class="html not-front not-logged-in one-sidebar sidebar-second page-frontpage">

            

Vendavais- 50 anos mais tarde

Naquele dia, levantei-me cedo e estava nervoso porque na quarta-feira da semana anterior, durante a instrução da Mocidade Portuguesa no colégio que eu frequentava, nos tinham dito que teríamos de estar bem preparados para fazer formação e prestar homenagem ao Presidente do Conselho de Ministros que se deslocava à sua terra, como tantas vezes fazia. Nunca o tinha visto, mas sabia que era uma pessoa da terra e que era estimado pela maior parte delas. Como o respeito é muito bonito, também eu aprendi a respeitar os outros e com os meus 12 anos de idade não tinha outras preocupações além dos estudos, onde me exigiam que tirasse as melhores notas. Assim, nesse dia, vesti a farda da Mocidade Portuguesa e com a vaidade natural de uma criança dessa idade e do motivo que a tal ação levava, aperaltei-me e lá me levaram até Santa Comba Dão, onde o senhor Presidente do Conselho iria passar revista e à Juventude da Mocidade Portuguesa, eu incluído. À hora esperada, apareceu o senhor Presidente e, em passo lento, foi passando à frente dos que por ali estavam perfilados. Quando chegou em frente a mim, parou, estendeu a mão e proferiu secamente “Como estás meu jovem? Parabéns”. Não consegui pronunciar uma única palavra, tal era o nervosismo. Em casa, disse à minha mãe e aos meus avós o que tinha acontecido e lembro-me a minha avó dizer “olha que ele ainda é da nossa família”. Mais tarde, depois de algumas investigações, cheguei à conclusão que era primo afastado da minha avó. Anos mais tarde, já a acabar o Liceu, com outras ideias e outras leituras a ocuparem o espaço intelectual, fui-me apercebendo de duas coisas: não queria regimes comunistas nem regimes de estrema-direita. Era contra as ditaduras, claramente. Contudo, tinha lido já livros de Dostoievsky, de Maximo Gorky, de Léon Tolstoy, entre outros. Os meus colegas criticavam as minhas leituras, mas também não referenciavam as deles. Nessa altura lia-se mais do que agora. Não havia vários canais de televisão, nem novelas nem Big Brother. Enfim, outros tempos. Quando chegou o dia do baile de finalistas, tínhamos convidado um conjunto conhecido de Coimbra e o Zeca Afonso. Este logo disse “vejam primeiro se eu posso ir aí cantar”. Não achei isso estranho, mas nunca pensei que fosse tão perigoso para ele ir cantar umas “cantigas” a um baile de finalistas. Foi proibido. Ficámos sem Zeca Afonso. Fiquei furioso, até porque eu pertencia à comissão organizadora e achei que tinha falhado nesse objetivo. Falhei, ou talvez não. Estávamos em 1972 e a criança de 12 anos já estava prestes a ir para a Universidade. As responsabilidades já eram outras e o Presidente do Conselho que me tinha cumprimentado, já tinha falecido. Em 27 de Julho de 1970. A minha mãe não me deixou sair de casa, mas na varanda ouvi os disparos de artilharia que foram dados no cemitérios de Vimieiro, na altura em que foi sepultado em campa rasa. Hoje, passados cinquenta anos, a imagem do governante autoritário e ditador de Santa Comba Dão, ainda mexe e é referenciada frequentemente, pelas boas e pelas más obras que fez. Como todos os governantes, governou como sabia e como quis e com as ideias que tinha. O projeto de fazer na sua humilde casa um Museu do estado Novo, não está a ser digerida de igual forma pela sociedade portuguesa, a mesma que o elegeu há três ou quatro anos atrás, a figura número um do século vinte em Portugal. Detesto hipocrisias, como detesto “fazer o jeito” aos que querem que se pense como eles. Não estaria certo. Cada um que pense com a sua cabeça e que não tenha receio de se afirmar como tal e por esse meio. Aprendi a criticar Salazar e o seu governo como aprendi a criticar o governo de outros ditadores, uns que passaram e outros que ainda sobrevivem num mundo que diz moderno e progressista. E são ainda muitos. Afinal, cinquenta anos depois da morte do ditador de Santa Comba Dão, como estamos? O que foi feito? Pois, à parte a democracia que se conquistou e foi muito, temos três bancarrotas pelo meio, várias crises e agora mais uma graças ao vírus fatal do desassossego. E o ouro foi-se embora!

