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Vendavais- Pregando no deserto

F oram necessários muitos séculos para que o cristianismo se espalhasse pelo mundo e fosse aceite como uma verdadeira religião. Como em todos os começos, foi difícil ser aceite por ser nova, contrária às existentes religiões politeístas, por ser monoteísta, mas com uma mensagem de amor e paz que mais nenhuma tinha. Num Império Romano absolutamente politeísta e onde até os imperadores eram adorados como deuses, era quase impossível entrar uma nova religião e pior, acreditar nela que só tinha um Deus. Como é que um só Deus tinha mais poder que todos os deuses do império? Não era fácil acreditar, mas alguns acreditaram e tiveram a coragem de espalhar a boa nova. Foram perseguidos, presos e mortos muitos deles, mas de nada valeu. A força e a coragem prevaleceram e o mundo, aos poucos, tomou conhecimento da nova religião. Teve Fé. A mesma Fé que os portugueses levaram mar fora e o mesmo Deus que os guiou e os implantou em paragens tão díspares como os deuses que por lá existiam. Venceu o Deus cristão. Estava demasiado distante o tempo em que um Papa cristão tivesse a coragem para enfrentar outras religiões, outros deuses, outros líderes religiosos. No local onde nasceu uma das mais antigas civilizações da História da Humanidade, a Mesopotâmia, e onde a imensa planície cortada pelos rios Tigre e Eufrates, ao longo dos quais se implantaram cidades importantes como Ur, Uruk, Larsa, Lagash ou Uma, o Papa Francisco reuniu- -se com os líderes muçulmanos, sem temor, e pediu a todos para serem portadores da mesma mensagem de amor, paz e humildade que o cristianismo apregoa. Ali, na terra de Abraão, todos ouviram e interiorizaram a mesma mensagem. Uma mensagem apregoada em pleno deserto. Na verdade, os presentes eram poucos. Resta saber se estavam interessados em ouvir o que Francisco disse. Quando soou a 9ª Sinfonia de Beethoven, Francisco desceu e pisou solo iraquiano. Pela primeira vez um Papa cristão pisava solo do Irão. Ali mandam os Aiatolas. Mandam muitos e todos querem mandar. Muitas vezes não se entendem, mas isso será problema deles. Francisco levava somente uma mensagem e disse-a. “Calem as armas”. Num país onde a guerra é quase constante, é difícil calar as armas e falar de paz. Francisco teve essa coragem. Em Bagdade celebrou a primeira missa na igreja de S. José, onde escasseava a audiência. Foi celebrada em quatro línguas para que todos entendessem a mensagem. Inesperadamente, até o primeiro-ministro apareceu para assistir. Sinais dos tempos? Duvido. Para o Papa Francisco, desta visita, ficará certamente uma sensação de ter pregado no deserto, já que na realidade esteve em pleno deserto em reunião com os líderes muçulmanos, teve pouca audiência na missa de Bagdade e não sabe se a mensagem foi entendida e bem aceite. Fica uma sensação diferente na missa de Erbil, capital do Curdistão, onde esteve perante cerca de dez mil fiéis. Aqui sentiu-se, certamente, em casa. Talvez este ato de Erbil, possa servir de incentivo para uma aceitação dos cristãos em terra de infiéis e onde têm sofrido perseguições e atentados de toda a espécie, como se fossem culpados por acreditar numa religião diferente e muito mais poderosa. Para o mundo, a visita do Papa Francisco foi demasiado arriscada. Um enfrentamento entre religiões opostas e praticamente inimigas, talvez não fosse aconselhável, mas Francisco nada temeu. Seguro das suas decisões e acreditando nas suas razões, enfrentou tudo e todos e nem o olhar desconfiado de alguns líderes muçulmanos, o incomodou. Respondeu sorrindo. Perante a desconfiança ele exibiu segurança e firmeza na crença e na Fé que deve mover os interesses dos homens, independentemente das raças e dos credos. Desafiou-os a calar as armas e a arvorar a bandeira da paz, do amor e da amizade. Ficaremos à espera e veremos se a semente que Francisco levou no bolso não caiu efetivamente em solo desértico e improdutivo. A esperança é que, mesmo pregando no deserto, a semente frutifique no coração dos homens.

