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Abençoado populismo! Benditos populistas!

Parafraseando aquela engraçada adivinha da pescada, pergunto: quem será o candidato à Presidência da República, que antes de o ser já o é? A resposta é óbvia: Marcelo de Sousa, um presidente sempre presente, contente e sorridente, embora tenha mais que chorar do que rir. Com o descalabro da Saúde, por exemplo, e a vergonhosa falência da Justiça, que atafulha esqueletos nos armários. É óbvio que se Marcelo de Sousa honrar a coerência e lisura que dizem ser seu timbre abandonará o cargo presidencial no final do presente exercício porquanto, quando em 2014 analisou, na televisão, os oito anos da presidência de Cavaco Silva, defendeu categoricamente que “o próximo presidente”, fosse quem fosse, não deveria candidatar-se a um segundo mandato. Não pensava, na altura, por certo, que o próximo seria ele. Marcelo de Sousa, porém, não está só nesta matéria. É seu “companhon de route” António Costa que declarou, em 2009, “não haver partido à esquerda que merecesse credibilidade para uma coligação com o PS” e qualificou o Bloco de Esquerda como «um partido oportunista que parasita a desgraça alheia e incapaz de assumir responsabilidades». Ironia do destino: o BE viria a constituir-se, pela mão do próprio António Costa, num dos esteios da “geringonça”, a sua tábua de salvação. Já que à rede veio pescada também as pescadinhas de rabo na boca merecem ser citadas. Senão vejamos: o PCP, fiel aos seus sacrossantos preconceitos, acaba de anunciar João Ferreira como o candidato da praxe. O BE idem aspas: recandidata a candidata anterior como se de um fetiche se trate. Fica-se com a ideia de que o que verdadeiramente pretende é renovar a registo de Marisa Matias em Bruxelas. No PS repete-se o escabeche do costume, o que levou Ana Gomes saltar fora do covil socialista. Já o PSD de Rui Rio continua com o motor gripado, à espera do reboque do PS. PS e PSD que têm um objectivo comum: repartir os privilégios e mordomias que o Regime lhes confere, sendo que só o populista pró-sistema Marcelo de Sousa os une nessa antidemocrática função. Concluindo: andam todos a morder os rabos, como as populares pescadinhas. Falta saber quantos do PS irão votar em Ana Gomes, quantos do PSD e do CDS irão votar em André Ventura e qual destes será capaz de seduzir maior número de abstencionistas, passar à segunda volta e eventualmente destronar Marcelo de Sousa. Cenário que não é de todo despiciendo face à imprevisibilidade reinante na política nacional. Poderemos contudo admitir que se a populista Ana Gomes for eleita nenhum mal virá ao Regime ainda que a “geringonça” possa voar mais alto nos céus socialistas e só aterre na Venezuela. Mais incerto é o que acontecerá se o populista André Ventura for eleito, ainda que o presidente da viciosa república lusitana não tenha mais poder que a decorativa rainha de Espanha. Será que PCP e o BE passam à luta armada? Instalar-se-á uma guerra civil em Portugal? PSD e PS coligar-se-ão, finalmente, para defender o Sistema? Ou será que tudo vai continuar como está, com o Estado transformado numa monstruosa pescada que morde o próprio rabo, servida com arroz de malandros, o prato predilecto dos lambões do erário público? Imbróglio que só os eleitores que o mais lídimo populismo nacionalista conseguir mobilizar, poderão desfazer. Abençoado populismo! Benditos populistas! São a nossa derradeira esperança!