Regresso ao Paraíso

O meu querido amigo Francisco Gomes telefonou-me na semana passada. Queria saber novas da minha pessoa. O Francisco (somos Homónimos) nasceu no Castro nas redondezas de Vinhais, em 1967 apresentou-se a fim de cumprir o serviço militar obrigatório, entre receber fardas e botas iniciámos bela amizade, já lá vão 53 anos, fomo-nos vendo esparsamente, mais amiúde enquanto desempenhou com devoção e elegância o cargo de gerente do BPI em Vinhais, sempre que visitava a aldeia dos prodígios – Lagarelhos – ia trocar abraços, rirmos acerca das pérfidas bilhardices do alferes Prata e/ou trocar um cheque por dinheiro certo sem necessidade de cobertor ou cobertura. O Francisco a quem chamo Xico ou Chico, depois de lhe ter relatado em cursivas palavras sem zagalotes do chorrilho vocabular vinhaense, a violência insolente do viver enclausurado, receoso e confinado ao abrigo caseiro ele disse-me andar feliz e contente a calcorrear os caminhos e a observar os campos da aldeia e suas cercanias onde herdei uma touça após a morte da minha avó. Não sendo invejoso de nada, nem de ninguém, no corrimento da nossa conversa invejei-o por que muitas vezes não se lembrar de colocar a máscara, de respirar os ares puros vindo da serra da Coroa e montes anexos como se estivesse no jardim das delícias sulfurosas da poesia do Regresso ao Paraíso do poeta Teixeira de Pascoaes ou a colocar as asas de Como ser Anjo do escritor Vassilies Vassilikus, a fim de esvoaçar qual Ícaro sem correr o risco de afogamento nas límpidas águas dos rios que persistem em serem fontes de aprazimento naquelas paragens. Se, me é permitido escrevo: porra e três quinze, Xico és o itinerante das cortinhas e lameiros, como eu fui dos livros mágicos de assombrações talvez ainda passíveis de ver, sentir, cheirar nas Pendelinhas de Lagarelhos, Castro, Soutelo e Sobreiró. Um exercício só para quem consegue escalonar o Mafarrico a imitar as mouras encantadas ensonadas nas fontes e poças, pôr o Trasgo trapaceiro no bornal do João Soldado que nele malhou como quem malha centeio verde, responder com um corte de mangas ao Demo de Aquilino Ribeiro, de acorrentar o Porco-Sujo acorrentado ante S. Bartolomeu, enxotar o Demónio invocando a oração o Diabo sem cabeça apareça, apareça e exorciza para as profundas infernais o desobediente e pior de todos, Lucífer, o das trevas. O estimado Francisco acendeu a centelha da recôndita vontade de lavar os olhos não no reino maravilhoso de Torga, sim no rincão grávido de hierofanias e alegorias onde fui feliz debaixo de relâmpagos e trovões, de zurvadas verdejantes, de meios-dias de esconjuro sob tórrido sol a levar Carracó a resguardar a caixa das sardinhas na sombra dos cabanais. O Carracó é ao lado outras figuras picarescas da iconografia da antiga Póvoa Rica. As referidas figuras émulas do Malhadinhas justificavam (justificam) livro galhardo e eclatante. Se um dia surgir fico feliz, até lá vou porfiar no sentido de tal como o gavião perscrutar o paraíso que o Francisco desfruta amenamente, tal qual, o articulista Barrondas da Serra fruiu nas faldas da Coroa ou não fosse ele digno coroado. Nem que seja só por um dia irei ao Paraíso após subir a Escada de Jacob!

