Penso que o progresso passa mais por aí. De resto, algo tão difícil como assustador e a que sempre resistimos com ferocidade, razão pela qual “muitos são chamados, mas poucos escolhidos”.