O máximo e o mínimo

S egundo Máximo dos Santos, Vice-Governador do Banco de Portugal e Presidente do Fundo de Resolução, depois do esforço já feito no auxílio ao Novo Banco, seria dramático comprometer todo o encargo já suportado, recusando as últimas transferências a que, de acordo com o contrato de venda, a Lone Star pode ainda reclamar. Pôr em risco a estabilidade da entidade bancária, sucessora do tristemente célebre BES, seria um desastre total. Será razoável que, depois de milhares de milhões de euros entregues ao Fundo Financeiro norte-americano, colocar em risco a estabilidade do frágil (apesar de tantas notícias, num passado recente, a dizerem exatamente o contrário) sistema financeiro, por menos de uma injeção inferior a mil milhões? E que, ainda por cima, será a última? Porque não se entrega aos gestores do Banco a totalidade do valor acordado e se enterra de vez o problema? Porquê andar agora a levantar ondas, com a praia á vista e com a fundada expectativa de acabar de vez com a sangria com que os recursos públicos tem sido castigados nos últimos anos? Pois se o contrato de venda já previa essa possibilidade... Assiste alguma razão, a Máximo dos Santos... mas não toda! Por duas razões. Em primeiro lugar é preciso esclarecer que são coisas muito diferentes prever uma possibilidade e estabelecer uma inevitabilidade. Se o contrato de venda previa compensações que poderiam, no pior dos cenários, atingirem um determinado valor é porque ambos, comprador e vendedor, concordaram que, sendo esse um possível limite, havia várias outras perspetivas, inferiores a tal montante. Por outro lado, e bem mais importante, a “ameaça” ou mesmo perspetiva fundada de uma falha de pagamento, previsto e autorizado, provocar grave distúrbio ao Banco e ao sistema onde está inserido não pode servir de justificação para que tal seja aceite de forma imediata e acrítica. Seja dramático ou não, esteja previsto ou não, o pagamento só poderá ser devido se, devidamente justificado. É preciso estar seguro que as complexas operações e justificações que servem de base para a reclamação de mais uma e generosa injeção de capital, são verdadeiras, honestas e razoáveis. Seja qual for o risco associado à recusa de pagamento, o mínimo que o senhor Máximo deve fazer é garantir que a fiscalização do Fundo a que preside e cujo capital é suportado pelos contribuintes, é efetiva, adequada e exigente, independentemente das suas consequências. É certo que quer o Presidente do Banco, quer o próprio Lone Star já vieram garantir que todas as operações efetuadas, mesmo aquelas que custam a compreender, a entender e, sobretudo, engolir, foram visadas e autorizadas pelo Fundo de Resolução. Pois é, mas isso só serve de justificação válida se o tal Fundo, presidido pelo senhor Máximo, pelo menos assegura o mínimo, na defesa intransigente e completa dos interesses dos cidadãos. Se o faz, então que o demonstre... Porque também aqui se aplica o milenar aforismo da mulher de César... Principalmente depois de a pergunta mais óbvia e natural, que anda na boca de toda a gente, políticos, financeiros, estudiosos e especialistas, obtém do responsável pela fiscalização porque se não fiscaliza, então a aprovação é uma mera assinatura de cruz e não pode servir de justificação da justeza e adequação) obter como resposta um claro “não sei nem poderei saber, eu não sou o Sherlock Holmes...” Pois se não é, contrate quem seja. De outra forma que garantias temos que a solução proposta e cujo preço preenche, na totalidade, os requisitos do pior dos cenários... é adequada e inevitável, necessária a impedir o desastre total da operação que, desde sempre foi garantido ser a única que não traria qualquer encargo para os contribuintes?