Primavera

Em 1963, o eclético Luís Sttau Monteiro escreveu o livro Todos os anos pela Primavera, forte crítica ao regime salazarista, que o estimado Nuno Álvaro Vaz passado algum tempo fez o favor de o retirar do limbo dos reservados vendendo-mo embrulhado em papel anónimo que, segundo o escrito que nele coloquei foi no ano de 1964. Li o escalofriante libelo num ápice para depois circular através de mãos seguras e cautas, hoje repousa ao lado de outros do mesmo autor que anos mais tarde conheci em ambiente de melhor qualidade, até festivo num restaurante da Avenida Visconde Valmor, em Lisboa. Noutro registo, noutras paragens, tive a felicidade de assistir ao bailado A Sagração da Primavera, do genial Stravinsky. A Primavera que recordo é a vivida nos anos felizes, logo bem fruídos em Lagarelhos e Bragança, balizados pela frigidez do autoritarismo bafiento do Botas de Santa Comba e a majestade dos quadros da Mãe Rússia de Igor, a evidenciarem a dualidade Bem e Mal que nos marca a vivência na justa medida da nossa intervenção nesse mesmo devir. Por isso mesmo, os leitores que ao longo dos anos fazem o favor de lerem aquilo que escrevo sabem quão gosto de discorrer sobre o que observo, perscruto, o que vejo, ouço, provo, tacteio e cheiro. E, neste tempo de calafrios, ameaças invisíveis a redundarem em sofrimento facilitador da tarefa da Senhora da gadanha, a toda a hora, a todo o momento, só encontro apaziguamento na leitura, na audição, na escrita. Nada mais. Tempos medonhos a separarem-me de entes queridos por que assim o determina o bem comum embora esta noção de bem comum não passe de filosofia de pacotilha para lamentação jerumiada no decorrer de, ocasionais encontros, nos peripatéticos passeios em redor da casa. A primavera pautava em quatro andamentos do esfusiante bailado das andorinhas a anunciarem tempo para amarmos perdidamente a iniciar-se na festa das Laranjas junto à capela de S. Lázaro, a prosseguirem excitados até às férias pascais, o jejum dos interditos eram os dias sem aulas, prosseguiam entre zumbidos de insectos bisbilhoteiros no Mês de Maio, o mês mariano da novena na Sé onde a algazarra provocada pela colocação do cinto, dos cintos, representavam a utilidade dos normativos em uso e, quando quebradas as amarras o clamor gerado corria montes e vales pontilhados de flores até chegarem às casas paternas semeando, discórdias, lágrimas e suspiros, ao exemplo do drama filmado por Ingmar Bergam. A Primavera findava num tropel de amplexos sussurrados de amor ao estilo de Romeu e Julieta visto o ano lectivo ter findado e, outro confinamento repleto de dúvidas e raivosas ciumeiras principiava. Na altura, a maioria de nós desconhecíamos as atrocidades dos esbirros da PIDE, menos ainda a obra maestra do compositor russo amante da liberdade, os ardores dos três meses de Inferno exibiam- -se nos troncos nus dos ceifeiros e nos braços níveos motivadores dos conceitos de sangue azul das senhoras frequentadoras da missa das seis. Não enfado mais os estimados leitores afirmando quão me custa sentir e ouvir este eterno retorno da vacinação e ouvir a gaguez da ministra Temido, a charamela de Graça Freitas, ficar entorpecido pelos gráficos de Marques Guedes e o ora não advogado Júdice, a blasfemar contra os revisionistas da história (ainda bem que não sabem onde param as calças do desditado Gungunhana), sem esquecer os brados e remoques de uma senhora «científica» a entaramelar dogmaticamente o significado de racismo afirmando ser de via única do homem branco, nunca podendo ser do homem negro ou amarelo contra os brancos. Ou a senhora viajou pouco ou então é vesga, visgarolha como se dizia na vetusta cidade do Braganção. Vá ao Gana, à Costa do Marfim, ao Senegal, a Moçambique (no Maputo senti-o bem mais pesado do que na Bronx) ou na África do Sul. A pandemia leva-me a conceder atenção aos detalhes (boa sorte Carlos Moedas), não o faço gostosamente, faço- -o socavando reminiscências possivelmente serôdias, só que o vírus tem esse condão, ao invés dos esquecimentos do ministro de fala atabalhoada a prometer computadores e vacinas aos professores imitando os vendedores de atoalhados, colchas e cobertores no Toural ao preço da uva mijona origem de zurrapas vendidas ao balcão pelo Senhor Cipriano Augusto Lopes, o Verbo, opositor do Estado Novo nas quatro estações do ano, mesmo de madrugada quando gabava as virtudes de uma peça de duvidosa autoria do Mestre Rafael Bordalo Pinheiro.

