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Vendavais- As viragens da História

As coisas que acontecem ao longo da História e que são relatadas com algum empolgamento, são-nos, de algum modo, familiares porque são relatadas frequentemente. Episódios especialmente de cariz político, são os mais ventilados talvez porque mais apetecíveis e sujeitos a críticas. Quase todos referem mudanças abruptas em relação às linhas conceptuais até aí seguidas. Exemplos são vários. Alguns lembrar-se-ão das aulas de História, de uma rainha que começou por governar ainda menina depois de ter sido prometida em casamento, com apenas sete anos, a seu tio para que viabilizasse deste modo a governação do país. Pois ela era Maria da Glória, filha de D. Pedro, à época Imperador do Brasil e, por direito próprio, seria sucessor de seu pai D. João VI, na governação de Portugal. Pois o tio de Maria da Glória era irmão de D. Pedro, de seu nome D. Miguel, exilado pelo próprio pai, que aceitou o pacto proposto pelo irmão que tinha abdicado do trono em nome da filha que, obviamente, não poderia governar com sete anos. No governo, D. Miguel não quis saber do pacto e governou como rei absoluto e ditador, passando por cima da Carta Constitucional que o obrigava a cumprir as ideias liberais. Virou de tal forma o país que levou a que D. Pedro IV viesse do Brasil e invadisse Portugal entrando numa guerra civil em que sairia perdedor D. Miguel. Dª. Maria da Glória, com catorze anos acabou por ocupar o trono em vez do pai, iniciando um reinado atribulado e repleto de manifestações e revoltas. Antes já D. Maria I tinha sido chamada de Viradeira por alterar toda a política económica e não só que o Marquês de Pombal tinha levado a cabo. Como o detestava, era um modo de demonstrar a fraquíssima consideração que tinha por ele. O Marquês acabou na miséria. Do mesmo modo se lembrarão de ao longo da Revolução Francesa terem sucedidos episódios dignos de relevância não só pela crueldade de alguns como pelo inesperado de outros. Pois numa revolução que se sustentou na luta pela igualdade e pela liberdade, matar o rei e a rainha não só foi cruel como ficou a dever muito à liberdade e à igualdade apregoadas. No mesmo contexto, todos se lembram de Napoleão e dos seus feitos. Pois também ele protagonizou um episódio caricato, mas não único na História Universal, ao fazer um golpe revolucionário contra si próprio, o 18 do Brumário. A finalidade foi ter todo o poder nas mãos, nomear-se Imperador e conquistar um império a exemplo dos antigos romanos. A Viragem levou-o a perder e a ser expulso de França juntamente com a sua mulher Josefina, acabando por ser desterrado para a ilha de Stª. Helena onde acabou os seus dias. O destino virou-se contra ele! Mais recentemente temos o caso de Donald Trump. Numa governação repleta de sucessivos erros e falhas políticas, teimava em ser o mais lúcido, o mais apto e inteligente para governar a América e quando o poder lhe fugia debaixo dos pés, equacionou a possibilidade de uma Viragem repentina efectivando esse poder por assalto à casa da democracia americana. Saiu- -se mal. Acabou por sair pela porta das traseiras e, envergonhado, não comparecer na tomada de posse do novo Presidente para não dar o braço a torcer. Triste figura! A Viragem será feita por Biden já que ganhou e bem, onde menos os republicanos esperavam. Que tenha mais sorte. Voltemos a Portugal. No momento em que todos esperavam ultrapassar as vicissitudes ligadas à pandemia, eis que os resultados mostram uma Viragem espectacular, pela negativa, colocando-nos no ranking dos piores países do mundo. A teimosia e o bem-querer de Costa ao facilitar no Natal e no Ano Novo a circulação de pessoas, contando com a responsabilidade dos portugueses, acabou por piorar toda a situação. Agora, uma vez mais e por algumas semanas ou meses, ficaremos confinados compulsivamente na esperança de que o vírus se envergonhe e vá de férias também, como os alunos e professores. Aqui não vai haver Viragem certamente. O decréscimo esperado com esta medida não será nunca suficiente para dormirmos descansados e nem as vacinas que agora chegaram o permitem, tanto pela sua exequibilidade como pela escassez das mesmas. Aqui a viragem é outra que não a esperada. Nem as vacinas nos salvam!