Perseu

Evoquei, já, a importância de dois livros no meu despertar para a literatura: Narrativas e Lendas da Antiga Grécia (1956), de Nathaniel Hawthorne, e Coração, de Edmondo De Amicis. Recebi-os de uma prima, em 1961, tinha eu cinco anos, quando começava a ler. No limiar da tese de doutoramento, salientei Cuore, mas A Wonder Book perseguia-me. Assim, quase sessenta anos depois, pego nessa tradução (que há muito mandei encadernar, e não doei, com outros oito mil volumes), da qual sai, a abrir, “A cabeça da górgona”. Não me recordava disto, ao encadear 14 sonetos sobre Perseu, que dá título ao recente livro de poemas (Fafe: Editora Labirinto, 65 páginas). Mas é certo que, num escaninho da memória, esse herói me acompanhou durante décadas. Em ficção e estudos sobre a crónica, eu já aproveitara alguns feitos de Zeus. Terei acordado o meu herói à leitura, nos 25 anos, de André Bonnard, Les Dieux de la Grèce, tão extraordinária era a história de Perseu, com tanto de Bíblia como de Camilo Castelo Branco, e remissão para Édipo, mas sorte diferente. Retorna em 1992, pois o segundo capítulo de Mitologia Clássica. Guia Ilustrado, de A. R. Hope Moncrieff, trata de Perseu, nas cores de Ticiano e E. Burne-Jones. A Editora Labirinto dá na capa Perseu com a Cabeça da Medusa, de Antonio Canova, um neoclassicismo sereno que simplifica igual título do clássico Benvenuto Cellini, longe da imagem terrífica da górgona. A história é simples: o rei de Argos ouve de oráculo que um descendente vai assassiná-lo. Encerra a filha, guardas em volta de entrada cuja chave traz consigo. Zeus metamorfoseia-se em chuva de ouro e gera criança. Respeitoso do deus, o rei poupa filha e neto, que lança em barca frágil. Salva-os pescador, irmão de rei que, autoritário, sonha desposar aquela. Na tensão entre irmãos (já se adivinha qual ganha), e para afastar Perseu de uma decisão desfavorável, confia-lhe missão impossível: matar Medusa, cujo olhar petrifica mortais. Ajudado por Hermes e Atena, essa é só a primeira aventura, com manhas e pormenores que não descrevo. Mas a cabeça sabiamente cortada vai servir para acabar com a raça do rei mau e salvar a mãe, entretanto refugiada no templo de Atena. A segunda aventura é salvar Andrómeda de um monstro, com ela casar e subir ao céu. Acontecem outras, mas corramos ao final: durante uns jogos, falha um lançamento de disco e mata, involuntariamente, o avô, cumprindo-se oráculo. Recusa o trono de Argos, governa Tirinto (ou Tirinte) e funda Micenas. Persée é uma entrada do Dictionnaire des Symboles, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, que não acolhe muitos outros heróis, mas falha ao curar da «complexité de la relation père- -fils, fils-père, existant en tout homme». Ora, Perseu não tem problemas com Zeus pai, nem com o avô, cuja fatalidade é de outra ordem. E vencer, sobre um Pégaso alado, a Medusa – «image excessive de la culpabilité –, não significa vencer uma culpabilidade própria, mas, sim, «acquérir le pouvoir de se regarder soi-même sans défomation». Curar de «vanité» e de «ses propres monstruosités» (que não podemos extrair da vitória sobre o monstro desejoso de Andrómeda) sobre que Perseu triunfou é adulterar o mito de alguém esforçado, que nem o destino atropela (como se deu com Édipo), já recusando o fácil (Argos), já erguendo cidade do nada (Micenas). Eis a narrativa de um amadurecimento, sobre que os versos também evoluem. Outras considerações roubariam ao leitor o gozo de pequenas descobertas. Valha dizer que os sonetos deste livro (e só um texto não é soneto), conjugados com a variedade da penúltima selecção – Do Movimento Operário e Outras Viagens (2013) – completam a imagem que me faço da poesia, subida, afinal, das brumas da infância.