O passado que nos faz

A grande história, a dos livros, diz-nos como chegámos até aqui por um longo caminho de construções, destruições, concórdias, discórdias, diplomacias, conflitos, abundâncias, privações, doações, pilhagens, calmarias, convulsões, êxodos, invasões, indulgências, opressões, povoamentos, extermínios, liberdades, servidões…. É que somos o produto de todos esses movimentos, de todos mesmo, e quer os vejamos com sinal positivo ou negativo eles criaram esta realidade que neste momento é a nossa. A barbaridade e a civilização estão mescladas em nós de tal maneira que não poderíamos renegar aquela sem matar esta. Se estamos aqui, agora, tanto o devemos aos massacres de átila como às lições de jesus. Há uns anos, seguindo uma moda que estava muito a dar, jorge sampaio foi pedir desculpa a lula da silva por termos colonizado o brasil. Já nem ligo ao absurdo de nós, os portugas atuais, sentirmos culpa por algo que não fizemos. Já ponho de lado que eles também deviam vir cá fazer-nos vénias por termos levado a cultura europeia ao coração da selva, dando o empurrão inicial àquele grande país. Não se podiam exigir tais subtilezas ao lula, que é inculto. Mas o nosso tinha a obrigação de saber que se não fosse a descoberta, a colonização e tudo o que se seguiu nem ele nem o brasileiro existiriam, um para se fingir pesaroso e o outro ressentido. A jogada de pedro alvares cabral no tabuleiro do globo, acidental ou não, criou de novo o brasil. Mas também recriou portugal, redesenhou o mundo inteiro e tudo o que passou a acontecer e a existir nele até aos nossos dias. Porque as ações de um ser humano podem ser comparadas às de uma peça num tabuleiro de xadrez. Cada um dos seus movimentos anula outros que naquele momento eram possíveis, altera a posição relativa e as possibilidades dela própria e das restantes peças, condiciona os inúmeros lances que poderão depois ser efetuados, isto é, influencia todo o jogo até ao final. E não é só a história com h grande que conta para estas contas. Paralelamente a ela, corre ignorada uma outra feita de episódios particulares em número infinito, levados a cabo por pessoas anónimas sem cujas existências esta realidade que agora temos não seria possível. O que somos foi-nos igualmente legado por esse passado obscuro. Um dos meus avôs, homem casado e com filhos, cedeu uma vez aos instintos e “abusou” de uma rapariga, um movimento brusco na superfície do tabuleiro da vida que os marcou para sempre a eles e às famílias e fez com que eu esteja aqui a escrever isto. Menos evidente, contudo real, é que mudou também o destino da aldeia, do concelho, do distrito, do país, do globo. As ações das pessoas são pedradas num charco cujas ondas de energia repercutem em todas as partículas da água que ele contém, afetando-as de alguma forma. Têm impacto sobre quem as faz, os outros seres e a natureza. Depois de feitas nada volta a ser igual ao que era. Se um único dos acontecimentos que nos precederam tivesse falhado o planeta seria diferente e a humanidade outra que não esta. Somos o resultado de tudo o que está para trás, o último elo de uma corrente invisível que nos sustém e não seríamos capazes de cortar. O passado está entranhado naquilo que são os nossos corpos, ideias, gostos, desejos, gestos, hábitos, frases. Muitas vezes, no plano coletivo (como no pessoal), ele mostra-nos coisas desconfortáveis. Não há passados sem nódoas. Mas renegá-las seria renegar ao mesmo tempo aquilo que nos parece honesto, justo, belo, bom. São tomás de aquino dizia que nem deus consegue fazer com que aquilo que aconteceu não tenha acontecido. Ora o que aconteceu é o que nos alimenta e mantém de pé, por isso nem faz sentido querer que não tenha acontecido. Faz sentido, isso sim, fazer o melhor presente possível, e através dele o futuro. Com que cara julgaria eu a fraqueza daqueles meus dois antepassados se foi ela mesma que me fez existir para poder julgar? Seria possível a um mestiço deitar fora metade dos seus genes? Os imitadores que andam a derrubar estátuas de esclavagistas repetem o mal que veem no passado combatendo violência com violência e mostrando uma vez mais que a ignorância pode ser atrevida. Mas as suas embirrações significam autonegação, autorrejeição, desejo de apagar a memória em vez de a compreender. É que sem a escravatura não existiriam para derrubar.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição - 12