Por quem os sinos dobram

Choram os sinos por todos quantos ao exemplo dos mortos no decurso da guerra civil espanhola são a substância e origem do livro* cujo título é o desta crónica a expobrar o comportamento de todos quantos por omissão, palavras e obras contribuíram para o sofrimento e muitas vezes a morte de mulheres e homens vítimas da pandemia. Dobram os sinos prenhos de raiva porque morreram e morrem pessoas em consequência da vaidade popularucha das decisoras e decisores incapazes de elevarem a prudência na profunda análise dos efeitos da peste nas comunidades portuguesas. Plangem dolentes os sinos na impotência de as suas notas não conseguirem sensibilizar as pessoas a considerarem as normas de segurança sanitária tão importantes quanto a exigência alimentar dos corpos, pois se a comida os vivifica, a sua exposição vírus coloca-os em perigo de serem corroídos antecipadamente. Tangem os sinos cansados de soarem aos ouvidos dos ânimos hábitos ao modo de sopro de revigoramento porque temos de conseguir resistir com mais energia à tormenta esperançados na sua erradicação. Os sinos estão possuídos pela doença de S. Vito, rejubilam na cúspide da propaganda do efeito benéfico após a chegada das vacinas consideradas como elemento primacial da propaganda, para de imediato soluçarem tal qual o velho que não tem culpa de o ser, mas porque o é caiu nas malhas da idade indesejada e, por isso mesmo esvaiu-se a dita esperança agravada pelo emudecimento dos sinos, sinetas e campainhas pascais. As vacinas tábua de salvação tardam, os feitos irão demorar, o que resta? Resta fé nos cientistas escorados na serena análise dos resultados e na coragem de dizer como os fidalgos de D. Afonso IV lhe disseram: senão? Não! Os sinos voltaram a ser cautelosos porque os sinos dos cientistas sabem quão pertinazes e astuciosos se movem os políticos no entrelaçarem redes de conquista e manutenção do poder, a imolação da ciência não os arrepia a favor dos seus desejos. Muitas vezes os homens consagrados ao mundo científico resvalam, ao modo dos sinos grandes travestidos de sininhos amestrados não raras vezes recuam, pensemos no episódio do encerramento das Escolas. O leitor dirá: o autor desta crónica endoidou, uma no cravo, outra na ferradura apesar de as vítimas terem sido arrestadas à traição com as pernas hirtas! É verdade. Nesta questão da pandemia a coerência não é possível medir-se ou avaliar-se, tal qual a lisura de seis candidatos nas recentes eleições presidenciais. Eram sete! Nas noites invernais, nos serões à volta da fogueira no Lar de Lagarelhos fiquei a saber quem era o sujeito da adivinha – Alto está, alto mora, todos o vêm, ninguém o adora –, o que cada um elege como o seu. A pandemia enxameia de todos quantos ao entrarem na eternidade não usufruíram da última vontade neste vale de lágrimas; de poderem ter sido objecto da cerimónia do adeus envolvendo familiares e amigos. Porca Miséria! Os sinos gritam pios de dor ante o aviltamento, escrevo ao som de Wagner, um som só audível por mim pois a pitonisa não me respondeu. Porquê?