O fim do mundo

Assim de repente, contei cinco. Vinham a subir umas escadas de cimento quando os comecei a ver. Acho que estavam a sair de um parque de estacionamento subterrâneo. À frente vinha uma mulher loira. Calças de lycra pretas. Um top justo, algures entre o rosa e o vermelho. Por cima, um casaco fino largueirão exactamente da mesma cor, descaído casualmente, a condizer com toda a indumentária, no ombro direito. As sapatilhas de corrida deram mais jeito do que o previsto, uma vez que estavam a tentar escapar de uma invasão de extraterrestres. Uma das mulheres do grupo foi apanhada, entretanto, por entre gritos e correrias. Era uma espécie de polvo, mas biónico, que emitia sons que faziam lembrar morsas. Mas também ela estava impecavelmente vestida. Calças de ganga e um blusão de cabedal castanho. O resto não vi muito bem, porque rapidamente foi sugada pelo ser biónico de outro mundo. Nunca entendi muito bem esta fixação dos aliens em matar os terráqueos. A não ser no Marte Ataca!, porque aí é claro que os marcianos têm só um sentido de humor retorcido (talvez não fosse a melhor altura para vos lembrar disto, mas agora já está). Voltando ao que vos estava a contar, os restantes safaram-se. Entraram, por uma unha negra, num prédio. Foram para um apartamento. E lá deu para ver que a loiraça tinha o cabelo imaculado, mesmo tudo indicando que estava a fazer a sua corrida matinal antes, e a maquilhagem incrivelmente no sítio. Isto, sim, era um anúncio para vender cosméticos - aqueles que sobrevivem, até, ao apocalipse. Acho que o final do filme não é muito feliz. Mas também essa não é a questão. A questão verdadeira é: estamos prontos para saber o que vestir, quando chegar o fim do mundo? A sério. Quando tivermos que fugir, levar só o indispensável (que é esse belo couro e pouco mais). Saberemos nós estar à altura de todas as películas que vimos, onde toda a gente aparece com aquele look casual-chic-super-confortável-para-lutar-pela-vida? Ou, mesmo que não seja, rapidamente se converte. Rasga aqui, corta ali, atira fora os sapatos de festa de salto agulha e calça umas botas da tropa arrancadas a um cadáver, que calha ser o nosso número. E faz envergonhar muitos designers ou costureiras mais habilidosas. Mais do que saber que é preciso assaltar uma farmácia, para roubar antibióticos, ou que a água que fica no autoclismo é boa para beber, é importante pensar na indumentária. É melhor levar um casaquinho para a noite, mesmo se for Agosto? As nossas mães diriam que sim. Cabedal é sempre bom, dá um ar de durão, mais uns óculos de sol marotos. Mas, se for Verão, é capaz de fazer transpirar. E a moça desse filme que vi não se safou nada bem, mesmo com a coberta janota. E, se o fim do mundo demorar muito a passar, como vamos fazer com depilações, unhas ou raízes descobertas? Ou barbas e cabelos à náufrago? E onde vamos arranjar espaço para a maquilhagem, cremes e produtos de higiene no meio da mochila ridícula onde só já há latas de comida de gato, frascos de feijão manteiga e meia dúzia de antibióticos fora de prazo? Sabem? Acho que não estou preparada, ainda, para o fim do mundo. Mas, se tiver mesmo que ser, pelo menos que não me apanhe com o pijama enfiado.