Em Bragança terá permanecido Manuel Lopes cerca de ano e meio. Depois, abalou com seu irmão, João Ventura, rumo a Chacim, onde este tinha contratado o casamento com Beatriz Pereira, filha de Bartolomeu Pereira e Joana de Gamboa. Luís Lopes ficou em Bragança mais algum tempo, vivendo com os sogros, antes de voltar a Castela. Chacim era a sede de um pequeno concelho medieval e a sua população não passaria dos 150 agregados familiares, com uma grande percentagem de gente da nação hebreia, uma “nação” muito florescente, do ponto de vista económico e financeiro, empenhada, fundamentalmente, em duas atividades industriais extremamente rentáveis: os curtumes e o fabrico de sedas. Mercê do desenvolvimento que essas indústrias então conheciam, Chacim era, possivelmente, o povoado trasmontano em maior desenvolvimento, que tinha um campo da feira “com lojas e tendas de mercadores e se contrata em sedas e couramas, que tudo a faz rica” – conforme escrevia Carvalho da Costa. (1) Isto explica que Chacim registasse então um forte movimento imigratório, com muita gente ida de Bragança, Vinhais, Lebução, Mogadouro, Torre de Moncorvo, Vila Flor… Só nas listas de pessoas presas pela inquisição em Chacim, acusadas de judaísmo, encontramos mais de 4 dezenas de adventícios. Era uma verdadeira “nação em movimento”, a de Chacim. Daquela lista de adventícios não constam os nomes de Manuel Lopes e João Ventura, ali chegados pelo ano de 1696. E também não constam de uma lista de 33 cristãos-novos que o comissário da inquisição, abade de Chacim, Manuel Gouveia de Vasconcelos, tempos depois enviou para Coimbra denunciando que “no dia de S. Bruno, a 6 de Outubro do ano passado de 1696, andaram com camisas lavadas e alguns a traziam em folha, e sem trabalharem, como se fora dia santo, nem de suas casas saía fumo até à noite, presumindo-se que jejuariam o seu dia grande”. (2) Muito provavelmente Manuel Lopes e João Ventura estavam em Chacim naquele dia de S. Bruno, 6 de Outubro de 1696 e ali terão festejado o Kipur. João Ventura estava então casado de fresco com Beatriz Pereira, filha de Bartolomeu Pereira e Joana de Gamboa, esta originária de Santulhão, termo de Vimioso, onde o casal morou algum tempo. Bartolomeu e Joana eram já falecidos e ambos tinham conhecido as cadeias da inquisição, ele em 1649 e ela em 1667. (3) Outra filha de Bartolomeu e Joana chamou-se Branca Pereira e estava casada com Domingos Nunes, um primo de Manuel, filho de sua tia Isabel Cardosa, que o Manuel conhecera em Lebução e que, na altura do casamento de João e Beatriz, tinha já fugido de Chacim para Livorno onde, 4 anos depois, voltará a encontra- -lo. Aliás, foi em casa de Domingos e Beatriz que Manuel e João ficaram alojados, quando chegaram a Itália. Nessa altura Domingos e Branca tinham já aderido abertamente ao judaísmo e chamavam-se Isaac Nunes e Rosa Gomes, respetivamente. Maria Manuela, era também filha de Bartolomeu e Joana. Tinha 23 anos e encontrava-se solteira, a viver em Chacim, com seu irmão, Jerónimo Pereira Pacheco. Este era o chefe da família, depois que faleceu o patriarca Bartolomeu Pereira. Jerónimo andava nos 32 anos, estava casado com Isabel Henriques do Vale, que foi presa pela inquisição, no seguimento da vaga de prisões de que atrás se falou, acabando queimada em Coimbra. (4) Jerónimo viria a falecer ainda antes. A propósito da família daria Manuel Lopes o testemunho seguinte, perante os inquisidores de Barcelona, em 1703: - Jerónimo Pereira (Pacheco), defunto, casado que foi com Isabel Henriques do Vale, presa em Coimbra e, segundo ouviu dizer, o dito Jerónimo e Beatriz sua irmã, e também Maria Manuela também irmã da dita Beatriz e Jerónimo Pereira a quem ele confitente viu observar a dita lei dos judeus, e na ocasião que todos iam a casa de seu irmão João Ventura e outras vezes na de cada um dos ditos irmãos a que vinha e concorria o dito João Ventura, como observante da mesma lei. (5) Tal como o pai, Jerónimo Pereira era mercador e vendia tabaco, conforme resulta do testemunho de Francisco Sá Carrança, tendeiro de Bragança, prestado na inquisição de Coimbra e, 8.8.1702: - Disse que haverá 5 ou 6 anos, em casa de Jerónimo Pereira, defunto, casado com Isabel Henriques, se achou com os mesmos e com os filhos Leonor e Manuel e com Branca, irmã de Isabel e com Isabel Henriques, filha de Branca, e com João Lopes Castilho, genro de Branca, casado com Leonor, (6) ausentes, e ouviu dizer que estão presos em Castela, por ocasião de ir a casa de Jerónimo Pereira comprar um pouco de tabaco, os achou com os melhores vestidos, fazendo juntos o jejum do dia grande… (7) A modos de tentar perceber um pouco do ambiência religiosa desta família, vejamos o depoimento de Maria Ferreira, filha de Pedro Ferreira, curtidor, prestado em 20.9.1704: - Disse que haverá 2 anos, em Chacim, em casa de Branca Henriques, se achou com ela e com Isabel Henriques do Vale, mulher de Jerónimo Pereira e com Manuel do Vale, filho da mesma (…) e faziam o jejum do capitão, que vem 8 dias antes do dia grande, e o de S. João, preparando-se para este 3 semanas antes, sem se pentearem nem vestiram roupa lavada senão na véspera dos ditos jejuns e pelo decurso do ano havia de jejuar às quintas- -feiras de lua nova; e em Fevereiro haviam de jejuar o jejum da Rainha Ester, que será de 3 dias e 2 noites, vestindo na primeira camisa lavada, estando em todas elas sem comer nem beber senão na última noite; e que haviam de rezar a oração do padre-nosso sem dizer Jesus no final e ofereciam os ditos jejuns ao Deus do Céu e somente haviam de crer e rezar ao Deus do Céu.