Satânico

Laquela figura exposta na forja sublinhava já na perfeição. A de um antigo anjo da corte do céu irremediavelmente condenado ao fogo, isto é, ao sofrimento, por ter tido a arrogância de querer igualar-se ao poder de deus. Uma criatura consumida de inveja com a simples visão dos piedosos e bem-aventurados, apostada na ideia de os perder para que as penas pessoais lhe fossem mais suportáveis, e também por isso o mestre supremo do disfarce, vestindo roupagens sem fim para os atrair. Um ser cuja ambição maior consistia em inverter os valores do bem e do mal no mundo para assim procurar lavar o crime imperdoável que cometera. Numa altura em que se endeusa o visível e o palpável e menosprezam as coisas do espírito, o demónio será hoje um conceito acerca do qual a maioria encolhe os ombros e sorri: fantasias, criações mitológicas ao jeito do homem-aranha ou do homem-do-saco. Mas mitológico não quer dizer que não reflita nenhum tipo de verdade. Bem pelo contrário, desde tempos imemoriais que os mitos, todos eles, têm exposto a realidade mais profunda e permanente do ser humano. Se acontece largarmos uns estamos destinados a abraçar outros pois para nós, como diz pessoa, “o mito é o nada que é tudo”. Nesse caso, qual seria então o significado daquelas monstruosas representações, quer a física quer a moral que lhe servia de base? Que verdade perdurável espelharia esse mito fora de uso? Que temos nós a ver com satanás? Tudo, mas alguém disse uma vez que a sua obra mais perfeita é dar a entender que não existe, o que lhe abre uma via larga para arrastar os incautos à perdição. Talvez não seja preciso muito esforço para pensarmos em pessoas, quem sabe até se chegadas, que se esmeram em arquitetar teias de engano e falsidade, espargir venenos a toda a volta, criar turbilhões que nos arrastam para o seu desassossego, sugar-nos, quais vampiros, a tranquilidade e o bem-estar. Cuja agitação destrutiva e autodestrutiva desperta enorme pena, mas de quem há que fugir a sete pés como elas próprias fogem da cruz. E nem valeria a pena ir por aí. Sem suspeitar dessa cilada, as pessoas comuns começamos a prestar culto ao inimigo se os erros e os fracassos dos outros nos trazem alguma satisfação. Pactuamos com ele se as desgraças gerais, dialogando com as nossas, nos consolam, se os males exteriores, espelhando os interiores, aliviam. Estamos sob a sua alçada se achamos prazer secreto em qualquer tropelia externa que justifique aquelas que fazemos. Adoramo-lo se na balança das culpas a descida do prato alheio faz subir um pouco o nosso. Já lhe vendemos a alma se damos connosco a empolar e difundir os pecados do próximo ou, pior ainda, se o tentamos para que os cometa e poder depois acusá-lo deles. O “príncipe deste mundo” (joão 16:11) nunca anda muito longe. Será ele fruto da nossa guerra contínua com o mistério de tudo, da inquietação de estarmos vivos a que freud chamou instinto de morte? O sentimento de inferioridade e o desejo de o suplantar pela afirmação? O animal competitivo que há em nós? O nunca sabermos se amanhã vamos estar cá? Não deixam de ser forças sombrias que nos movem, tanto mais fortes quanto menos consciência temos delas. Deixá-las exprimir-se livremente pode levar-nos a desejar espezinhar o que existe dentro e fora, com efeitos devastadores nas mentes, nos corpos e nas vidas. Resta-nos aceitar a existência e tudo o que ela contém, o irracional em que estamos metidos, a nossa pequenez e irrelevância, mesmo se isso exige doses infinitas de humildade.embro-me perfeitamente de uma gravura que há sessenta anos existia numa das paredes da “frauga” dos caldeireiros, no largo da pracica, em balfrades. Num fundo de labaredas, uma figura globalmente humana, peluda, traçada a vermelho e negro, rosto sinistro de caninos proeminentes e olhos esgazeados de crueldade, orelhas bestiais, dois cornos grossos e retorcidos a sair da testa, mãos e pés de compridas garras aguçadas, um rabo a rematar em flecha, a postura captada no instante imediatamente anterior ao da investida contra uma presumível presa. Se calhar por exprimir os traços morais que o catecismo lhe atribuía (e na altura andávamos a aprender), era uma imagem aterradora do diabo, pelo menos para um miúdo de cinco ou seis anos como eu. As catequistas também davam o seu melhor para nos traduzir em palavras a ideia que

Que salve a Democracia quem pode!