Antropocêntrico

Vi por duas ou três vezes na national geographic um programa chamado os Irwins. Nele uma voluntariosa família australiana corre o país em operações de resgate de animais feridos ou em perigo, que inclui centros de acolhimento, tratamentos, cirurgias e restituição ao meio natural sempre que possível. Tudo devidamente acompanhado por apaixonados beijos e abraços aos bichos por parte dos Irwins. Não duvido das boas intenções, porém delas está o inferno cheio e a mim aquilo parece-me ser o resultado de consciência pesada pelas patifarias que per saecula saeculorum lhes temos andado a fazer. É justo sentir culpa quando fundamentada: uma das bases da nossa civilização reside na convicção da superioridade do homem relativamente aos outros animais, meros objetos para nosso usufruto. Juízos em causa própria que têm servido de justificação para os matarmos a fim de lhes comermos a carne, vestirmos a pele e os considerarmos fonte de inúmeras matérias-primas, os tirarmos aos montes, domesticando-os, para nos protegerem e servirem, os escravizarmos nos trabalhos mais pesados, os cruzarmos entre si, criando raças que satisfazem os nossos caprichos, os enjaularmos e exibirmos como objetos de diversão, os usarmos para descarregar neles ódios e frustrações, os submetermos a torturas indescritíveis na pesquisa científica, os privarmos mesmo do direito à existência provocando a extinção de espécies inteiras. Muitos povos, partindo do princípio da sacralidade e da dignidade de todos os seres vivos sem exceção, desconhecem aquela hierarquia. O caso mais conhecido são os hindus, mas há outros. Em certas culturas tradicionais, de cada vez que se mata um animal para alimentação ainda se faz uma cerimónia em que se lhe pede desculpa por esse ato repleto de cinismo (como lhe chamou o filósofo edgar morin) que consiste em tirar a vida a um ser para a dar a outro. Nós consideramo-los um estorvo à expansão e à loucura humanas, enclausuramo-los em campos de concentração a que chamamos jardins para os protegermos da sua única ameaça, nós próprios, e em nome da ciência fazemos com eles muitas coisas que têm a marca da arrogância e do preconceito antigo. Inclusive, as relações na aparência mais benignas exibem aquela atitude preconceituosa básica. Passará pela cabeça da malta do pan que a expressão “animais de companhia” assume que o papel deles é satisfazer uma necessidade humana sem que alguma vez a sua vontade seja tida em conta? Por mais que os apapariquem, ocorrer-lhes-á que obrigá-los a vegetar em apartamentos significa negar-lhes o direito à liberdade no seio da natureza e de acordo com as suas leis? Quais serão os seus sentimentos sobre isso? O que nos diriam se os pudessem exprimir? Tal como muitos outros, os Irwins são sem dúvida sinais de civilização, mostras de que a consciência e o desejo de proteger estão a despontar. É melhor que nada, e por este andar talvez um dia se venha a pedir perdão à bicharada por tanto abuso, como agora se faz com os descendentes dos escravos. Mas eles parecem-me fazer parte de uma vaga de gente citadina “ambientalista” que não consegue abrir mão de nenhum conforto material, coleciona sempre mais e mais objetos inúteis, venera as mil bugigangas oferecidas pela tecnologia moderna e disfarça através do “protecionismo” extremista o remorso de precisar de três planetas para sustentar o estilo de vida que leva. Também tenho muito respeito pelos animais e sinto um enorme peso por ainda não ter conseguido deixar de os comer. Tirando esse pecado, sou dos que param na estrada para enxotar uma lebre que se me atravesse à frente do carro (o que já aconteceu várias vezes) e incapaz de fazer mal a seja o que for que mexa, até mesmo a uma mosca exasperante. Mas acho que eles passam bem sem declarações de amor piegas e dispensam absolutamente ser tratados como pessoas. Aliás a nossa ação só os pode prejudicar. Tirando os que são um produto do nosso egoísmo e não sobreviveriam sozinhos, os que ainda são livres só precisam de nós para que os deixemos em paz. E isso pode começar, por exemplo, por recusar o dogma segundo o qual a população humana deve aumentar de forma desregulada como tem vindo a acontecer. É a maneira mais eficaz de não invadir os seus ecossistemas e de os deixar lá sossegados com a menor intervenção possível da nossa parte.