O reconhecimento de assinaturas no contrato-promessa de compra e venda! Não é opção, é Obrigação

O contrato-promessa de compra e venda é bastante comum em Portugal, pois é recorrentemente estabelecido para acordar a futura compra de um imóvel. Apesar de não ser obrigatório, ele é importante para garantir os direitos e deveres dos envolvidos no negócio, já que permite formalizar, com rapidez, um documento vinculativo entre o promitente-vendedor e o promitente-comprador sempre que haja vontade de comprar/vender, mas ainda não se encontrem reunidas as condições necessárias para a realização da escritura pública, como são os casos em que a construção do imóvel ainda não se encontra concluída, o comprador ainda aguarda a aprovação de financiamento bancário, o imóvel não dispõe de licença de utilização, entre outros. Como qualquer outro contrato, no promessa de compra e venda há regras a seguir. E apesar do princípio da liberdade contratual, que permite que as partes estabeleçam as regras que bem entenderem, essa liberdade tem limites e, se a lei impõe, é para cumprir. A grande imposição dos contratos-promessa respeitantes à celebração de contratos onerosos de um edifício ou fração autónoma já construídos, em construção ou a construir, prende- -se com a obrigatoriedade do reconhecimento de assinaturas dos contraentes. Então, se a lei impõe, porque insistem as partes em afirmar que “prescindem do reconhecimento de assinaturas “? Por falta de conhecimento?! Porque o amigo fez assim, e não teve problemas?! Porque a agência imobiliária diz que não é necessário?! Porque vão gastar dinheiro?! Importa esclarecer que a falta de reconhecimento de assinaturas torna o contrato nulo, ou seja, em termos práticos é inválido e não produz efeitos, na medida em que a forma legal foi inobservada. Trata-se, no entanto de uma nulidade atípica, uma vez que é invocável apenas pelos contraentes interessados e, quanto ao promitente-vendedor, só quando a omissão (não reconhecimento de assinaturas) tenha sido culposamente causada pela outra parte. Entende-se que seria injusto que essa nulidade pudesse ser invocada por quem deu causa a falta de reconhecimento de assinaturas, ou seja, quem provocou essa situação. Sempre que assina um contrato-promessa de compra e venda, tenha em conta que este não é apenas um papel, é uma convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato e, se é certo que tudo pode correr bem, também é certo que muitas vezes corre mal. Sendo a compra de uma casa uma decisão financeira tão importante, lembre-se que quanto mais protegido estiver, melhor. Não negligencie os seus direitos. Informe-se com profissionais habilitados para o efeito, podendo sempre contar com o auxílio de um solicitador.

Cristela Freixo

Não o reconheci!