Não é de agora: a democracia corre perigo em Portugal! Correu perigo durante a vigência da chamada I República, que sucedeu à Monarquia, entre a Revolução Republicana de 5 de Outubro de 1910 e o golpe estado de 28 de Maio de 1926, a que se seguiram a Ditadura Militar, a Ditadura Nacional e o Estado Novo por fim. Voltou a correr perigo logo após ter sido refundada em 25 de Abril em 1974, quando o PCP tudo fez para implantar em Portugal um regime soviético, irmão de sangue do que reinava na URSS e outras forças da mesma igualha lançaram a Nação na mais insana anarquia. Foi o famigerado PREC de má memória, que só terminou em 25 de Novembro com a reposição (pela força das armas, note-se bem!) de um regime que se pretendia genuinamente democrático, justamente liberal e representativo. Regime que, embora liberal (eventualmente em excesso), vem demonstrando à saciedade não ser representativo nem estar formatado para impedir que forças espúrias, obscuras umas, expostas outras, paulatinamente desvirtuem a democracia e desgracem o Estado. Justo foi pensar que Portugal, com a abertura ao mundo que a democracia facultava, o fim das guerras ultramarinas e a forte alavanca política e económica da Comunidade Europeia, se converteria num país modelar. Debalde! A corrupção, o nepotismo e a incompetência, valendo-se dos partidos como trampolins, infestaram todas as instâncias do Estado, a dívida pública disparou, as bancas rotas sucederam-se e as desigualdades acentuaram-se. Situação que não melhorou, antes pelo contrário, com o estabelecimento da denominada ´“geringonça” liderada por António Costa, sob a égide de Marcelo de Sousa. Os escândalos banalizaram-se, a autoridade democrática passou a ser enxovalhada, o controle governamental do Ministério público acentuou-se e a dívida pública acercou-se do ponto sem retorno, mesmo antes da crise pandémica ter eclodido. A democracia desfalece e Portugal definha. As ameaças à democracia não partem, porém, de tropas amotinadas, de melícias de esquerda ou de direita que planeiem tomar de assalto São Bento ou Belém, muito menos de um qualquer André Ventura mais patriota. Vêm, isso sim, da governança incompetente, do domínio do Estado pela alta finança, da corrupção impune e das mentiras governamentais. Estão implícitas nos discursos de Marisa Matias e Ana Gomes que não escondem os seus tiques maoistas e estalinistas, paradigmáticos da esquerda totalitária, quando declaram não respeitar a vontade do povo expressa democraticamente, se não for do seu agrado. Felizmente os chavões fascistas, xenófobo ou racista com que pretendem obstar à mudança, parecem não atemorizar os portugueses. Paradoxalmente, o Regime, embora se reclame de representativo, só sobrevive porque os portugueses são constrangidos a abster-se de votar. Convém lembrar que o actual PR foi eleito, em 2016, com menos de 25% dos eleitores inscritos. O mesmo é dizer que apenas mereceu a confiança expressa de 1 em cada 4 portugueses e que mais de metade não votou. Resultado que, tudo leva a crer, se agravará nas eleições presidenciais em curso. A abstenção traduz, acima de tudo, o desencanto popular, constituindo a mais grave doença da democracia. Mais baixo não poderá descer porque a democracia o não suportará. Que salve a Democracia quem pode! Certo é que só o povo a pode salvar.

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Quatro anos depois e ele vai por fim embora, e nós perdemos um tema de conversa. É que ele fez-nos falar, o burgesso, com os seus exageros e provocações, com a sua palavra em roda livre espalhada por toda a Terra através da graça ambígua das redes sociais. Durante estes quatro anos, são milhares de tweets que jorraram do seu smartphone pessoal, mais duma dezena por dia mesmo assim, um por hora fora do sono, incluindo aos domingos. Inundou metodicamente o planeta com os seus pontos de exclamação, com as suas frases brutais e sintaxe truncada, com as palavras em maiúsculas que não passam da mímica dos seus murros em cima da mesa. Com a sua altivez insensata, falava diretamente ao povo sem passar pelas subtis modalidades do governo. É como se houvesse um painel eletrónico plantado em todos os cruzamentos de todas as cidades do mundo. Um modo de informação municipal extensível ao planeta, onde desfilava em permanência o fio ininterrupto da sua palavra. Toda a gente troçava dele, estávamos bem enganados. Havia inventado qualquer coisa nova, em germe no princípio das redes sociais mas que ele desenvolveu até ao absurdo, como forma de conquista e modo de exercício do poder. Munido dos conceitos inéditos de verdade hiperbólica e de acontecimentos alternativos, construía um mundo mental desligado do real e que ganhava sobre a realidade. Não compreendemos, acreditando na estupidez, troçávamos dele saboreando as caricaturas, e durante esse tempo agarrava-se ao poder, e depois governava. Ninguém acreditava, como se o Mickey tivesse saído do seu cartoon para saltar para a realidade, sem ter abandonado o seu caráter simplificado e a sua espessura de papel, e que nos dava bofetadas, mas verdadeiras bofetadas que nos deitavam por terra. Nada sério, dizíamos nós, meio abalados. O nós de que falo refere- -se aos que acreditam no Estado, na democracia, no consenso razoável, na verdade que emerge do debate, todas as coisas das quais demonstrou por exemplo que não teriam nenhuma importância. O que ele vociferava no Twitter não fazia sentido e depois foi eleito, apoiado, agora cobarde mas somente por pouco. Certamente não medimos a profundidade do fosso que separa os que têm dos que não têm, não percebemos que o ódio em geral vence sobre a verdade, não desconfiámos que o real seja tão frágil quando as redes sociais se tornam a porta de acesso, estas redes em que o verdadeiro e o falso coexistem até diluir a verdade. Não levámos a sério o palhaço com a crina cor de laranja que parecia falar como o tio embaraçoso das refeições de festa em família, contudo, além do conteúdo dos seus propósitos, era ele que usava sempre da palavra, era ele que decidia dos temas de conversa, e a cada hora que passava lançava um novo tema, cuja pertinência não tinha qualquer importância porque mudaria um pouco mais tarde. É fascinante esta mudança de paradigma do governo, e é preocupante e perigoso para o futuro da política. Então quando Twitter lhe cortou a torneira por um instante sentimo-nos aliviados, e logo depois nova afogo aparecia. O pretexto foi uma mensagem que anunciava a sua ausência na entronização do seguinte, interpretada como sendo uma incitação codificada à violência. Por conseguinte não era a mensagem que justificava a sanção, mas sim todo o personagem. E em quatro anos, ninguém se apercebera de nada? E cortam desta forma o som a uma pessoa, sem debate nem decisão de justiça? Através dum tardio desdém de democracia, punem alguém que desde há quatro anos põe a saque a democracia? Não sei se vamos num melhor caminho … Mas de qualquer forma, Twitter, antes da passagem de poder, fica do lado do cabo. Por natureza as redes sociais veiculam tudo e mais alguma coisa e, quando os seus proprietários se ofuscam, isso faz-nos sorrir, e depois preocupa-nos. Se fossem simples fornecedores de acesso, sem responsabilidades sobre os conteúdos? Tanta hipocrisia! Deparamo-nos com um modo de regulação transparente, exterior às redes, porque a lei, é apesar de tudo mais clara. Não é muito são que a palavra pública seja regulada pelo arbitrário privado.

Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Presos como fautores de heresias

Procuravam saber os inquisidores se foi apenas com a leva de Novembro de 1714 que se deixaram os presos comunicar com parentes e amigos, ou se isso era já vício antigo. A esse respeito, veja-se a informação dada pelo comissário Miguel Ferreira Perestrelo:  - Eu mal posso avisar das pessoas que falaram com os presos, porque na verdade não sei, porque assisto em Rebordãos (…) recomendei sempre que não falassem os presos com pessoa alguma pois me diziam que deixavam falar, e me responderam que nenhuma pessoa ia falar com eles; porém sempre fiquei com algum escrúpulo pelo que me diziam, e juntamente pelo que ouvia estes anos atrás que faziam o mesmo. E por essa razão escrevi que me parecia houvesse uma Pastoral que toda a pessoa que deixasse falar os presos seria presa; para que dessa sorte se cuidassem os escrúpulos e murmurações…  Depreende-se desta informação que tal vício vinha já de antes e que o remédio recomendado seria uma “Pastoral” que fosse lida nas igrejas ameaçando os depositários que seriam presos, se permitissem tais irregularidades. No mesmo sentido vai o testemunho do comissário Manuel Camelo de Morais que até apresenta um exemplo concreto. Veja-se: - A respeito de evitar as comunicações com os presos, tenho feito as diligências necessárias e possíveis para evitar este inconveniente; mas que não tem remédio, sem se descobrir algum género de castigo, porque agora me consta que este preso, estando em casa do sargento-mor desta praça, onde o mandei pôr, o deixou falar com algumas pessoas da nação, quando era uma hora da noite, sem embargo de lhe recomendar a ordem de Vossas Senhorias e do castigo que merecem por esta culpa. Enquanto a atalhar à comunicação dos presos pelo caminho, também me parece impossível, que a ser preciso, à noite, nas estalagens, acomodam-se juntos e na estrada falarem uns com os outros, sem os familiares poderem dar remédio neste prejuízo.  Em outra carta do mesmo comissário para a inquisição de Coimbra se nota a sua preocupação, referindo que, na ocasião de receber uns mandatos de prisão, ele recorreu aos serviços do Conde de Alvor, então a comandar as tropas em Bragança, informando: -O senhor Conde de Alvor fez a prisão de três, com toda a satisfação; e recolheu uma presa para dar o exemplo às pessoas desta terra que se desprezavam de recolher presos.  Analisando estas e outras informações, o inquisidor António Portocarreiro explicava que as irregularidades aconteciam por causa das “pendências temporais que deles têm”, significando que até aquelas pessoas, das melhores famílias cristãs-velhas, gente da nobreza e do clero, estavam dependentes do dinheiro e dos favores dos cristãos-novos. E o mesmo inquisidor concluía: - Era tão contrário e devasso em todos os depositários o fazerem essas permissões que delas tinham, todos os que eram presos, ocasião de ajuntarem o modo com que haviam de formar e provar as suas contraditas, ou as pessoas de quem haviam de dizer, ou o tempo em que haviam de confessar, para que pudessem sair livres da pena que merecessem ou outras pessoas tivessem tempo de se ausentar.  Tudo visto e ponderado, decidiram os inquisidores chamar a Coimbra as 8 pessoas em cujas casas foram depositados os presos. No entanto, não foram mandados ir todos ao mesmo tempo. Assim, no dia 16 de junho, o cura da igreja de S. João Batista assinava a certidão seguinte: - Certifico eu como, por ordem do Rev. Manuel Camelo Morais, abade desta igreja e comissário do santo ofício, que notifiquei a Teodora de Almeida, Sebastião Gomes e João Martins Garcia, todos moradores nesta cidade para que dentro de 15 dias aparecessem na referida inquisição… Apresentaram-se os três na inquisição, no dia 1 de Julho seguinte. Teodora de Almeida, 55 anos, era irmã do padre Bernardo Rebelo, em cuja casa esteve depositada Maria do Couto, viúva de Francisco Domingues. Confessou que efetivamente deixara as pessoas falar com a prisioneira e que não fora advertida pelo comissário para o não fazer e “entendia ela declarante que não cometia culpa alguma em dar o dito consentimento”. Obviamente que os inquisidores lhe chamaram a atenção para a gravidade