“Este rosto éme completamente desconhecido.” Eis a fórmula, que agora pode substitui a inversa, a de antigamente quando encontrávamos uma pessoa raramente vista mas algo familiar, arriscamos a fórmula que funciona sempre, hoje inusitada desde que o Covid a impediu, e aboliu mesmo as nossas capacidades de visão e reconhecimento facial: “Esta cara não me é desconhecida”. Por pouco que os fulanos encontrados na rua consintam em equipar a parte inferior do rosto com a famosa “máscara” que se tornou o tema central das nossas conversas e o centro das nossas preocupações, ninguém vê ninguém quando nos cruzamos. Não passam de testas mais ou menos cheias, rugas sem significado, têmporas estriadas pelos elásticos de diversas cores, orelhas contidas, óculos embaciados que deslizam pelo nariz. Bochechas ausentes, nem cheias, nem magras. Cabelos ao vento como se procurassem o caminho. Por conseguinte, os nossos contemporâneos, através do rosto, perderam uma grande parte da sua personalidade e, poder-se-ia dizer, o essencial do envelope corporal. Diógenes que procurava um homem ter-se-ia talvez perdido completamente no meio da multidão e só teria encontrado silhuetas sem asperezas. Com a dissimulação dos traços que nos destinguem, só vemos zombis similares. Nos tempos felizes anteriores ao Covid e da invenção dos “ gestos -barreiras”, cada encontro era a ocasião duma nova descoberta dos nossos semelhantes através do olhar. Parecia-nos ter a ilusão de ver desde logo de quem se tratava. Rostos abertos joviais e simpáticos, semblantes fechados, caras bonitas, boa pinta, rostos bondosos, caras lisas, peles de pêssego, marcas de antigas borbulhas, artifícios à base de UV, peles envelhecidas, tudo era rosto. Os rostos tinham um carisma; e que belos rostos por vezes! Assim, sem forçosamente gostarmos de toda a gente gostávamos de nos ver uns aos outros, nas nossas semelhanças. Hoje escondemo-nos uns dos outros como ladrões que procuravam fazer-se perdoar pelos delitos cometidos. O que procuramos dissimular com esta invisibilidade organizada e universal dos nossos rostos? Restam os olhares alcançados pelos únicos sobreviventes deste imenso jogo nacional de esconde-esconde. Confirmam ao mesmo tempo a sua utilidade, por vezes o factício do que aparentam revelar. Cruzam-se todo o tipo de olhares. Os das crianças, estupefactas, nos seus carrinhos, por cima do tecido, qualquer coisa de humano. Há olhares acolhedores e amáveis, encorajadores nos piscares da pálpebra em forma de convidados. Outros completamente bloqueados, como se proibissem a passagem a uma qualquer intimidade. Há olhares duma indiferença granítica e duma frieza de ciclope. Estes olhos, única parte visível do iceberg dos rostos, transportam todos os sentimentos de que ainda somos capazes. Por vezes distinguimo-los húmidos ou orvalhados, marcas do drama duma vida. Cruzamos olhares brilhantes, traços de intensos momentos de felicidade. A verdade da observação é que a maior parte parecem apagados duravelmente, como desligados. Nem nos fixam um momento que seja. Deslizam como a água nas penas dum pato e passam a outra coisa. Já não se troca qualquer tipo de amabilidade através dos olhos, apenas sentimentos pesados que traduzem mais o desespero do que a alegria do encontro. Olhares mauzinhos abatem-se sobre os que não trazem máscara. Olhares enfurecidos quando por inadvertência uma pequena falha lhes molha o vestido ou o casaco. Contudo sejamos objetivos e não tenhamos um olhar unicamente negativo sobre as pessoas que cruzamos nestes tempos de pandemia. Vemos também muitos olhares simpáticos e mesmo divertidos, alguns que só esperam a possibilidade duma pequena conversa como no balcão dum bar. Não, o que mais falta faz ainda, na impossibilidade de mostrar o rosto completo, são sobretudo os sorrisos. A qualidade do olhar nunca poderia compensar a força e pertinência dum sorriso acompanhando os lábios na sua manifestação de contentamento. O sorriso é o que mais falta faz à nossa sociedade, aos nossos contemporâneos mascarados, fantasmáticos. Poder-se- -ia imaginar um mundo privado do sorriso até ao fim dos tempos? Seria um inferno de glaciação relacional. Uma ausência total de intercâmbio de sentimentos positivos nas relações interpessoais. O universo sem sorriso seria inabitável, mal-humorado. Sufocante. Como é que as crianças poderiam adivinhar que a vida tem o seu peso grande de alegria quando não poderiam nunca mais ver desenhados os sorrisos dos pais?

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Depósito dos bens de João da Costa

Uma das profissões mais comuns entre a gente da nação era a de sapateiro. Mas não se pense que era uma profissão menos digna, do ponto de vista económico e social. Antes pelo contrário. Feita esta prévia observação, vamos apresentar duas famílias de sapateiros que se uniram, em vários casamentos e cujo prestígio cresceu, ao longo de gerações. Uma dessas famílias foi a dos Vinagres, de Vila Flor e outra dos Raba, de Bragança. Gonçalo Lopes Vinagre nasceu em Vila Flor, por 1594. Casou com Maria Lopes, da Torre de Moncorvo, assentando o casal a morada em Vila Flor, onde Gonçalo exercitava a arte de sapateiro, quando foi preso pelo santo ofício, em 1664. (1) Eles foram os pais de Inês Lopes, que vamos encontrar de seguida. Um irmão de Maria Lopes chamava-se Luís Lopes Tinoco e era casado com Catarina Martins. Viveram em Torre de Moncorvo e neste casal de Moncorvenses entronca a família dos Raba. (2) Por outro lado, temos a família de Mateus da Costa, sapateiro e sua mulher, Ana Furtada, que viveram em Bragança e foram os pais de João da Costa, o nosso protagonista, sapateiro de profissão. João da Costa era irmão de Isabel Rodrigues, a qual casou com Francisco Nunes, o Raba, igualmente sapateiro e morador em Bragança. Isabel e Francisco foram presos pela inquisição em 1660, acabando este por falecer na cadeia em 28.6.1660 … Mas a sentença apenas foi lida 23 anos depois, no auto-da-fé de 4.2.1685! (3) Fiquemos então em Bragança, nos anos de 1665, quando ali se desenvolvia uma vasta operação de limpeza da heresia judaica, lançada pela inquisição. Contava Inês Lopes os seus 18 anos e estava solteira, quando, em Fevereiro daquele ano, se meteu a caminho de Coimbra, a apresentar- -se no santo ofício para confessar culpas de judaísmo. (4) Foi mandada regressar a casa e mais tarde foi chamada para ser processada e sentenciada pelo mesmo tribunal, saindo no auto-da-fé de 26.5.1669, condenada em cárcere e hábito e sequestro de bens. O mesmo caminho seguiu João da Costa, em Outubro de 1668, quando contava 37 anos e se mantinha solteiro. (5) Regressou a casa para mais tarde ser chamado, saindo penitenciado em 23.3.1683, estando já casado com Inês Lopes. E além de sapateiro, João metera-se a tendeiro. Baltasar da Costa e Luísa da Costa eram filhos de João e Inês. Casaram com dois irmãos, Maria de Oliveira e Domingos Lopes de Oliveira, respetivamente, filhos de João Lopes (Vinagre), o Regalado de alcunha e Leonor de Oliveira, ambos nascidos em Vila Flor e que em Mirandela formaram casa. Eles não eram já sapateiros como os pais, mas fabricantes de tecidos de seda, uma profissão bem mais prestigiante. Todos eles, em nova operação de limpeza étnica, experimentaram também a justiça inquisitorial, com destaque para Domingos, aliás, Jacob, que foi queimado no auto de 16.6.1720. (6) Não vamos agora analisar os seus processos porque o nosso objetivo é o sequestro dos bens de João da Costa, que saiu penitenciado em 23.3.1683. Vejamos então o que pudemos apurar sobre a execução deste sequestro e a entrega do dinheiro que se apurou aos depositários do fisco em Bragança Gonçalo Pires, ferrador e Miguel Rodrigues. Antes de prosseguirmos, diga-se que a nomeação dos depositários do fisco competia à câmara municipal, cujo presidente era o juiz de fora, o qual dirigia também a execução dos sequestros. Por esse tempo, o juiz de fora em Bragança era o Dr. André de Morais Cardoso, natural de Freixiel, Vila Flor, licenciado em cânones (direito) pela universidade de Coimbra, em 1679. (7) Quanto aos depositários Gonçalo Pires e Miguel Rodrigues, não conseguimos elementos de identificação mas seriam homens de muito crédito e avultados bens, para garantir os depósitos do fisco, conforme exigência legal. A primeira entrega ao