do ato e a avisaram que, se voltasse a cometer semelhante culpa, seria castigada com todo o rigor, o que ela prometeu cumprir. Sebas - tião Gomes, 40 anos, era escrivão dos mantimentos da tropa, filho de Sebastião Gomes e Maria Pires, natural da aldeia de Rebordãos, casado com Maria da Costa. Em sua casa esteve depositado Francisco Rodrigues Ferreira. Tal como os outros, foi acusado de “impedir o reto ministério do santo ofício e fautoria de judaísmo”. A sessão com o inquisidor Dr. José Gama Lobo foi em tudo semelhante à de D. Teodora de Almeida, bem como o aviso ameaçador. João Martins Garcia, 50 anos, tecelão de sedas, viúvo de Ana da Costa. Interrogado pelo inquisidor Portocarreiro, confessou que, de facto, lhe foi recomendado que não deixasse o preso falar com ninguém. No entanto não respeitou esta recomendação, por ver que os outros depositários deixavam falar, “entendeu que também o podia fazer”. Os depositários Bento da Cunha e Pedro Ferreira de Sá foram notificados no mês seguinte, em 8.7.1715, pelo cura da igreja de S. João, por ordem do comissário Botelho de Morais, recebida de Coimbra no dia anterior. O primeiro apresentou-se na mesa do referido tribunal no dia 23 seguinte e foi interrogado pelo inquisidor Gama Lobo. Apresentou-se como cristão-velho, guarda da Alfândega de Bragança, de 60 anos de idade, viúvo de Maria da Silva. Disse que tivera depositada em sua casa, dois anos atrás, uma cristã-velha chamada Úrsula de Figueiredo e em Novembro passado uma filha de João de Castro, meirinho dos assentos, cristã-nova, Mariana de Castro, Procuravam saber os inquisidores se foi apenas com a leva de Novembro de 1714 que se deixaram os presos comunicar com parentes e amigos, ou se isso era já vício antigo. A esse respeito, veja-se a informação dada pelo comissário Miguel Ferreira Perestrelo: - Eu mal posso avisar das pessoas que falaram com os presos, porque na verdade não sei, porque assisto em Rebordãos (…) recomendei sempre que não falassem os presos com pessoa alguma pois me diziam que deixavam falar, e me responderam que nenhuma pessoa ia falar com eles; porém sempre fiquei com algum escrúpulo pelo que me diziam, e juntamente pelo que ouvia estes anos atrás que faziam o mesmo. E por essa razão escrevi que me parecia houvesse uma Pastoral que toda a pessoa que deixasse falar os presos seria presa; para que dessa sorte se cuidassem os escrúpulos e murmurações… Depreende-se desta informação que tal vício vinha já de antes e que o remédio recomendado seria uma “Pastoral” que fosse lida nas igrejas ameaçando os depositários que seriam presos, se permitissem tais irregularidades. No mesmo sentido vai o testemunho do comissário Manuel Camelo de Morais que até apresenta um exemplo concreto. Veja-se: - A respeito de evitar as comunicações com os presos, tenho feito as diligências necessárias e possíveis para evitar este inconveniente; mas que não tem remédio, sem se desde seu nome. Confessou que efetivamente consentira que várias pessoas cristãs-novas falassem com a prisioneira. Perguntado se fora avisado para não autorizar tal abuso, respondeu que se encontrava fora quando entregaram a prisioneira em sua casa, a sua filha e por isso não sabia responder. O resto já os leitores imaginam: recomendações, ameaças… Quanto a Pedro Ferreira de Sá Sarmento, em cuja casa esteve depositado Henrique Rodrigues Ferreira, logo no dia em que recebeu a ordem de apresentação em Coimbra, muniu-se de um atestado, passado pelo Dr. Francisco Mendes Franco, médico do partido da cidade de Bragança, que enviou para Coimbra, juntamente com a seguinte carta por ele escrita: - O Reverendo comissário abade de s. João desta cidade me avisou que, no termo de 15 dias, fosse à presença de Vossas Senhorias. E os meus achaques, que constam da certidão junta, me impossibilitam a prontidão com que desejo e devo obedecer a Vs. Sas. Mando o meu filho e quando o seu préstimo não seja suficiente que me escuse desta jornada, peço a Vs Ss se dignem dispensar o termo até refrescar o tempo, porquanto desejo muito oferecer-me aos pés de Vs. Sas e mais livre das minhas queixas empregar-me no serviço de tão santo tribunal. Bragança, 9 de Julho de 1715. Pedro Ferreira de Sá Sarmento.