depositário Gonçalo Pires foi feita por Bastião Rodrigues, em 22.12.1683, na casa do juiz de fora e na presença deste, com Francisco Correia a escrever o respetivo auto. Bastião Pires arrematara uns bens móveis de João da Costa pelo valor de 66 000 réis, que entregou. Gonçalo Pires ficou apenas depositário de 64 724 réis, porque 436 rs ficaram na mão do juiz de fora por presidir ao inventário e numerar o livro da receita; 640 foram para o escrivão do auto e 200 rs foram para a compra do livro. Um segundo depósito foi feito em 1.4.1685, no montante de 6 250 rs, por José Correia em mão de Miguel Rodrigues. Uma terceira entrega de dinheiro foi feita por Pedro Afonso, depositário do fisco em Miranda do Douro, que os recebera de António Colmeeiro de Morais, na qualidade de herdeiro do falecido capitão de infantaria Vicente Sousa Pereira, que os devia a João da Costa. Este facto é bem elucidativo da minúcia dos confiscos por parte da inquisição. E não foi apenas em Miranda do Douro que o fico cobrou dívidas de João da Costa. Registamos mais de duas dezenas de localidades trasmontanas onde foram cobrados dinheiros em dívida a João da Costa. E até mesmo em Castela, nas localidades de Lobios e de Belmont, termo de Ourense. Esta relação de dinheiros entregues estende-se por 7 páginas do livro, contando-se quase duas centenas de devedores, no montante de 392 058 réis. Não é verba que espante, diga-se. As diligências da recolha, é que terão sido muitas e insistentes. Àquela quantia deverão acrescentar-se 31 864 réis que foram entregues, no ano seguinte, de 1686, ao depositário Gonçalo Pires, “novamente nomeado”. Entre aquelas duas centenas de pessoas que deviam dinheiro ao tendeiro João da Costa, contamos gente da nobreza, como Lázaro Jorge Figueiredo, o Dr. Lobo Maris, António Colmeeiro de Morais... Entre os 16 padres, de várias freguesias, algumas bem distantes, que aparecem a pagar dívidas, cite-se o reitor da igreja de Santa Maria, o reitor António de Távora e o reitor de Babe. Outra classe profissional com alguma representação é a dos militares, aparecendo meia dúzia de graduados e uma dúzia de soldados. E até aparece uma dívida de 2.900 réis, de um sargento de infantaria da praça de Miranda do Douro. De resto, não sabemos, por na relação aparecerem apenas nomes de pessoas e a quantia em pagamento. Raramente se identifica também a causa da dívida e, por isso, não podemos fazer uma avaliação, mesmo grosseira, das capacidades económicas de João da Costa, nem das características da sua “tenda”, já que apenas se referem meia dúzia de produtos como ferro, aço, milho serôdio, baetas, meias de seda, manteiga e açúcar. João da Costa tinha, pelo menos, duas casas. Uma delas, sequestrada pelo fisco, foi arrendada a António da Costa, seu irmão que, pela renda de 2 anos, pagou 9 mil réis. A outra terá sido arrendada por João da Costa, antes de ser preso, ao Dr. Francisco de Morais Sarmento que nelas fez benfeitorias no valor de 37 mil réis. Depois que a casa foi sequestrada, o fisco arrendou-a a Roque de Novais, para nela viver Inês Lopes, mulher de João da Costa. E então, quando se estava tratando da liquidação dos bens sequestrados a João da Costa, em 22.11.1685, em ato presidido pelo juiz executor do fisco, vindo da cidade de Coimbra, apareceu o Dr. Francisco Morais Sarmento e pedir o reembolso de metade do custo das benfeitorias, 15.415 réis, por parte de Inês da Costa que recebera as rendas. Esta pagou sim, mas apenas 840 réis, argumentando que lhe pertencia pagar apenas do tempo da sua meação. Sim, a inquisição condenou João da Costa em sequestro de bens. Mas a sua mulher tinha direito a uma parte e para defender os seus interesses nomeou procurador a seu sobrinho José Rodrigues Nunes, o Raba, que, na década seguinte seria também preso e condenado a sequestro. Veremos no próximo texto.